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educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

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EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXIX

Numa manhã... Bebé entrou na sala de aula com o seu boneco...

Para além deste... Fazia-se acompanhar de pequenos brinquedos e outros adereços desavisados do material escolar…

A sala compunha-se aos poucos... Enquanto Samuel distribuía lentamente os dossiês de fichas pelos colegas…

Carrapito trazia os lápis... Borrachas e afias... Com a rapidez necessária de tornar ao seu lugar... Para fazer a data e auxiliar o seu colega e amigo Filipe…

Ramos... De pé... Como sempre... Preparava-se para afiar o lápis... Mas enquanto isso... Ainda ofereceu a Pedro uns boletins do totoloto... Recomendando-lhe que jogasse…

Cristina... Estacionada no seu lugar... Aguardava de mochila às costas... Pelo material e sobretudo pelas instruções e ordens do seu professor... Cumprimentando os colegas um a um... Sem sair do lugar... Enfim… Um olhar vesgo e distante... Que procurava algum relacionamento e proximidade... Alternando “Runs” “Runs”... Que lhe permitiam estar ali... Na forma mais básica de controlo... Emocional e provavelmente orgânico...

Enquanto Pedro preparava os exercícios no quadro... Bebé aguardava-o erguida... Nas suas costas...

- Olá Bebé! – Cumprimentou o professor... Dando-lhe dois beijos na face...

Imediatamente... A aluna esticou o seu braço... Apontou-lhe o seu boneco... Bem na sua direcção... 

Pedro segurou-o exclamando:

- Que giro!... Mas eu já o conheço! – Informou...

Suavemente e quase sussurrando... Com a voz hesitante e sumida do costume... A aluna confessou que o boneco era bonito como o seu professor...

- Achas parecido comigo?

A aluna respondeu afirmativamente... E a maioria dos alunos que ouviam a conversa... Concordaram...

- Tadinho! – Lastimou o professor encenando... – Está descalço!...

Rapidamente... Bebé foi à sua mala buscar um par de sapatos pretos...

O professor sorriu... E até o colocou junto à sua face... Para que os alunos lhe tirassem as parecenças... Na verdade... Foi um bom motivo para que os alunos participassem numa sessão de discussão acerca do vestuário e das semelhanças físicas...

Num pequeno momento encenaram-se situações básicas de um quotidiano normal e real... Que possibilitaram captar a atenção dos seus alunos... Assim como... Realizar algumas aprendizagens acerca das actividades da vida diária... O nome das peças que compõem o vestuário... Das meias ao casaco... Sapatos... Calças e saias... Entre outros... Falou-se no fundo da sua aplicabilidade e utilidade... E mais...

Bebé estava radiante pelo papel de destaque que conseguira naquela circunstância e os seus colegas desfrutaram com energia da conjuntura que ali surgiu por acaso... Isto... Se é que... Alguma coisa é por mera casualidade...

Pedro... O boneco... Era figura sempre presente... Na mesa da sala de aula... No refeitório ou ginásio... Todos os alunos e funcionários do colégio o conheciam...

Na brigada de limpeza criada pelo professor... Bebé segurava-o na mão... Ao mesmo tempo da vassoura… O professor teve de intervir... Convidando-a a colocar a sua nova aquisição no bolso das calças... Ou num compartimento da mochila... Enfim... Até nas aulas de psicomotricidade... Houve muita luta para que Bebé abandonasse o outro Pedro apenas por instantes... Mas... Foi só isso que conseguiu... Nada mais...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXVIII

Desde que o professor chegara ao colégio... Muita coisa havia mudado… Uma das quais prendia-se com a integração dos alunos na comunidade envolvente…

Periodicamente... Pedro levava-os à biblioteca municipal...

Em pequenos grupos... Passeavam-se pelas ruas e visitavam pequenas lojas e oficinas…

Um trabalho que Pedro começou a fazer desde que chegara àquela cidade... Protocolos orais com pessoas simples... Trabalhadores e habitantes da cidade... Que permitiam uma articulação sustentada... Entre a escola e sociedade...

Começaram a vencer-se pequenas barreiras... A maioria dos alunos aprenderam a ser mais seguros e comunicativos... Cumprimentando as pessoas na rua ou nos locais que visitavam... Coisa que Pedro fazia questão...

Por vezes... Incumbia-os de tarefas simples... Obrigando-os a fazer pequenos recados... Dizer frases rudimentares... Tornando-os mais sociáveis e simpáticos...

Um treino que rapidamente trouxe frutos... Aos poucos... Passaram a olhá-los com outros olhos... Aceitando e respeitando as suas diferenças...

Numa dessas saídas... Numa sexta-feira de manhã... Deslocaram-se a um parque municipal…

A muito custo... Pedro conseguiu que saíssem todos os alunos e quase todos os funcionários... Faltaram Júlia... O pessoal da cozinha e Luz... E é claro... Dona Filó...

Por entre muitos murmúrios e lamentos das suas colegas... Lá foram...

O professor estruturou uma grande fila... Onde... Os alunos mais velhos e afoitos... Auxiliavam no controlo da mesma…

Na frente… Com Carlos e Virgílio ao seu lado… Pedro comandava as operações...

Rosa... Patrícia e Cláudia... Ajudavam Telma e Saudade com os alunos da sala de estimulação global um... Revezando-se no deslocamento das cadeiras de rodas...

Leontina foi de carrinha com Mário... Não fosse ser necessário o transporte imediato de algum dos alunos... Ou de alguém... Como justificou Pedro... Ridicularizando o facto perante algumas colegas...

A comunidade humana parava... Contemplando aquela estranha paisagem... Humanizada e diferente... De caras pálidas e rostos amorfos... Corpos estranhos andando desajeitados... Repletos de expressões impávidas ou demasiado contentes... Numa brancura aparente que agravava a tristeza de quase nada... Ilusões... Sonhos... Que pelas ruas rompiam tabus... Há muito tempo encarcerados…

Sorridentes e bem dispostos… Pareciam funcionar finalmente como um grupo... Ainda que pouco homogéneo... Porém... Unido...

O professor fez um sinal a Carla... A terapeuta da fala... Para que o substituísse na liderança... E passou revista ao grupo... Parando e confraternizando com os alunos à medida que circulava…

Radiantes... Os alunos... Agrupados dois a dois e por vezes três a três... Clamavam pela sua atenção...

Lá estavam Bebé e Cristina... Ramos... Raquel e Fábio... Filipe e Carrapito... Todos quiseram um beijo... Pedro teve de os beijar a todos…

Seguidamente... Martinha... Com Roberto... Teófilo... Ana e Luís... E mais alguns... Como… Ilda de mão dada com Hélio... Ronaldo e Maura... Os dois clones... Que bastava que engrenassem para se deslocarem... Samuel... Angela de mão dada com Tatiana... Entremostrando ao professor que a estava a dar conta da tarefa... Sem qualquer dificuldade... Numa tentativa constante em ser como os adultos normais... Enfim... Todos o cumprimentaram...

- Vamos jogar à bola? – Gritou Roberto... Arregalando os olhos para o seu professor...

Pedro respondeu afirmativamente e seguiu... Efectuando um aceno de despedida com o braço...

Atrás... Estava Telma... Com Ruben... Rosa... Patrícia e Cláudia... Traziam os restantes... Bento... Salvador e Miguel...

O professor falou para estes quatro alunos e tocou-lhes... Todos reagiram positivamente... À excepção de Ruben que efectuou um ruído enorme...

