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educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

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EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

Orientação Sexual: experiência com um grupo de crianças especiais internamente à uma Instituição Reabilitativa

Introdução

Ao entrar no Centro pedagógico e reabilitativo Recanto Nossa Senhora de Lourdes percebeu-se a necessidade de trabalhar os fenômenos da sexualidade presentes de maneira desorientada e insistente entre jovens portadores de necessidades especiais, com idades variando de 14 à 18 anos, que estavam trazendo muitos transtornos às educadoras, pais e influenciando negativamente aos mais jovens. Os jovens estavam interessados em seu corpo e no corpo do outro, sentiam prazer no jogo e descoberta sexual e estavam sendo muito influenciados por um programa de TV em particular, que expunha de maneira grosseira a sexualidade, sem orientá-la. Como trabalhar o tema da sexualidade com crianças portadoras de necessidades especias de maneira adequada? Como trabalhar tal temática com os pais, que se omitiam nesta tarefa mas também se incomodavam com a possibilidade de um grupo de orientação sexual com seus filhos? Que abordagens e materiais didáticos utilizar para realizar tal tarefa sendo ela carregada, ainda hoje, de muito preconceito e puritanismo na área social, educacional e mesmo na saúde? Estas e outras questões pretende-se responder neste relato que narra a implementação bem sucedida de um grupo de orientação sexual para jovens portadores de necessidades especiais e orientação à pais e educadores.

 

A Instituição e seu público

O Centro de Reabilitação "Recanto Nossa Senhora de Lourdes" é uma entidade sem fins lucrativos, que atende em período integral crianças portadoras de Deficiência Mental (leve ou moderada) ou Síndromes Genéticas (por exemplo: Sindrome de Down, Sindrome do X-Frágil e outras), com idades entre 6-18 anos, previamente avaliadas e aprovadas pela equipe ambulatorial do centro. O Ambulatório é aberto ao público com profissionais de neuropediatria, psiquiatria, fisioterapia, psicologia, psicopedagogia, fonoaudiologia, e terapia ocupacional para avaliação e tratamento da população atendida. No centro as crianças participam de programas educacionais, oficinas, passeios, atividades lúdico-recreativas e projetos terapêuticos elaborados singularmente para cada criança.

A missão da instituição é promover o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes portadores de deficiência mental e/ou sensório-motora, favorecendo sua inclusão na vida social, cultural e laborativa na comunidade, fomentando a sensibilidade social de atenção, respeito e garantia dos direitos dos portadores de necessidades especiais.De acordo com a idade e o grau de desenvolvimento, são formados grupos com objetivos e atividades pedagógicas que estimulam dia a dia as habilidades e potencialidades de cada criança (MENDES & SCHUBERT, 2006).

A importância da Orientação Sexual na grade curricular das escolas e instituições

A importância da educação sexual ou de espaços aonde isto possa ser conversado de forma espontânea e séria, já é sabida por todos, principalmente em tempos de globalização, DST e Aids. Desde as descobertas de Sigmund Freud publicadas em nos anos 1900 -1915, a sexualidade infantil deixou de ser algo obscuro ou motivador de medo e escândalos - ao contrário, o neurologista austríaco pontuou como seria saudável abordar isso com as crianças e jovens sempre que as questões surgissem. Muitos profissionais da saúde e pensadores (SUPLICY, XAVIER-FILHA, PAULA,MAIA, por exemplo) atualmente confirmaram tal hipótese e argumentaram a importância de educação sexual para o desenvolvimento cultural, preventivo e saudável da população de forma geral. Porém, percebe-se que apesar de saber da importância dos espaços de debate e orientação, o sistema educacional e sistema de saúde brasileiros ainda apresentam muita dificuldade em lançar programas, palestras, aulas que abordem, discutam e orientem a temática.

Atuando em instituições como SOS Kinderdorf, Hospital Dia Infantil (Hospital Psiquiátrico Pinel), Recanto Nossa Senhora de Lourdes e em palestras à escolas percebeu-se como o tema sexualidade e a educação sexual brasileira permanece ainda muito inacessível àqueles que seriam os maiores beneficiados pela mesma. Em palestras dadas em escolas, notou-se que a orientação sexual a jovens só é possibilitada quando um profissional externo vai palestrar sobre o assunto – não há espaço na escola aonde esta temática seja debatida, conversada e/ou orientada quando necessário (SCHUBERT, 2006)

A partir da experiência averiguou-se que o tema é angustiante para pais, escola, instituições e para cultura como um todo. Os poucos programas existentes de orientação sexual são desenvolvidos pela iniciativa privada ou trabalhos voluntários. Há programas desenvolvidos pelo Estado, porém tem pouco alcance e incentivo.

