A Deficiência Mental
Em todas as sociedades e culturas – do passado e do presente – encontramos referências directas à existência de pessoas com Deficiência Mental. No entanto, o entendimento científico sobre a natureza da Deficiência Mental e as propostas resultantes da atenção profissional e social pelas pessoas afectadas pertencem, essencialmente, ao século XX. Neste século, procurou-se organizar critérios de definição claros e não ambíguos, porém, tal não deixou de ser efectuado sem dificuldades. Apesar dos grandes progressos verificados, quer nos conhecimentos teóricos como nas práticas reabilitativas, a definição de Deficiência Mental permanece controversa. Na base destas dificuldades está a impossibilidade de incluir em definições unitárias a heterogeneidade desta população (quer em termos etiológicos como ao nível comportamental e das necessidades educativas) ou, por outras palavras, o facto deste se tratar de um problema complexo, multideterminado e multidimensional e, por isso, não redutível a uma definição única (Albuquerque, 20.
Ao longo do século XX a concepção global sobre estas pessoas foi mudando progressivamente. Das concepções médico-orgânicas passou-se a concepções psicológicas, de tipo psicométrico, e, destas últimas passou-se, nos anos 90, a uma concepção multidimensional centrada no funcionamento do indivíduo inserido no ambiente que o rodeia. A American Association on Mental Retardation (A.A.M.R.) foi a entidade responsável por esta proposta que recebeu grande atenção internacional nos meios científicos e profissionais (Alonso & Bermejo, 2001), procedendo à sua revisão em 2002. Esta associação, cuja designação actual é American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (A.A.I.D.D.), tem liderado o campo de estudo sobre a Deficiência Mental, definindo conceitos, classificações, modelos teóricos e orientações de intervenção em diferentes áreas, e influenciando sistemas de classificação internacionalmente conhecidos como o DSM-IV e CID-10 (Carvalho & Maciel, 2003).
O actual modelo proposto pela A.A.I.D.D., mais especificamente, por Luckasson et al consiste numa concepção “…funcionalista, sistémica e bioecológica, incluindo as dimensões intelectual, relacional, adaptativa, organicista e contextual. A deficiência mental é considerada condição deficitária, que envolve habilidades intelectuais; comportamento adaptativo (conceitual, prático e social); participação comunitária; interacções e papéis sociais; condições etiológicas e de saúde; aspectos contextuais, ambientais, culturais e as oportunidades de vida do sujeito.” (Carvalho & Maciel, 2003, p. 147)“…[A] deficiência mental não representa um atributo da pessoa, mas um estado particular de funcionamento.” (Carvalho & Maciel, 2003, p. 150)
Segundo esta perspectiva, o processo de diagnóstico requer o preenchimento de três critérios:
Funcionamento intelectual global inferior à média
A inteligência é concebida como a capacidade geral, incluindo o raciocínio, a capacidade de planeamento, de resolução de problemas, pensamento abstracto, compreensão de ideias complexas, rapidez de aprendizagem e aprendizagem por meio da experiência. Estas habilidades podem ser objectivamente avaliadas através de provas de inteligência, considerando-se como ponto discriminante duas unidades de desvio-padrão abaixo da média em testes padronizados para a população considerada.
Limitações significativas no comportamento adaptativo
O comportamento adaptativo diz respeito ao conjunto de habilidades sociais, práticas e conceptuais adquiridas pela pessoa para responder às exigências do dia-a-dia. As primeiras relacionam-se com a competência social (p. ex., responsabilidade, habilidades interpessoais, observância de regras e normas, etc). As habilidades práticas remetem para o exercício da autonomia (p. ex., actividades de vida diária, utilização de recursos da comunidade, utilização do dinheiro, actividades ocupacionais ou laborais, etc). Finalmente, as habilidades conceptuais estão relacionadas com aspectos académicos, cognitivos e da comunicação (é o caso da linguagem - receptiva e expressiva, leitura, escrita, etc).
Existem instrumentos de avaliação que permitem uma análise mais objectiva do comportamento adaptativo sendo o ponto discriminante, tal como para o funcionamento intelectual, de dois desvio-padrão abaixo da média.
Início antes dos 18 anos
A idade de início das manifestações ou do atraso deverá situar-se na infância ou adolescência.