- É sempre assim! - Exclamou Telma... – Não é por ser contigo! – Acrescentou gaguejando... E brincando... Desenhando com os lábios um sorriso docemente suave...

E quem sabe... Se não seria esta... A sua forma de responder com agrado a um cumprimento ou um afago...

Rafael vinha com Saudade... Próxima de Elisa... Ambas carrancudas e mal dispostas...

O professor cumprimentou-as com extrema educação... Num acto de pura encenação... Ao que estas tiveram de responder com agrado e civilidade...

- Vamos passear? – Questionou Pedro... Dirigindo-se a Rafael... Que com os olhos muito abertos e rosto muito pálido... Pareceu rodopiar a cabeça... Numa inconstância de actos e de acções... Perdidos e ao acaso...

- Isto é muito complicado! – Desabafou Elisa... De mão dada com Andreia...

- Nada se faz sem trabalho! – Exclamou Pedro... Dando um beijo a Andreia e falando-lhe... Como se Elisa não existisse...

Andreia era uma miúda complicada... Contudo... Elisa estava a ser ajudada de perto por Dora...

De repente... O professor foi abraçado violentamente por Sónia... Que sem medir a sua força... Reagiu ao intento de lhe dar um beijo…

As colegas de Pedro riram-se... Este beijou-a e falou-lhe um pouco... Levando-a com ele…

Por fim... Vinha Irene... De mão dada com Zé... Que até vinha calmo... Talvez... Surpreso pelo ambiente exterior... Completamente diferente do interior das paredes do colégio ou da sua casa... Coisa pouca e única que conhecia... Contemplando a cidade com toda a atenção do mundo…

Irene confidenciou ao professor... Que este tipo de saída estava a ser muito positivo... Sobretudo para Zé... O qual se aproximou de Pedro e lhe segurou delicadamente na cabeça... Abaixando-a para si e beijando-o na testa…

Sónia ficou com ciúmes e barafustou... Emitindo sons e gesticulando...

- Anda Sónia! – Ordenou João... Estendendo-lhe a mão...

Sónia foi contrariada... Contudo... Enviou imensos beijos para Pedro... Com o vento...

Sarita e Bruninho vinham mais devagar... O excesso de peso... Fazia-os suar...

- Como estão os meus amigos?

- Tudo bem! – Respondeu Sarita... Com voz ameninada… Empregando em cada passada... A lentidão do seu grande esforço... Penoso e doloroso...

Ao longe... Carlos acenava... Apontando Roberto... Que pisava a estrada... Imediatamente... Pedro gritou:

- Todos no passeio! Ninguém sai do passeio! Dois a dois!

O grito do professor... Fez-se ouvir na enorme rua... E captou a atenção dos transeuntes que por lá circulavam... Alguns pararam e olharam-no…

Pedro saudava-os e lembrava constantemente ao seu grupo:

- Não se esqueçam de cumprimentar as pessoas!

Por entre o grupo... Virgílio furou até chegar a Pedro... Que gaguejando... De olhar vesgo... Repetindo o movimento curto e repentino do sobrolho e da boca... Comunicou:

- A Carla disse para irmos por outro caminho! É mais perto!

O professor seguiu-o... Pedindo aos alunos que continuassem... Prometendo que voltaria de imediato... Sónia irritou-se e chorou em alto e bom som... Abraçando-se com tristeza a João... Gritando em completo desalento:

-Popêeeeeeeeeeeeeeeeee!...

Uma mágoa que deplorou nas suas lágrimas e ruídos...

Ao chegar à linha da frente... Carla sugeriu um percurso mais directo pela zona mais velha e menos movimentada da cidade... Pedro concordou e rapidamente encaminharam os alunos para um novo percurso...

Estes tiveram oportunidade de contactar com a parte mais envelhecida da cidade… Decorada de lojas e casas mais tradicionais... Que enchiam aquele cenário com muito mais cor...

As pessoas... Continuavam a olhá-los... Encantadas por verificar tanta juventude e boa disposição... Perante os rostos alegres que sonorizavam as ruas com música e canções da moda...

Antigas e sem passeio... As estradas... Forradas a paralelepípedo nem sempre tinham trânsito... Nem tão pouco estacionamento... Por vezes... Os viajantes e os distribuidores tinham de entrar com carrinhas e pequenos camiões... Para abastecer as lojas do comércio mais tradicional...

Foi isso que aconteceu... Um veículo atravessado no meio da estrada abastecia um pequeno comércio...

Alunos e adultos contornaram-no sem dificuldade... Passando junto à parede... Até as cadeiras de rodas conseguiram passar... Isto porque... Os alunos eram leves... O que permitiu que se efectuasse uma ou outra manobra de ajuste…

Ainda assim... Irene chamou pelo professor... Infelizmente Sarita não cabia na curta passagem...

Amargurada... Sentou-se num patamar...

Do outro lado... Bruno olhava-a entristecido... Assim como todo o grupo... Que parara por momentos...

No rosto de Sarita... Uma lágrima escorreu silenciosamente... Num concentrado líquido de desconsolo...

- Eu vou com ela dar a volta! – Exclamou Irene... Abraçando-a amorosamente...

Sarita olhava para o chão... Perdida como tantas outras vezes na indiferença dos outros... E ergueu-se para acompanhar Irene...

O professor contemplou a aluna e fez-lhe uma festa no seu rosto adiposo... A sua amargura magoou-o por dentro... E saiu dali...

Entrou num café e perguntou bem alto:

- Bom dia! De quem é aquele carro?

Toda a gente o olhou... Uma senhora idosa esticou o pescoço para o ver melhor...

- Incomoda? – Questionou um senhor de meia idade... Sem o olhar... Enquanto tomava o pequeno almoço tranquilamente...

- Venha ver você mesmo! – Pediu Pedro... Saindo para fora...

De pé... Sarita levantara um pouco a cabeça... Abraçada a Irene... Que com doçura a amparava...

O resto do grupo aguardava o desenlace da coisa... Sobretudo Bruno... Do outro lado... Bem junto à viatura estacionada...

- Mas afinal o que se passa? – Interrogou o homem... Puxando as calças para cima à saída do café... – Quem é que não consegue passar?

O professor olhou-o afincadamente... E com um gesto discreto indicou-lhe a sua aluna...

Subitamente... O tal homem de meia idade... Que ainda há pouco tomava o pequeno almoço com tranquilidade... E... De uma forma imediata… Mudou a sua feição... Interiorizando o que estava à vista com alguma vergonha e embaraço...

Imediatamente pediu desculpa e entrou na viatura... Desaparecendo dali...

Os alunos gritaram e aplaudiram este acto... Gritando vivas a Pedro e Sarita... Que agora tinha o caminho livre... Bruno confortou a colega... Assim como Maura... Raquel e Ilda…

Pedro foi abraçado violentamente por Sónia... Filipe e Bebé... E outros mais…

Muitas das pessoas vieram à janela... Assomar-se da situação... Talvez… Para ver o que seria aquela algazarra que por ali se vivia... Todos os alunos congratulando o docente... Como se este fosse uma figura pública... E na verdade... Era muito mais que isso para aquelas crianças e jovens... Muito pouco cativadas pelas celebridades...

As colegas de Pedro ajudavam-no a libertar-se dos alunos... Ordenando-os de novo na fila... Mas estava difícil...

O professor escapou-se e trepou a uma caixa de electricidade... Gritando:

- Todos em fila! Como estava! Vamos para o parque!... Hoje a cidade é nossa!

Os alunos explodiram numa ovação... Assim como algumas colegas e até as velhotas que assistiam nas janelas àquele estranho espectáculo...