A sexualidade engloba uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância que proporcionam grande prazer na satisfação de uma necessidade fisiológica fundamental (exemplo: respiração, amamentação, função de excreção, tocar e sentir o toque pelo corpo e milhares de outros). Inclui-se na sexualidade, fora o próprio ato sexual, toda uma série de excitações corporais, a sensualidade, a curiosidade pelo corpo (próprio e o alheio), a sedução, modos de se pintar e vestir, os jogos sexuais, os comportamentos sexuais e assim por diante. Sexualidade: essa palavra contém em si um erro comumente cometido por nós. Sexualidade não quer dizer apenas o sexo ou ato sexual.Desta maneira, quando se fala de sexualidade infantil, não se quer dizer ato sexual ou movimentos de sexualidade erótica e/ou pornográfica na criança. A sexualidade infantil é a busca por satisfação, por sensações prazeirosas independentes de ato sexual. Esta busca está inicialmente ligada às sensações corporais e posteriormente às duvidas e questionamentos quanto ao corpo, suas funções, seu surgimento e origem.

Faz parte da opinião popular, quando se fala sobre sexualidade, achar que a mesma está ausente na infância e só despertará no período da vida designado de puberdade. Mas esse não é apenas um erro qualquer e comum, mas sim um equívoco de graves conseqüências, pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje sobre as condições básicas da vida sexual. Na maioria das vezes, esta distância entre a moral do universo adulto e a ausência de pudor infantil resulta em ensinamentos cheios de reprimendas e castigos - tratar o assunto com a naturalidade que merece é condição fundamental para possibilitar um diálogo aberto e saudável adulto-criança. SUPLICY (2002) explica como a repressão ou omissão frente as manifestações da sexualidade infantil, jovem, pode interferir no desenvolvimento emocional e intelectual. Fato exaustivamente teorizado por FREUD (1905) quando apontava que a investigação sexual infantil estava intimamente implicada no desenvolvimento intelectual-emocional por envolver um dos grandes mistérios e questionamentos infantil, o "de onde eu vim?". A energia inicialmente investida para entender e descobrir tal enigma, posteriormente será voltada para outros assuntos, como os estudos e os contatos sociais.

Bem se já é difícil a inclusão de programas de orientação sexual na grade curricular de nossas escolas ou centros de saúde, o que dizer de programas voltados para jovens portadores de necessidades especiais?
É uma experiência muito recente o trabalho, ou pelo menos a divulgação, publicação de trabalhos sobre orientação sexual voltada para crianças especiais. Em parte o preconceito e exclusão são os principais responsáveis. PAULA,REGEN & LOPES (2005) bem lembram que até pouco tempo atrás "nem se admitia que essas pessoas tivessem direito à expressão de sua sexualidade. Era como se a deficiência anulasse o desejo. Ainda hoje há quem as perceba como seres assexuados e não raramente elas próprias reprimem sua sexualidade porque nunca tiveram a oportunidade de se reconhecerem como seres sexuais".

Desta forma o trabalho de orientação sexual não só é importante por ser informativo e preventivo, mas por dar um lugar de ser sexuado, vivo dentro da sociedade. É uma das muitas formas inclusivas necessárias para retirar estas crianças da obscura ignorância na qual são mergulhadas, como se fossem culpadas por sua condição e incapazes de compreender aquilo que a cerca e até aquilo que a marca e toca, seu próprio corpo.
A autora MAIA(2007) aponta em seu artigo o quanto é comum olhar a criança especial como um ser angelical assexuado ou então extremamente inadequado quanto aos seus comportamento relativos à sexualidade - aponta a importância de serem vistos como seres sexuados e que tem direito de conhecer o próprio corpo e usufruir da sexualidade tanto quanto qualquer outra pessoa, mas necessitam, assim como outras pessoas, de orientação e informação que os levem à autonomia, e não à ignorância. Ressalta ainda que "é ernome a escassez de propostas educativas que ajudem o deficiente a perceber, reconhecer e discriminar as condutas socialmente adequadas em relação a seus desejos e afetos".

