Um testemunho real (Justino e um sonho chamado "Titá")
Corria o mês de Maio de 1964 e numa aldeia de Barcelos a vida corria normalmente...
Contudo, a família Maciel sentia o mundo que a rodeava de um modo diferente, esperavam ansiosamente a chegada de um novo elemento na família.
Justino Maciel e Ana de Jesus, de 40 anos, esperavam a qualquer momento o nascimento de mais um filho, o seu nono filho. Seria menino ou menina? Teria olhos verdes como a mãe? Cor de avelã como o pai? Ou nasceria mais um(a) loirinho(a) de olhos azuis como dois dos irmãos mais velhos? Eram uma família grande, com filhos muito diferentes… estavam curiosos, mas acima de tudo felizes! Chegava mais um elemento à família, que coroava o amor daquele casal.
Eram sem dúvida um casal muito feliz: amavam-se muito, tinham oito filhos lindos e uma vida que, apesar de regrada e necessariamente bem organizada, era o sonho de muitos.
Até que, no dia 12 de Maio, uma nova filha nasceu! Os irmãos mais velhos esperavam ansiosos, longe dos aposentos onde a criança nascia, que o pai chegasse com a boa nova: “É menino!” – diziam os rapazes … “É menina!” – afirmavam as raparigas! Justino chegou finalmente para dar a noticia aos filhos: “É uma menina.” – disse com o semblante carregado e sem dizer aos filhos que algo de diferente se passava.
Os seus filhos ficaram todos muito felizes. Mas como lhes contaria Justino que esta irmã mais nova, esta bebé tão esperada, era “diferente”? Como iriam eles reagir? O que iria ele próprio fazer? O povo diria que a criança tem um “malzinho”: mas que mal é esse?
Justino soube depois que tinha uma filha com Trissomia21, mongolismo, como lhe foi dito. E o que fazer agora? Justino e Ana, juntos num tão grande amor, estavam agora também juntos a iniciar um novo caminho nas suas vidas, caminho este com muitos atalhos, muitos obstáculos… um caminho totalmente desconhecido, que os deixava inseguros, mas no qual urgiam os primeiros passos.
Após uma primeira reacção de choque, frente a tão inesperada alteração em sua família, frente a um futuro totalmente desconhecido… após a dificuldade inicial de interagir com o bebé… após se fecharem na sua dor… finalmente, todos juntos, em família, iniciaram esse caminho.
“No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, tinha uma pedra, no meio do caminho tinha uma pedra...” (Carlos Drummond de Andrade) Cada pedra foi sendo afastada do caminho por todos.
A Titá (assim chamavam carinhosamente os irmãos à sua irmã Assunção) foi crescendo rodeada de muito amor, muito mimo, muito carinho. Uma princezinha muito protegida e querida por toda a família. A rainha do coração de todos! Até aos seis anos viveu no seu “reino” uma infância muito feliz, livre de preocupações e grandes alterações no seu ritmo diário. À parte a sua frágil saúde física, tudo corria bem à “menina dos olhos” desta família.
Até que um dia Justino sonhou…e o “sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos de uma criança.” (António Gedeão) Justino sonhou… ele queria que este seu pequeno “anjo" aprendesse a voar, a cantar, a ler e escrever.
Até mesmo que conseguisse contar as estrelas no céu” (http://www.appt21.org.pt.). Iniciou assim um processo semelhante aquele que já tinha desenvolvido com os seus outros oito filhos: ensina-los, ele próprio, a ler, escrever e contar.
Justino era bancário, profissão à qual os “atalhos” de sua vida o tinham conduzido. Contudo, o seu sonho maior era ser mestre-escola, professor das primeiras letras nos bancos da escola primária, à semelhança do seu velho avô e de dois dos seus irmãos mais velhos.
Seu sonho acabou por ser realizado ensinando todos os seus filhos. Porém o método tradicional de ensino não se mostrou adequado à Titá. Como fazer então? Simultaneamente ao trabalho que desenvolvia em casa com esta sua filha, inscreveu-a numa escola de ensino especial (em Viana do Castelo) onde supostamente a Titá aprenderia e desenvolveria competências básicas e essenciais para sua vida adulta, inclusivamente a ler, escrever e contar. Justino começou a perceber que a escola onde tinha a filha era como um “depósito de deficientes”, que servia para albergar institucionalmente todas aquelas crianças que mais ninguém queria receber.
Justino, revoltado com a forma como “a menina dos seus olhos” estava a ser tratada, pensando (e com razão) que muito mais poderia ser feito por esta sua filha e desistindo do método tradicional de ensino que desenvolvia paralelamente em casa, avançou por um novo caminho.