- Bonitão! – Apregoou Maura... Esganiçando a voz... Ao mesmo tempo... Sónia clamava por Popê... Ao afastar-se em lágrimas... Como se fosse a última vez...

O grupo reorganizou-se e continuou a jornada até ao parque da cidade...

Para além do desporto... Que posteriormente fizeram… Tiveram oportunidade de passear e de contactar com parte da vida real... Uma experiência deveras enriquecedora...

Durante o lanche... Pedro pediu ao concessionário do café do parque... Se podiam usar a esplanada... Este acedeu…

Só que… Desta vez… Sarita também não cabia nas cadeiras de plástico... Ainda assim... O homem do café resolveu a situação com um barril de imperial e uma tábua...

- Não te preocupes minha querida! Não é a primeira vez que acontece! – Disse Pedro... Confortando a sua aluna e piscando o olho ao funcionário...

- É verdade! – Afirmou o senhor do café... – Já cá tive pessoas muito mais fortes que tu!...

Enfim... Deu para Sarita sorrir...

No regresso... Alguns dos alunos regressaram com Leontina... Os restantes... Mais descontraídos e cansados... Pareciam mais homogéneos e amigos... Uma parecença indiscutível que contagiava qualquer pessoa... Qualquer traço da arquitectura quadradona... Ou sentimento mais imprudente... À sua passagem...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXVII

Bela... A auxiliar de cozinha e de limpeza... Enfim... Uma mulher dos sete ofícios... E dos sete costados... Um poço de força e de energia... Sempre disposta a demonstrar a sua robustez... Sem papas na língua...

No início… Desculpou-se sempre... Das palavras mais quentes e ousadas... Com o tempo… Começou a sentir-se demasiado à vontade com Pedro... Afinal... O novo professor... Já não era assim tão recente aos seus olhos...

Sem querer... E numa das suas investigações por entre os meandros da deficiência... O professor descobriu uma desordem neurológica caracterizada por reacções explosivas e movimentos repentinos... Tal como Bela…

Tiques motores e vocais... Que simplesmente… Mudavam constantemente de intensidade... Sem qualquer cuidado...

A síndrome de tourette... Mais comum nas crianças... E... Amenizada na idade adulta...

Embora... No caso desta... Talvez tivesse apurado com a idade...

Enfermidade sem cura... Caracterizada por comportamentos obsessivos e compulsivos...

À medida que lia o livro... Parecia ouvi-la dizer:

“ Puta que pariu!”... Ou outra “caralhada” qualquer…

Visualizava o tique do sobrolho... Assim como as constantes inalações de ar puro... Exacerbadas e sem qualquer controle…

Uma problemática adequada a Bela... Um ser que não escondia o seu sofrimento... Isto para além de tudo o que não se via… E que muito provavelmente estava lá…

A ansiedade... Os distúrbios do sono e a depressão... Abaixamentos violentamente afrontados... No seu interior e na sua solidão... Longe de tudo e dos outros... Numa amargura íntima que posteriormente oferecia a quem a rodeava... Sem dó ou piedade... Sem querer saber ou mostrar sequer cuidado…

Marquesa de Dampierre... Comediante... Ou aristocrata francesa... Notabilizada por articular palavras obscenas em público... Quando menos se esperava... Tal como Bela... Uma marquesa à sua imagem e medida…

Movimentos abruptos... Espasmos breves e involuntários de um ou mais músculos... Utilização involuntária de palavras apimentadas... Gestos grosseiros... Ecolalia... Ou melhor... Repetição involuntária das palavras de outra pessoa... Como um papagaio… Reproduzido involuntariamente os movimentos de uma outra pessoa...

De igual modo… Como os seus alunos... Os quais... Pedro registava características... Progressos... Metas e evoluções... Decidiu registar algumas linhas acerca desta sua colega…

A curiosidade fê-lo ir mais longe…

Olhou para Saudade... Mesmo sem a ver...

Contemplou profundamente a sua carência... Saliente e imponente... Ainda que ela... Talvez não o quisesse…

Desejos que não se realizam... Inexplicavelmente para quem o sente... Saudade intensa... Nem se sabe bem de quê... Busca eterna do amor... Sem contudo o encontrar... Sem o procurar sequer…

Mulher que fazia pela vida... Juntando-se em grupos... Nos quais não se integrava...

Procurava as novas tecnologias e coleccionava amigos imaginários... Quando ainda ninguém o fazia...

Tentava manter-se actual e comprava revistas cor-de-rosa... Falava das personalidades e dos cartoons que lá apareciam... Como se as conhecesse bem... Ou fossem da sua família…

Uma estranha forma de ser... Porém… Como muita gente... Vivia só... Sem ter ninguém... Sempre alheada e distante... Ausente... Ainda que presente…

Um corpo sempre do lado de fora... Uma alma que procura... Olhos que olham... Observam e choram... Nervos que apontam e acusam... Consciência que no fundo sente... Que a culpa não é da gente…

Pele carente de um afago... De um toque mais forte... De um arrombo... Alguém que a amassasse... Que dela abusasse... Sem o constante pudor... A sós e na intimidade…

Sentir de um outro ser... O amor... O quentinho do calor... A frescura de um alívio... Para si perdido... Há muito requerido e sentido…

Saudade carregava o nome do sentimento que mais a preenchia... A solidão de um tormento que há muito pesava e afligia...

Quem te alivia mulher... Nas noites frias... Quando os minutos que passam parecem dias... Quem é que te quer bem... E conhece como ninguém... Quem aquece o teu leito... Quem te faz o jeito... Quem te alivia mulher... Nas noites quentes... Quando estremeces no teu ventre...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXVI

A brigada da limpeza... Foi um dos projectos que Pedro apresentou na reunião...

De uma forma geral... Consistia em ocupar os alunos mais novos... Contudo... Hábeis e capazes... Isto é... Propícios a um desenvolvimento possível... Através do treino e da prática...

Aos poucos... O professor começou a explicar... Dentro da sala e no recreio... Como deveriam proceder…

Lentamente... Os alunos tiveram o estímulo de técnicas muito básicas... Como varrer... Limpar e lavar... Utilizaram vassouras... Panos do pó e esfregonas... Pedro também lhes falou acerca dos detergentes e dos produtos de limpeza…

Nessas situações... O professor ia buscar Fábio à sala de estimulação global número dois...

A verdade é que... A expressão carrancuda e triste deste aluno... Modificava-se por completo... Os seus olhos pareciam brilhar... Sempre que o professor o levava... Abandonando prontamente as actividades de mesa muito infantis e iniciais... Avançando para Pedro... Expondo disposição para o trabalho...

O material existente era muito escasso... Para um grupo de sete alunos…

Dispunha apenas de três vassouras muito velhas e gastas... Sacos pretos do lixo que Bela lhe desviara... Entremostrando... Como sempre... O seu sorriso malandro... De cumplicidade no furto... Enfim...

Numa bomba de gasolina... Convenceu o funcionário a deixá-lo levar dez luvas descartáveis de plástico... Na verdade... Trouxe muitas mais...

Convenceu Irene e Dora... Responsáveis pelas oficinas... A mobilizar os alunos da área vocacional interna de reparação e manutenção... Para construírem alguns espetos... Não passavam de varas com um bico na ponta... Um cabo velho... Devidamente lixado... Com um prego dos maiores na ponta... Por fim... Com uma turquês... Os alunos cortaram a cabeça do prego e afiaram-no com uma lima…

Carlos... Virgílio... Luís e Roberto... Empenharam-se ao máximo… Esta área vocacional interna... Parecia ter sido feita à medida deles...