A criação do grupo de Orientação Sexual no Recanto

Foi ao inicio do ano de 2006 que percebeu-se a necessidade de criação de um grupo de orientação sexual interno à instituição Recanto Nossa Senhora de Lourdes, visto que os jovens estavam apresentando comportamentos sexualmente exacerbados, causando dificuldades para as educadoras, conflitos com os familiares e estimulando negativamente as crianças menores com seus comportamentos.

Os jovens vinham acompanhando uma novela que teve muito sucesso no Brasil, "Rebeldes", que veiculava cenas de sensualidade e mesmo sexualidade de maneira muito explícita. Os jovens estavam reproduzindo aquilo que viam seus ídolos identificatórios fazerem sem critica do que aquilo significasse socialmente. Assim aumentou muito o numero de jovens falando palavrão, beijando e agarrando-se em locais e momentos impróprios, discursos abordando uma vida sexualmente ativa e mesmo promíscua e mesmo fenômenos de masturbação em público. Atitudes de castigo e demonstração de reprovação por indisciplina e comportamento inadequado já haviam sido tomadas por parte das educadoras sem surtir muito efeito. Os jovens seguiam reproduzindo. Reproduzindo algo que não compreendiam muito bem, mas que achavam interessante pelo efeito que causava e claro, pelo prazer que ocasionava.Fazia-se necessário direcionar este fenômeno natural, que estava descontrolado e distorcido. A pessoa com deficiência não só pode como deve ser beneficiada por programas de orientação sexual, pois a falta de esclarecimentos favorece a ocorrência de condutas inadequadas como o exibicionismo, problemas de higiene, dificuldade nas relações interpessoais, exploração sexual e tantos outros. A Orientação Sexual da pessoa com deficiência não tem que ser "especial" ou necessariamente "diferente", o que muda na maioria das vezes são os recursos utilizados (MAIA,2007)

As educadoras tinham certa dificuldade em abordar a sexualidade com os jovens, pois achavam estranho esta ocorrência em crianças com tais características. Os pais estavam preocupados, mas não houve um único responsável que havia abordado o tema da sexualidade com seu filho. Surgia o questionamento "mas como pode, ele é uma criança, como pode estar fazendo isso...parece um safado""achava que crianças assim...com deficiência, não tinham disso". Havia clara negação do fenômeno sexual ser possível com seu filho, visto que ele era "especial". Mas sabe-se que o fato de uma criança ser "especial" não lhe retira a naturalidade e espontaneidade dos fenômenos humanos.PAULA,REGEN & LOPES (2005) em uma exposição sobre este aspecto apontam: "verificamos que a maior parte das pessoas com deficiência não consegue viver ou sequer expressar sua sexualidade (..)devemos ter em mente que em geral isto não é em decorrência da deficiência em si mas da falta de condições de levar uma vida digna, com igualdade de oportunidades e direitos respeitados. A libido naufraga no meio de tantas carências , ou seja, ninguém consegue realizar-se sexualmente de forma plena se não puder viver a vida em todos os seus aspectos."
Possivelmente se o fato não fosse orientado adequadamente, as crianças, com as broncas dos pais e reprimendas na escola acabariam por achar que é errado mexer com essas "coisas" da sexualidade.

Foi criado um grupo de orientação sexual com alguns jovens que vinham apresentando comportamentos exacerbados sexualmente e outros que eram modelos dos demais. A maioria tinha mais de 15 anos de idade. Todos ficaram empolgados com a idéia de "um grupo de sexo" - fato que foi longamente debatido com eles, a diferença entre sexualidade e sexo. Inicialmente separou-se um grupo masculino e outro feminino para direcionar temas mais específicos para meninos e meninas.
As primeiras orientações tratavam de perguntas que eles traziam a partir do que eles tinham ouvido na novela e filmes: Como faz o sexo? Com que idade posso fazer o sexo? Como o pipi fica duro? O que era sexo por trás? Menino pode beijar menino? Quando cresce o peito? O que é sexo oral? Por que os meninos gostam de abraçar por trás?

E muitas outras que indicavam, a ignorância e ao mesmo tempo sede de saber por parte dos jovens. Apos dois meses de orientações, nas quais ou trabalhava-se sobre as perguntas trazidas por eles ou se preparavam palestras elaborando temas específicos à orientação sexual (utilizavam-se informações e material didático numa linguagem mais próxima à deles, mostrando muitas figuras e fazendo uso de vídeos didáticos), o grupo masculino e feminino foi reunido em um só. Havia pedidos por parte deles próprios para que o grupo fosse unido. Aceitou-se a proposta desde que eles se esforçassem nos debates e respeito aos colegas integrantes do grupo. O grupo passou a ter 15 integrantes, a orientação ocorria uma vez por semana e tinha uma hora de duração. Entre os integrantes do grupo haviam 7 jovens portadores da Síndrome de Down, 1 com Síndrome do X-Fragil e 7 com Síndrome genética de etiologia a esclarecer. Eram 7 garotos e 8 garotas.