Práticas do Psicólogo no âmbito da Deficiência Mental
Com alguma frequência, o papel que a Psicologia assume junto da pessoa portadora de Deficiência Mental tende a restringir-se a actividades de triagem e avaliação. Por outras palavras, tende a centra-se no estabelecimento do diagnóstico e encaminhamento para serviços adequados (Glat, 1999).
Porém, e se considerarmos as alterações progressivas e significativas que desde a segunda metade do século XX tem sofrido a concepção de Deficiência Mental, facilmente verificamos que a actuação deste profissional pode e deve ser muito mais ampla (Alonso & Bermejo, 2001; Glat, 1999). Para além de apontar e quantificar o grau do desvio, pode definir estratégias que promovam o crescimento interno, a autonomia e a independência pessoal. Atenção especial deve ser dedicada ao desenvolvimento de condutas e competências que fomentem a adaptação às normas sociais e, consequentemente, a integração social e profissional (Glat, 1999). A promoção da saúde mental, a intervenção face a perturbações psicológicas que coexistam, o apoio na construção da identidade pessoal e de um projecto de vida constituem, igualmente, aspectos a trabalhar.
Esta reflexão será direccionada, sobretudo, para o atendimento directo à pessoa portadora de Deficiência Mental. Todavia, não podemos deixar de ressaltar que o público-alvo da intervenção do Psicólogo se estende à família, professores, assim como, aos demais profissionais envolvidos no processo terapêutico.
Vejamos, então, algumas acções e estratégias a cargo destes profissionais.
Desenvolvimento de processos de avaliação psicológica
Na literatura podemos encontrar diversas definições do conceito de avaliação psicológica mas, de forma sumária, podemos dizer que se trata de um processo de resposta a questões, procurando-se a aquisição e integração de informação relevante relativa às diferentes dimensões da pessoa avaliada (afectiva, social, pedagógica, cognitiva, etc), com recurso a diversos métodos e instrumentos, a vários agentes ou fontes de informação (Simões, 1994).
A avaliação psicológica pode ser utilizada em diversos contextos ou áreas (educação, clínica/saúde, forense, trabalho/organizações, entre outras) e com diferentes populações (distúrbios do comportamento, distúrbios emocionais, distúrbios do desenvolvimento, situações de risco, etc), assumindo especificidades em cada uma delas (Simões, 2004).
No contexto que aqui está a ser considerado, evidencio como principais objectivos da avaliação psicológica:
- Diagnóstico;
- Análise compreensiva do funcionamento actual da pessoa (das capacidades, dos problemas ou dificuldades);
- Planeamento da intervenção (baseando-se nos recursos e dificuldades identificados no sujeito);
- Medida da eficácia das intervenções.
Embora sofra variações de caso para caso, os principais domínios a avaliar são o cognitivo, o do comportamento adaptativo, emocional e o do desenvolvimento.
Formulação e concretização de planos de intervenção psicológica
O Psicólogo tem ao seu dispor um leque diversificado de estratégias de intervenção, cuja aplicação é realizada de acordo com a especificidade do caso (grau de Deficiência Mental, idade, a presença de doença mental associada, etc). Analisemos sucintamente algumas destas técnicas.
Terapia comportamental e terapia cognitivo-comportamenta
Destacam-se como as abordagens consideradas como mais eficazes, juntamente com a Psicofarmacologia, na intervenção neste tipo de população e com perturbações mentais (perturbações de ansiedade, do humor, quadros psicóticos, etc) e problemas do foro comportamental (auto e hetero-agressões, etc) associados (Beirne-Smith et al, 2002; Alonso & Bermejo, 2001).
A terapia comportamental baseia-se, em grande parte, nos princípios das teorias da aprendizagem e tem como principal objectivo a análise e modificação dos comportamentos (Knopf, 1984; Barroqueiro, 2002). Procura ajudar a extinguir comportamentos não adaptados ou indesejados, substituindo-os por comportamentos adaptados. Enfatiza a importância dos comportamentos actuais em detrimento dos comportamentos passados; fixa-se sobretudo no ambiente e nos comportamentos observáveis. Compromete-se com o rigor científico ao estipular objectivos e metas claramente definidos (Barroqueiro, 2002). Pode ser aplicada a pessoas portadoras de Deficiência Mental de todas as faixas etárias (Beirne-Smith et al, 2002).