Alunos dos mais velhos... Porém... Com deficiências mais ligeiras e alguns problemas comportamentais... Pareciam cordeirinhos... Quando se viam a trabalhar num projecto comum… Sobretudo em prol e benefício da escola... Ou de parte dela…

Deram sempre mais em grupo... Do que sós...

Pedro confidenciou o avanço do projecto a Luz... Dizendo-lhe que estavam prontos a sair... Só faltava uma farda ou uma bata... Esta prometeu arranjar sete camisolas iguais com publicidade de uma loja local... Para o dia seguinte...

Encantado... Pedro desferiu-lhe um beijo húmido na face...

Surpreendida e visivelmente atrapalhada... Luz levou a mão ao local atingido... E deixou-a cair... Enquanto se desfez num sorriso... Rejubilando os seus olhos claros... E pondo a descoberto a sua timidez mais profunda…

Nesse momento... Bela passou por ali... Espampanante e audível... Ofendendo-a e aproximando-se aos poucos...

- Cabra! – Insultou Bela sorrindo… – Queres é apanhar com ele!

Nesse instante e perante a nova conjuntura... Luz colocou-se à vontade... Abraçando Pedro com cumplicidade...

O professor sentiu o seu corpo quente junto a si... Maminhas reduzidas e ínfimas... Porém... Salientes e espetadas... O vestido acetinado e escorregadio na sua roupa e no seu corpo...

- Cabra! – Continuou Bela... - Não passas de uma cabra!

O professor... Apertou Luz com conivência... Desfrutando da circunstância com intensidade... Sem problemas de maior… Enfim... Bela lá seguiu o seu caminho... Apregoando aos cantos daquela casa... Palavrinhas e palavrões com destino visado... Imediatamente... Luz... Afastou-se de Pedro... Desenhando no rosto um sorriso atrapalhado...

- Desculpa! – Pediu... Enquanto se afastava...

- Ora essa... – Respondeu Pedro... Completamente excitado com a situação...

Nessa mesma semana... No período da manhã... Pedro saiu para a rua com os alunos... Trajados a rigor... De camisola verde...

Filipe... Samuel e Ramos... Cada um com uma vassoura na mão... Cristina... Fábio e Bebé... Com os espetos novos... Procuravam acertar no lixo abandonado... Atrás... Carrapito... Que segurava um enorme saco de lixo preto e uma pá...

Pedro orientou os seus alunos para trabalharem organizados... Com método... Higiene e segurança…

Cada aluno calçava um par de luvas descartáveis e o professor levava mais consigo... As tarefas seriam rotativas e teriam uma hora e meia de trabalho... A rua escolhida foi a do colégio...

As vassouras construíram pequenos montes... Arrumados aos passeios... Os espetos encalacravam pacotes de sumo e papeis... Despejados no saco de Carrapito... Que ditava palavras de encorajamento e de orientação aos colegas...

- Apanha aquele monte Filipe! – Dizia... Apontando... – Põe aqui o lixo Bebé!

- E eu?... Rum... Rum... – Perguntava Cristina... Por detrás da colega...

- O lixo põe-se no mesmo sítio! – Avisou Pedro... Elevando a voz... – No Carrapito!

- É para aqui! – Gritou este...

Bebé e Fábio... Já haviam retirado o lixo dos seus espetos... Enquanto isso... Cristina ainda continuava na mesma...

- É pra ti Carrapito? Rum... Rum...

Carrapito aproximou-a de si e auxiliou-a... Retirando com a sua mão o lixo do espeto... Pouco à vontade... Cristina lá alinhou...

- Vai apanhar mais Cristina! – Sugeriu Pedro...

- Mais... Rum... Rum... – Dizia... – Mais lixo!

Samuel e Ramos na frente... Abriam os trabalhos... Filipe ao meio e os restantes atrás... Como uma equipa de futebol... Alinhada para a frente... Ofensiva e ao ataque...

Na sua generalidade trabalharam todos bem...

Samuel e Filipe pareciam varrer à competição... Bebé e Fábio compelidos na tarefa...

De cabeça para baixo... Cristina e Ramos mais lentos... Mas cumpridores... Face às palavras de incentivo de Pedro e de Carrapito... Um porque se dispersava nas conversas com as pessoas... Outra porque tinha alguma dificuldade em perceber qual era o seu real papel...

As pessoas que desciam a rua... Pararam para ver o que se passava... Encorajando os alunos e dizendo-lhes palavras de motivação... Até Dona Filó... Luz... Leontina... Júlia e talvez todo o pessoal da escola... Saíram para a rua para os ver... Outros... Como Elisa e Saudade... Espreitaram com os alunos à janela...

Pela primeira vez... Estes alunos... Depositados e enclausurados num colégio... Escondido da sociedade... Saíam à rua... Num contexto pouco escolar... Mais de trabalho e de exploração infantil…

Curiosamente... Os seus olhos não mostravam tristeza ou amargura... Naquela manhã e no resto do dia... Pareceram ter crescido mais uns centímetros... As suas cabeças habitualmente despidas de inteligência e de acção... Pareceram trabalhar mais um bocadinho... Ainda que... Fosse muito pouco... Foi uma oportunidade de se tornarem importantes... Necessários e precisos... Como todos os outros... De igualdade e de integração na vida activa... Como homens e mulheres participantes do processo comum de construção da sociedade...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXV

A sala de estimulação global número um... Parecia estar a funcionar de outra forma...

Telma era auxiliada por Leontina... Isto… Quando não havia carrinha para conduzir... Assim como Rosa... Uma aluna remasterizada que se empenhava e evoluía de dia para dia... Numa acção integradora e verdadeiramente inclusiva…

Realizavam actividades de estimulação... Orientadas por Elisa e por Júlia... Todavia… E aos poucos... Pedro... Como trabalhava com os cinco elementos da sala... Um por dia em sessões de meia hora... Começou a meter-se também... Afinal... Era ele o director pedagógico da instituição... Para além disto... Tinha sido o principal impulsionador da separação dos alunos e consequente criação da nova sala...

Elisa desculpava-se imenso com a falta de preparação para lidar com aquele tipo de alunos...

O professor... Também não tinha essa preparação... Contudo... Lia bastante... Investigava e pesquisava informação...

Apetrechou a sala de estímulos diversos... Visuais... Sonoros e tácteis...

Construiu com os seus alunos mais velhos... Aqueles que beneficiavam da área vocacional interna de reparação e manutenção... Equipamentos que desafiavam constantemente os alunos...

Um pequeno espaço controlado onde os objectos diversificavam... Sonoros... Visuais e proprioceptivas... Pendurados e suspensos... Por cima e dos lados... Uma estrutura que parecia uma barraca... Feita de imensos materiais... Numa reciclagem de restos que agora se compunham e ganhavam forma…

Luís... Roberto... Virgílio e Carlos empenharam-se bastante... No final pareciam olhar para estes alunos multideficientes... De uma outra forma... Mais próximos e sensíveis...

Quer fosse... No refeitório ou no recreio... Onde... Se aproximavam destes e interagiam com eles... Falando e tocando nos seus corpos... Entorpecidos e amargurados... Pela patologia e elo ao estigma social…

Na barraca do exercício... Como carinhosamente Virgílio a baptizou... Proporcionavam-se oportunidades de exploração... Desenvolvia-se a interacção social...