Os pais foram chamados e foi apresentada a proposta de estabelecer permanentemente o grupo de orientação sexual visto que o mesmo gerou resultados muito positivos: foi visível a partir desta experiência, a diminuição dos fenômenos de exibicionismo e sexualidade exacerbada internamente à instituição;maior aproximação e troca relacional entre os jovens; aproximação e posicionamento entre aqueles jovens mais retraídos e tímidos; posição ativa e questionadora frente ao educador; cuidado quanto à verbalização de palavrões; cuidado quanto aos assuntos e brincadeiras realizadas próximo às crianças menores; e busca dos educadores quanto algo relacionado à sexualidade, duvidas ou fenômenos ocorriam dentro da instituição (SCHUBERT, 2007).

Os pais ao mesmo tempo que demonstravam alivio pelo tema estar sendo abordado e orientado, demonstravam medo que isso fosse um incentivo à pratica sexual. Desta maneira também eles foram orientados em algumas reuniões sobre os assuntos, temas e objetivos deste grupo. As educadoras também foram orientadas e participavam vez ou outra de algum grupo ou orientavam certos temas relacionados à sexualidade em sala de aula.
Foi elaborado um documento no qual os pais autorizavam a freqüência de seu filho ou filha no grupo de orientação sexual, e os próprios integrantes do grupo assinaram um documento no qual se comprometiam à participar ativamente do mesmo, respeitar o colega e não fazer uso inadequado ou explícito dos temas abordados em casa ou na escola.

Apesar de ainda abordar temas voltados à sexualidade, hoje o grupo de orientação sexual tem muitas características de um grupo terapêutico - são trabalhadas as dificuldades relacionais que eles tem entre si, seus medos, as criticas à instituição e aos profissionais e as formas de relacionamento social, como namoro, casamento, amizade, colegismo. Recentemente eles próprios sugeriram e organizaram um baile, no qual pudessem dançar, conversar, comer, vir com as roupas que quisessem.

Assim este espaço, originalmente de orientação sexual, tornou-se um espaço de expressão. Expressão de seus medos, vontades, angústias e desejos. É um grupo especial, não por ter participantes portadores de necessidades especiais, mas por proporcionar um aprendizado e troca especial para aqueles que dele participam.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FREUD, S. - Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie(1905). Pychologie Fischer, Siebte unveränderte auflage, Frankfurt, Deutschland, 2002
MAIA, B.C. - Desejos especiais.(in) Revista Viver Mente e Cerebro, Duetto editorial, Scientific American, Ano XIV, N.174, SP, Brazil, Jul.2007
MENDES, V. & SCHUBERT, R. - Centro de Reabilitação para crianças com necessidades especiais Recanto Nossa Senhora de Lourdes. Apresentado no II Congresso Brasileiro de Psicologia, SP, Brazil, setembro-2006
PAULA, A.R.; REGEN, M. & LOPES, P. - Sexualidade e deficiência: rompendo o silêncio. Expressão e Arte Ed., SP, Brazil, 2005
SUPLICY,M. - Papai, Mamãe e Eu: o desenvolvimento sexual da criança de zero a dez anos. Seleções Reader´s Digest, FTD, RJ,Brazil, 2002
SCHUBERT, R. - A Educação Sexual Brasileira, o que se tem feito? Apresentado no II Congresso Brasileiro de Psicologia: Ciência e Profissão, SP, Brazil, setembro - 2006
SCHUBERT, R. - Orientação Sexual: Relato de uma experiência com jovens portadores de necessidades especiais. Apresentado na VI Feira Internacional de Tecnologias em Reabilitação, Inclusão e Acessibilidade (REATECH), SP, Brazil, Abril - 2007
XAVIER FILHA, C. - Educação sexual na escola: o dito e o não dito na relação cotidiana.
Ed.UFMS, MS, Brazil, 2000
WALKER, R. - The family guide to sex and relationships.
Macmillan, USA, 1996

Autor: René Schubert - Psicólogo e Psicanalista.