Embora a abordagem anterior seja dominante com este tipo de população, a terapia cognitivo-comportamental pode ser também muito relevante, sobretudo face a perturbações do humor e de ansiedade e em casos cujo défice cognitivo é ligeiro ou moderado) (Beirne-Smith et al, 2002). Esta integra os conceitos e técnicas das abordagens comportamentais com os das cognitivas, que valorizam a influência de factores cognitivos na forma como a pessoa reage aos factores do meio e na constituição de patologias; dão uma grande ênfase aos pensamentos da pessoa, à visão que tem de si e do mundo procurando levá-la a identificar e alterar pensamentos disfuncionais. Portanto, esta abordagem centra-se quer na correcção das distorções cognitivas (técnicas cognitivas), quer na modificação das condutas inadequadas (técnicas comportamentais) (Bahls & Navolar, 2004).
Reabilitação cognitiva
A cognição diz respeito às capacidades que nos fazem pensar, perceber as coisas, alcançar, compreender e responder à informação, permitindo-nos funcionar no nosso ambiente, na vida diária. Entre estas capacidades encontramos a atenção, a memória, a capacidade de resolução de problemas, de organização de informação, etc. Considerando que nos quadros de Deficiência Mental, o domínio cognitivo se encontra significativamente afectado, a reabilitação cognitiva assume especial relevância.
Esta consiste num “conjunto de técnicas específicas utilizadas para melhorar o funcionamento de certas áreas cognitivas, tendo como objectivo fazer com que as pessoas vivam melhor o seu dia-a-dia” (Medalia & Revheim, 2007, p. 21). Perante défices cognitivos pode-se intervir de três formas: usando técnicas remediadoras, estratégias compensatórias ou adaptativas. Estas abordagens podem ser utilizadas individualmente ou associadas; a sua selecção é feita partindo dos pontos fortes e fracos da pessoa.
Desenvolvimento pessoal e social
Treino de competências sociais
A realização de programas ou actividades centradas na aprendizagem de competências sociais é algo desenvolvido por diversas áreas técnicas tendo a Psicologia um papel importante, entre outras, na estimulação de competências de interacção social necessárias para estabelecer e manter relações (pedir ajuda e conselho aos outros quando necessário, resistir à frustração, responder adequadamente a críticas, expressar adequadamente os sentimentos e afectos, demonstrar desacordo em relações a opiniões e actuações de outrem, gerir conflitos, etc).
Promoção do bem-estar psicológico
Apoiar a pessoa no seu processo de auto-conhecimento, a saber mais acerca dos seus sentimentos, pensamentos, projecto de vida; a desenvolver a auto-estima e auto-confiança.
Outras estratégias
Ludoterapia
Dadas as frequentes dificuldades ao nível da comunicação e linguagem, pode ser importante o recurso à ludoterapia pois trata-se de uma técnica que diminui a necessidade de comunicação verbal. Através de actividades lúdicas (mais ou menos estruturadas), a pessoa pode exprimir sentimentos, tensões, medos (forma de expressão); melhorar o controlo dos impulsos; desenvolver as competências de relação interpessoal; a capacidade de tomar decisões, etc.
Aconselhamento
O aconselhamento não deve ser entendido como o acto de dar conselhos. Consiste numa relação de ajuda que tem como objectivo promover uma adaptação mais adequada, da pessoa, face às suas dificuldades ou problemas de índole diversa, tentando optimizar os seus recursos pessoais. A pessoa expõe o seu problema no sentido de obter ajuda para o definir com clareza e/ou escolher a solução mais adequada.
Outras intervenções, abordagem centrada no ciclo de vida
Para terminar vejamos outro tipo de intervenções, organizadas de acordo com uma perspectiva desenvolvimentista:
Idade pré-escolar: intervenção precoce;
Idade escolar: apoio à integração escolar e participação em processos de avaliação e na elaboração de Programas Educativos Individuais;
Transição para a vida adulta: orientação vocacional (com base numa avaliação de competências, de interesses e aspirações), apoiando na selecção de um percurso educativo, profissional ou ocupacional e na posterior adaptação a esse mesmo percurso.
Idade adulta: apoio a processos de integração residencial, profissional e ocupacional.
Patrícia Afonso dos Santos
in http://www.medipedia.pt/