Quanto ao novo professor… Facilmente conquistou a confiança e o reconhecimento de Telma... Que via nele alguém que sabia o que fazia... Preocupado com o espaço e com os alunos…

Pedro planificou semanas e dias inteiros... Actividades individuais e de grupo... Utilizando materiais diversos…

Manipular coisas... Reconhecê-las... Organizar espaços próprios para os alunos arrumarem objectos a usar ao longo do dia... De uma forma organizada e sequencial... De diferentes formatos e concepções... Na parede... Em caixas ou em pequenos livros...

Mais tarde... O professor descobriu que se chamavam calendários... Constituídos por símbolos organizados de forma estruturada… Representações de actividades a realizar... Instrumentos que simplesmente auxiliavam a criança a melhor entender o que fazer... Alguns de palavras... Outros de imagens ou objectos... Devidamente aferidos e adaptados às capacidades do aluno... Antecipando os acontecimentos e as actividades... No sentido de desenvolver o conhecimento... Face à sala e às tarefas... Dia a dia... Primeiro... Depois... Semanalmente e mensalmente...

Foi criado um caderninho... Que fazia a ligação entre a escola e o encarregado de educação... Devidamente identificado... Com fotos do aluno e os seus elementos principais... Necessidades e limitações... Historial clínico e actividades de que beneficiava...

Sucintamente escrevinhavam-se assuntos relacionados com o aluno em questão... Como tinha passado o dia... Que medicação tomou... O que comeu... Enfim... Reacções e comportamentos... Transportados de casa para a escola e vice versa... No sentido de promover uma intervenção concertada e continuada... Dos pais e dos técnicos…

Posteriormente… Pedro descobriu que este caderno simples e básico também tinha um nome e não tinha sido inventado por ele... Chamava-se passaporte para a comunicação...

De uma forma geral… E naquela sala… Procuraram estabelecer-se rotinas básicas... Perpetuou-se o treino e o hábito... Diariamente... Foram-se descobrindo as capacidades comunicativas... Visuais... Motoras e cognitivas…

Telma e Leontina... Rapidamente se entenderam com as propostas de Pedro... Júlia e Martinha também colaboraram... Carla também deu o seu contributo...

De um modo espontâneo... Combinaram-se em cafés ou intervalos... Acções dignas de reuniões gerais... Daquelas em que por vezes nada se faz ou se resolve... Delinearam-se competências a desenvolver e desenharam-se interacções... Com o propósito de elevar o nível das capacidades comunicativas e ampliar o número e a qualidade das interacções sociais…

Fizeram-se diversas observações e registos... Não dos que para nada interessam... Mas daqueles que ensinam a forma como a criança interage socialmente... Isto é... O modo como comunica os seus desejos... As suas necessidades...

Naturalmente... Muitas destas pessoas passaram a frequentar a sala com maior frequência... Arriscaram-se intervenções e experimentaram-se novas estratégias... Absorvidas pelo conhecimento... Empenhadas numa resolução que atenuasse de certa forma as limitações destes alunos... Que de crianças e jovens tinham muito pouco...

Numa das vezes... Pedro organizou um jogo diferente... Uma actividade de grupo... Com auxílio dos alunos mais velhos…

Colocaram-se três grandes alguidares no chão do recreio... Os alunos multideficientes em volta destes... Ajudados por Telma... Leontina e Rosa... Chapinharam na água... Com as mãos... Pés e até com o rosto... Explorando aquele meio estranho…

Os alunos mais velhos... Introduziram brinquedos e objectos manipuláveis no alguidar... Tentou-se que brincassem e descobrissem um pouco mais daquele ambiente... Alguns manipularam-nos e desfrutaram... Como Ruben... Que dessa vez não se agrediu e poucos gritos deu... Ou como Salvador que permaneceu demasiado excitado... Ou até Miguel... Que no seu silêncio... Interveio com o aparato…

Já Rafael e Bento... Mais limitados em termos motores... Foram ajudados a tocar... A explorar e a interagir com a água e com os objectos… Mão na mão... Mão no pé... No corpo...

Com uma esponja ensopada... Leontina… De bata apertada no peito e liberta dos chinelos… Ajoelhada no chão... Acariciava os alunos com ternura... Passando-a no rosto dos mesmos... Nas mãos e nos pés…

Num gesto de magia sensual... Contemplando Pedro com um sorriso doce... Boca carnuda de lábios grandes... Olhar pintado e profundo... Num desenho de caracóis alourados que enfeitavam lindamente a sua cabeça... Seduzindo a sua mente e o seu corpo... Com a frieza de alguém que quer demais…

O professor desejou-a ali mesmo...

Por outro lado... A actividade foi positiva... Os alunos pareceram sorrir... Como se quisessem falar ou comunicar algo... E no fundo... Estavam a fazê-lo...

António Pedro Sasntos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXIV

À hora do almoço… Pedro entrou no refeitório… Rapidamente… Um enorme barulho fez-se ouvir...

Apoteóticos… Os alunos saudavam o professor… Como se de um político se tratasse…

Enquanto progredia no espaço… As felicitações e aclamações eram constantes e intensas... Ao longe… As colegas olhavam-no com ciúmes… Pedro sentiu-o e sorriu… Nada lhe dava mais prazer do que o reconhecimento dos próprios alunos…

Andreia ergueu-se da mesa... Escabrosa… Participando com alegria na festa… Articulando a sua dificuldade em espasmos constantes...

Saudade impediu-a de se aproximar de Pedro… Mas mesmo assim... Este aproximou-se da aluna e beijou-a na face…

A aluna pareceu gostar… Soltando gritos e ruídos de estranho contentamento... Saudade segurava-a com bastante força nas mãos com ambos braços… Com uma expressão de censura face à atitude do docente...

O corpo rígido de Andreia… Rapidamente desfaleceu… Numa tentativa de fuga por outra via… Que não resultou na totalidade... Mas em parte... Uma vez que o professor a auxiliou até ao lugar…

Atentos… Os alunos pareceram gostar da atitude de Pedro… João levantou-se e bateu as palmas das mãos… Os restantes aplaudiram-no… Ao longe… Elisa observava-o sem pronunciar uma palavra...

O professor alteou os braços… Agradecendo a salva de palmas e continuou rumo ao balcão…

Ao seu lado… Filipe convidava-o para a sua mesa… Num tom de voz baixo e quase imperceptível...

- Hoje é com a gente! – Exclamou Ronaldo... Olhando Pedro…

O professor já não se recordava… Porém… Efectuou um gesto afirmativo… Filipe afastou-se cabiz baixo… Regressando ao seu lugar...

- Eu já vou! – Alertou… Avisando Ronaldo...

- Isto é que é sucesso! – Afirmou Luz… Que alimentava Bento com uma colher... Mirando-o com cumplicidade…

O docente sorriu e perguntou:

- Como se estão a sair os moços? Já vêm buscar o almoço sozinhos?

- A maioria sim. – Respondeu… - À excepção destes… - Disse… Virando os olhos para o aluno em particular… - E da Andreia e do Hélio.

- Bem… Mas esses são diferentes! – Lembrou Pedro… Alargando a sua vista mais além… Onde… Patrícia e Cláudia... Auxiliavam os alunos com maiores dificuldades... Juntamente com Saudade... Leontina... E Rosa que sorriu no momento em que os dois olhares se trocaram...

- Estás a gostar? – Indagou Pedro... Efectuando um gesto com o braço...

Rosa respondeu afirmativamente... Com um sorriso atrapalhado e desconjuntado... Auxiliando Miguel no almoço...