Caminho esse que se verificou ser a “estrada principal” do processo de ensino aprendizagem que desenvolvia com a Titá. “Descobrindo a facilidade com que ela identificava e memorizava figuras, iniciou uma criteriosa recolha de imagens e de letras e ditongos, à máquina e à mão, que ela facilmente associava às meninas e aos meninos representados (…)
Recuemos no tempo: “Estou a organizar um livrinho de figurinhas para ensinar a Maria da Assunção a ler. Os nomes das figurinhas começam pelas letras do alfabeto, abertas e mudas para assim depois começarmos a juntar. Ela já conhece os nomes de todas as figuras, meninos e meninas. Vamos ver se daremos conta desta missão. Se o conseguir dou por terminado o meu sonho: ensinar as primeiras letras a todos vós. (…)”.
O sonho do autor, assim expresso num postal de 9 de Fevereiro de 1971 a um dos seus filhos mais velhos, cumpriu-se: antes de nos deixar, pôde experimentar a alegria de ver, mais do que os outros filhos professores, a Titá pronta a concluir com sucesso a escolaridade obrigatória.” Maciel, J. (extraído do Livro de Leitura da Titá) Os sonhos de Justino concretizaram-se: ensinou as primeiras letras a todos os seus filhos e, paralelamente ao seu papel de pai, paralelamente ao seu percurso profissional como bancário, conseguiu realizar o seu sonho de ser professor.
Como pai e professor encontrou infinitas pedras no seu caminho… pedras estas que poderiam ter sufocado as sementes dos seus sonhos, as sementes da sua esperança. Estas pedras ainda hoje criam, para muitos pais e professores, muros de um processo de exclusão que segrega todos aqueles que por alguma razão são diferentes.
Justino, com o seu espírito desafiador e inconformado foi capaz de transformar a realidade. Perante um percurso pleno de obstáculos, deserto de opções, surge este PAI que remove a pedra que estava no meio do caminho. PAI este que pode ser qualquer um de nós pais e professores, mais ou menos conformados com o percurso que a educação e o ensino especial estão a seguir. Podemos todos ser PAIS: podemos criar, reinventar, inspirar milhares de outras pessoas para lutarem nas veredas deste desafio pessoal e educativo.
Antes de Justino, muitos outros o fizeram… quase sempre motivados por uma força maior. Nós, pais e professores inconformados do século XXI, à luz de todos esses exemplos, desses grandes homens e mulheres que previamente nos desbravaram os caminhos, deveríamos todos adoptar uma postura que marque a diferença. Devemos possibilitar que os nossos filhos, que os nossos alunos, todos eles especiais, com ou sem deficiências, percorram trilhos nunca antes desbravados, que sigam os atalhos do erro construtivo, da dúvida significativa, da curiosidade que os levará ao seu destino. Justino assim o fez.
Pouco sabendo de teorias pedagógicas e somente com a 4ª classe, descobriu qual o caminho que levaria a sua filha mais nova a aprender a ler, escrever e contar. A verdade é que Justino com a historinha que criou sobre os amigos Ana, Belisário, Clara, Demócrito… até ao Xenofonte e a Zeferina, conseguiu que a Titá aprendesse a ler e escrever, quando todos os caminhos “possíveis” indicavam que esta não conseguiria completar com sucesso o seu percurso escolar.
Não só aprendeu a ler, escrever e contar, como também se auto-propôs para o antigo exame da 4ª classe e passou com distinção. Mais ainda: passados alguns anos, e após ter estudado conteúdos temáticos associados ao 2ª ciclo do ensino básico com o apoio de todos os seus irmãos já professores, tornou a se auto-propor a exame da antiga escola preparatória (2º ciclo) e mais uma vez foi aprovada a todas as disciplinas.
A Titá, por ela própria, não quis estudar mais com o objectivo de se propor a exames. Continua a estudar, mas só por gosto e por paixão pessoal por certas temáticas. “Agora estudo só para mim!” – diz com orgulho.
A Titá é a minha tia mais nova, irmã da minha mãe. Justino é o meu avô materno que, onde quer que esteja, está sempre a dar-me força para lhe seguir as pisadas: como mãe e como professora! Vou tentar desenvolver um material de apoio educativo, no âmbito da pós-graduação que estou a tirar, que ajude pedagógicamente crianças com Trissomia21.
Vou tentar como mãe de uma criança também muito especial, afastar-lhe as pedras do caminho, deixando que os acontecimentos da sua vida germinem ao ritmo que ele precisar. Vou tentar... vou tentar acreditando sempre que é possível conseguir!
Autoria: Claudia Carvalho (professora)
Data: Maio de 2006