- Estes meninos precisam da nossa ajuda! – Exclamou Patrícia... Levando minuciosamente a colher à boca de Salvador... Com toda a atenção do mundo...

Ao longe... Saudade parecia suspirar... Enquanto agarrava Andreia e a auxiliava na alimentação... Lamentando-se:

- Isto assim é muito mais difícil!

Pedro ignorou-a e continuou a conversa com a aluna:

- Estás a gostar?

Patrícia confirmou as suspeitas do professor com um sorriso leve na face... Compenetrada no seu trabalho...

- Eu também estou a gostar! – Atestou Cláudia... Esboçando uma expressão mais infantil... Enquanto alimentava Rafael...

Ruben deu sinal... Gesticulando violentamente e emitindo gritos... Talvez porque Pedro se havia aproximado...

Leonina... Que lhe dava o almoço... Tentou acalmá-lo... Abrandando a voz e preenchendo os seus ouvidos com palavras doces... Acariciando-o na cara com macieza e suavidade...

O professor observou-a e acercou-se... Agachando-se junto do aluno... Segurando-lhe uma das mãos com ternura... Leonina olhou-o... Piscou um dos olhos e sorriu... E continuou... A alimentá-lo com palavras afectuosas...

Por momentos... O tempo pareceu ter parado... O professor observou a ternura com que Leonina... De bata azul aos quadrados e chinelos... Encadeava os seus movimentos... Exprimindo-se por suaves deslocamentos de pureza maternal... No cuidado dos seus actos... Que de carinho... Terminavam sensualmente perigosos em Pedro...

- Ai meu deus! – Barafustava Saudade... – Ainda por cima são dois!

O professor ergueu-se... Retribuindo a Leontina o cerrar fugaz de um olho…

Luz... Desfez de imediato o sorriso... Segurando Bento na testa... Dando-lhe a sopa mecanicamente... Sem o jeito de há pouco... Pedro olhou-a e segredou-lhe ao ouvido:

- Estás linda hoje!

Luz desfez-se num sorriso... Contrapondo:

- Só hoje?...

O professor agitou a cabeça e murmurou ao seu ouvido... Quase tocando na sua orelha:

- Hoje especialmente...

- Eu não dou conta disto! – Exclamou Saudade...

Pedro aproximou-se e pediu-lhe que se afastasse... Sentando-se entre os dois alunos...  Hélio... Começou a bater as palmas... Numa estereotipia quase constante... Que aos poucos se tentava combater... Andreia acompanhou-o... Mais efusiva e barulhenta ainda...

Pedro falou-lhes e colocou-lhes os talheres nas mãos... Pedindo-lhes que comessem... Nada fizeram... Saudade dizia:

- Não vês? Eu sei... Não dá!

Pedro agarrou em ambas as mãos dos alunos... Que seguravam os garfos e auxiliou-os a espetar as batatas cozidas... Cortadas em pequenas formas muito pequenas...

Hélio pareceu assustado... Arregalando os olhos... Talvez amedrontado com a situação... Andreia pareceu entender... Contudo... Comia e fazia ruídos... Olhando para Pedro com alegria... Por vezes tentava agarrá-lo...

O professor pediu constantemente que se acalmasse e se concentrasse na sua acção... Pareciam improdutivas as suas palavras... Todavia... Com o virar da atenção para Hélio... Esta pareceu desistir de abordar Pedro... Alimentando-se devagar... Sem se amotinar...

Saudade trouxe o prato de Pedro e disse para os alunos:

- Hoje o professor come com vocês!

Hélio apresentava-se estático... Olhar firme e distante... Com movimentos básicos e quadradões...

Desesperado... O docente... Começou a comer... Encorajando Andreia... Que o acompanhava satisfeita...

As colegas que por ali estavam pareciam observá-lo... Assim como a maioria dos miúdos... Que ao longe atestavam a impotência de Pedro... Até Bela e Preta espreitavam por detrás do enorme balcão… Sobretudo Elisa... Júlia e Martinha... Que estavam junto à porta… Contemplando o professor e a sua acção... Que em nada adiantava...

- Vamos Hélio! – Exclamou Patrícia...

- Come! – Gritou Ramos...

Ao longe... Carlos e Virgílio... Encorajaram-no... Tal como João e Ronaldo...

Um burburinho que se instalou e que parecia transformar-se em força... As mesas estremeciam e o bater dos pés no chão... Desencadeou uma onda de solidariedade pura e real... Uma química mágica parecia desenvolver-se no ar...

- Anda lá Hélio! – Disse Preta... Distante...

- Come Hélio! Come! – Ordenou Carrapito... Com a voz muito aguda e incisiva...

Pedro pediu-lhe uma vez mais... Usando outras palavras:

- Vamos pôr a batata na boca?

Hélio abaixou o olhar... Fixando-se no garfo... A sua boca abriu às prestações... Em pequenos bocados...

Por instantes... O refeitório ficou silenciado... Todos aguardavam pelo desenrolar da situação…

Hélio levantou o garfo e percorreu aquele enorme trajecto até à cabeça... Com tremeliques e desorientações... Até colocar a batata na boca e a encerrar... Estagnando de novo os olhos... Fixados e estacionários...

O professor retirou-lhe o garfo da boca e disse:

- Boa!

- Bom! – Balbuciou Hélio... Como um robot...

Rapidamente... Um frenesim de comemoração correu todo o refeitório... Alunos e funcionários gritaram vivas e aplaudiram... Por este feito conquistado com a força de todos... Numa transferência de energia em que o impossível é coisa pouca para se conseguir ou alcançar...

Nesse dia... Pedro sentiu-se bem... Foi admirado e saudado por todos... Nessa tarde... Toda a gente parecia inebriada com o sucedido... Como se a acção humana de todos fosse essencial para a superação de uma barreira... E era...

No café... No escritório e pelos corredores... Correram versões diferentes da história... Como se de algo transcendente se tratasse...

No fundo… E de facto… Pedro apenas improvisou uma vez mais... Quebrando uma condição à partida impossível... Recusando falhar... Negando as dificuldades... Enaltecendo qualidades que em todos vivem... Se assim o quisermos...

Naquele almoço... Hélio deu apenas um pequeno passo... Nas restantes garfadas foi auxiliado... Mas sozinho... Só o conseguiu fazer uma vez...

O professor deixou no ar... Que não tinha medo de se sujar ou de lidar com as adversidades... Jamais se resignaria à condição pré estabelecida dos alunos... De incapazes... Ou estagnados…

Seria preciso lutar por eles... Inverter os caminhos estabelecidos pela sociedade... Criar e construir novos sempre que houver necessidade... Porque nem tudo o que vem escrito nos pergaminhos é lei...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXIII

É certo que a escola parecia outra… Os alunos aparentavam uma motivação superior… Face ao galgo social que parecia consumir lentamente os restantes habitantes do planeta…

Pedro começou a reparar a guitarra… Engatou Luís… Roberto e Carlos… Pediu ajuda a Irene e Dora… Todos eles colaboraram... A viola foi desmanchada e feita em pedaços… Lentamente lixada e envernizada…

Os miúdos apuraram-se… O braço parecia outro… Completamente alisado e salteado por pequenas folhas de plantas na escala… No final… Ainda houve espaço para um pouco de criatividade da parte de Irene… Uma enorme flor… Colorida e exótica... A enaltecer o seu corpo… Outrora básico e sem brio… Agora vistoso e imponente... Finalmente… Pedro comprou umas cordas em bronze…

Foi numa aula de escolaridade… Com o grupo dos mais velhos… Que Pedro a afinou...

Naquele dia… Quinta-feira... Os alunos pareciam olhá-lo com atenção… Surpresos e algo expectantes com o que se iria passar a seguir... Entediados… Ouviram os primeiros acordes… Suaves e ao mesmo tempo estridentes… Um silêncio que se tornou absoluto… Como o de Ana… Que o olhava profundamente…

Carlos batia o pé e as palmas… Enquanto que Roberto estalava os dedos em alto som… Luís e Virgílio estavam siderados e estáticos… Como Teófilo que parecia verificar esta situação como nova...

Patrícia e Rosa... Admiravam-no ao longe… Tímidas... Por entre sorrisos e palavras baixas…

Ilda parecia paralisada… Reflectindo porém… Espasmos e pequenas estereotipias com o corpo…

Espectáculo teatral que os consumiu num todo… Numa absorção das ideias e da mente… Assistiam a uma aula diferente… Onde se trocaram as palavras e as frases… Por pequenos acordes e sons… Números para somar e de subtrair… Que agora se tornavam em autênticas operações… Não das numéricas… Mas das mais penetrantes da vida humana… O contacto e a comunicação… Feitos em música para os ouvidos… Que de inertes e incapazes… Passavam agora a florir…

Rapidamente lhe pediram canções… Apenas alguns… Dos mais afoitos… Das mais batidas e frequentes… A maioria bem pirosas… Mas Pedro também as conhecia… E quando não… Lá ia atrás deles…

O professor também estava surpreendido com tamanha importância... Quem diria... Que aquele simples instrumento… Teria tanta consequência junto dos jovens alunos que com ele se deparavam...

Aos poucos… Pedro experimentou este tipo de aula com os restantes alunos… Foi enriquecedor constatar que a música desempenhava um papel de extrema importância para o seu desenvolvimento físico e mental… Uma companhia que desinteressadamente os auxiliava no preenchimento de um ou mais espaços vazios...

Viu autistas a colaborar… Aos poucos… Observou alunos a comunicar com tom… Pronunciando eficazmente… Palavras que nem sempre saiam na perfeição... Exteriorizações corporais que tomavam corpos… Comunicação pura plena de um mundo para o outro… Desde os mais inibidos… Que agora fugiam das suas capas e corpos angustiados… De dentro para fora...

- Devíamos gravar um CD! – Sugeriu um dos alunos...

Um CD não… Mas… O professor lembrou-se de uma cassete... Seria uma boa oportunidade… Ou melhor… Uma óptima recordação…

António Pedro Santos

(Continua)...

 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXII

Na semana seguinte... Pedro mobilizou alguns dos alunos do período da manhã e começou...

Vazaram uma sala inteira... Atulhada de materiais... Coisas velhas... Outras não... Pouco ou nenhum uso…

Motivados... Os alunos auxiliaram-no... Se calhar... Pela primeira vez... Sentiam-se úteis de facto...

O professor teve o cuidado de explicar aos grupos o objectivo da missão... Na verdade... Nem todos o perceberam... Mas deram o seu contributo... Por pequeno que tenha sido…

No passar das horas e dos dias... As coisas foram-se compondo... Martinha e Júlia deram uma ajuda...

Durante esses dias... Estes três profissionais... Esqueceram um pouco o trabalho habitual... Psicológico… Académico e de educação social…

Ao mesmo tempo... Pedro interrogava-se e chegava lá... Afinal... Esta... Também era uma acção inclusiva... Pedagógica e educadora...

- Rum... Rum... O que faço? – Perguntou Cristina...

- Leva estes sacos para ali! – Exclamou o professor... – Ajuda a Bebé e o Ramos!

- Vamos Cristina! Trabalha! – Ordenou para si própria... Hesitando aos poucos...

Mesmo assim avançou... E na medida do possível... Colaborou...

Bebé estava motivada... Carregava sacos para a sala polivalente... Assim como outras tralhas... Carrapito e Filipe... Transportavam volumes maiores... Dois a dois e por vezes com a ajuda de Samuel... Ramos perdia-se no monte de tralha acumulada... Descobrindo e procurando coisas... Lentamente e sem pressas... Pegando nas coisas e aproximando-as da vista... Vendo-as à minúcia...

Outros apareceram e por lá passaram... Os alunos mais velhos e fortes... Que foram uma importante ajuda para arredar móveis... Carlos... João e Mário... Luís… Virgílio e Roberto... Mostrando entusiasmo e espírito... Enfim... Aplicação e interesse por um bem comum... Que neste caso... Seria para outros... Para os mais pequenos e limitados...

Ainda assim... E mesmo não atingindo... A maioria deles... Estava a ser solidária...

Teófilo confidenciou a Pedro que nunca trabalhara... Não estava habituado nem preparado... O professor... Ao escutar aquele discurso robótico... Perguntou-lhe se não gostava de experimentar... O aluno respondeu-lhe que teria de pensar... Enquanto isso... Efectuava pequenas passadas... Sem contudo... Sair do local... Dizendo:

- Eu já lhe digo! Vou pensar! Está bem?...

- Leva o tempo que quiseres! – Afirmou Pedro... – Mas olha... Enquanto pensas... Leva estes dois sacos para o polivalente! – Pediu... Entregando-lhos em mão e voltando-lhe as costas…

Martinha e Júlia viram e sorriram... Pareciam surpresas com o poder com que o professor movia os alunos... Fazendo-os trabalhar... Sem mandar... Pedindo com jeito... Ajuda... Colaboração e alma de equipa...

- Podemos ajudar? – Questionou Carla... A terapeuta da fala... Que trazia mais duas alunas... Maura e Raquel...

Enlevado... O professor exteriorizou o brilho dos seus olhos... E... Rapidamente se integraram...

Esta acção foi fantástica para estreitar a relação de Pedro com a educadora social e a psicóloga…

Ao contrário do início... Martinha e Júlia... E até Carla... Concordaram com o professor e colaboraram com ele... A partir daí... Passaram a ser mais cúmplices e os projectos começaram a surgir... A escola teria pernas para andar... Havia lugar para a camaradagem e para a inovação...

Por outro lado... Elisa... Passava e olhava... Tecendo comentários desencorajadores... Pedro escutou-a e até lhe disse:

- Mas olha... Prepara-te que esta vai ser a tua sala!

Elisa voltou-lhe as costas e desapareceu...

Carla e Martinha riram...

- Não a percebo. – Disse Júlia... – Esta sala é muito maior!

- Professor Pedro! – Gritou Ramos... Nasalado… – Encontrei uma viola!

- Deixa ver! – Pediu Pedro... Dirigindo-se para ele...

O professor segurou o instrumento e apreciou-o... Olhando-o com atenção e ternura... A guitarra estava ligeiramente descolada e a precisar de uma pintura... As cordas já eram... O braço... Pentes e carrilhões pareciam estar em condições...

- Tocas? – Interrogou Júlia...

- Um pouco... – Respondeu... Siderado na nova descoberta... – Vou levá-la para a reparar.

- Professor! – Chamou Carlos... – Eu e o Virgílio encontrámos mais instrumentos!

O professor deslocou-se ao local... Deparou-se com uma pequena caixa... Carregada de ferrinhos... Caixas e tambores... Flautas e pandeiretas... Entre outras coisas...

- Já ouviram falar de musicoterapia? – Perguntou Pedro... Dirigindo-se a todos...

Ninguém respondeu... À excepção de Teófilo... Que ficou confuso com a pergunta... Pensando que tinha sido só para ele...

Enquanto isso... Efectuava pequenas passadas... Sem contudo... Sair do local... Dizendo:

- Musicoterapia?... Disse... Musicoterapia?... Eu tenho de pensar! Está bem?...

- Seria uma boa ideia! – Concordou Carla...

E lá continuaram com as arrumações... Os grupos de trabalho foram mudando e a sala também... Irene e Dora colaboraram com os seus alunos na pintura e decoração do espaço... Depois de secar... O professor e os alunos mais velhos começaram a montar a estrutura da sala…

No final... Colocou na porta um papel que dizia: “Sala de estimulação global II”...

Chamou Elisa e Telma... Assim como Dona Filó que veio com Luz...

Aos pouco… Todos apareceram para ver a obra... Saudade... Leontina… Bela e Preta... Também fizeram questão de ver…

Surpreendidos... Não esconderam nos rostos a admiração pelo que estava à vista... Nem mesmo as vozes da reacção... Que atónitas... Se silenciaram... À excepção do nome da sala... Coisa que Pedro fez questão de esclarecer... Fundamentando que a sua escolha se devia ao facto de naquela sala não se estimularem apenas a parte sensorial... Mas sim... A cognitiva... Motora e a socio-afectiva... Assim como a comunicação e a linguagem... Com isto... Deixou-as sem argumentos e tiveram de acatar...

Posteriormente... Começaram a modificar a sala de estimulação global I... Uma sala mais pequena... Com casa de banho e um pequeno espaço…

O professor tinha ideia de a tornar mais apetrechada de estímulos e de condições... Provisoriamente... Os cinco alunos multideficientes passaram para a sala II... Afinal... Já estavam juntos…

Irene e Dora trataram da pintura... Em conjunto com os alunos... Uma sala a várias cores... Com muitos estímulos visuais…

Depois... Pedro e a sua equipa... Apetrecharam-na de outros estímulos e protecções... Espelhos... Uma parede de texturas... Com vários tipos de materiais disponíveis para o toque... Cortiça... Madeira e cartão... Tecido e algodão... Mosaico e borracha... Entre outros... Criou duas zonas dentro da sala... Uma para trabalho... Onde os alunos permaneceriam nas cadeiras de rodas ou standings... Outra para outro tipo de intervenção... Mais física e exploratória... Acolchoada e devidamente vedada e protegida... Com bolas... Brinquedos e pistas tácteis... Local ideal para perícias... Manipulações... Deslocamentos e pequenos equilíbrios…

No chão e nas paredes... Pedro colocou diversos sinais... Landmarks... Para a orientação espacial... Assim como pontos de apoio... Sobretudo para Salvador... Miguel e Ruben...

Montou ainda uma aparelhagem velha... Com auxílio dos alunos... Com colunas dispersas... Onde o som percorria toda a sala... Por cima e por baixo…

Objectos manipuláveis e sonoros que caiam do tecto... Coisas para apertar e manipular... Ruidosas e agradáveis…

As luzes foram modificadas... Algumas tapadas com papel celofane... Para dar cor...

O professor havia visto uma revista de material da especialidade... De lá tirara ideias...

Criou um sistema básico de botões... Uns acendiam luzes... Outros faziam sons... Coisas tão simples... Ainda do tempo das suas aulas de electrotecnia... Aquando aluno... Tudo devidamente protegido…

Luís... Mário e Virgílio ajudaram-no nessa parte... Pareciam interessados por esta área diferente... Até trouxeram alguns contributos que tinham aprendido com os pais em casa…

Mas a melhor ideia foi de Carlos... Quando sugeriu que se pusesse um computador dos velhos na sala para que estes brincassem... Todos riram... E até houve quem dissesse:

- Para que precisam eles de um computador?

Na verdade... Pedro envolveu o computador obsoleto e mal estimado... Com materiais fofos e acolchoados... Carregou-o de imagens diversas... Paisagens... Objectos... Cores e pessoas... Fotografias que passassem de umas para as outras... Com ou sem ordem do rato... O objectivo eram ser mais um estímulo... Um recurso tecnológico... Abandonado no chão como se fosse mais um brinquedo...

Quando ficou pronta... As pessoas ainda ficaram mais pasmadas...

- Tu e os miúdos é que fizeram isto? – Perguntou Elisa... Com a voz esganiçada...

- Tivemos ajuda de mais colegas! – Exclamou... Olhando para as intervenientes de ambas as obras...

Por momentos... Olharam e visitaram o espaço... Telma estava radiante com as alterações... E Rosa também…

Esta aluna já sabia que ia ajudar a Telma e os alunos mais pequenos... Estava encantada pela sua nova função...

- Parece impossível! – Disse Elisa... Desfazendo a sua incredulidade e o seu cepticismo...

Olhando-a com um sorriso leve... Dona Filó elevou a voz... Para a todos se dirigir:

- Já dizia o outro... O impossível é quase sempre o que nunca se tentou!

António Pedro Santos

(Continua)...

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXI

A semana reiniciou-se outra vez…

Do acordar até ao café... Passando pela cigarrada matinal... Culminando com a chegada ao colégio...

Recanto esquecido... Hospício de loucos... Antro de doidos varridos... Resíduos de uma lavagem atroz da sociedade... Segregadora e vil... Num depositário socialmente correcto para todos aqueles que julgam ter o dom de seleccionar e desmembrar…

Pedro olhou-os e observou-os com atenção... Desde a porta de entrada…

Outros olhos pareciam visualizar a coisa... Contemplando o quadro de imagens... Coloridas e sonoras... Onde o movimento apagava o tempo... Num reflexo profundo de eternidade plena... E pura...

Nas conversas sem sentido... Pareceu ver calorosas abordagens impolutas... De carinho e carecendo de atenção... Num revitalizar de auto estima... Ou enlevar de afeição...

Ramos afiava o lápis... Para não variar... Samuel coçava a cabeça... Olhando Pedro de esguelha... Bebé parecia ver algo na parede... Junto ao velho quadro preto... Enquanto Carrapito ajudava Filipe a preparar as coisas... Sem o professor ver... Passeando a mão imunda de saliva... Do caderno para a boca… Da boca para o caderno…

Subitamente... Sentiu um beijo molhado no braço... Ao voltar-se… Bebé já fugia em direcção à sua mesa... Rindo e correndo a grandes passadas…

Impávida e quase completamente alheia... Cristina perguntou:

- Para que foi isso? Rum... Rum...

- Cala-te! – Ordenou Bebé... Num sussurro mais alto... Enquanto preparava a mesa... Organizando paulatinamente os lápis... As canetas e a régua... Também lá estava um boneco... Devidamente sentado... Um ken da barbie…

O novo professor agarrou nele e olhou-o... Bebé colocou-se ao seu lado apoiando-se no braço...

- Sim senhora! – Exclamou Pedro... – Um boneco todo giro!

A aluna concordou... Apontando para as calças... Sapatos pretos… Blusa vermelha e para o penteado armado….

O professor perguntou qual era o nome do boneco...

- Pedro! – Disse... Tartameleando baixinho...

O docente sorriu e a aluna também…

Ainda houve tempo para mais um abraço e um beijo… Posteriormente… Recuperou o boneco hirto e estático... E sentou-se no seu lugar... Penteando-o docemente...

- Então... O que foi Bebé?... Rum... Rum... – Questionou Cristina... Arrastando a voz... – Que se passa?... Ai! Ai!

Bebé mandou calar a colega de imediato... Chamando-a ainda… De parva... Porém... Como falava baixo demais... Quase ninguém ouviu…

Para disfarçar... Pedro repetiu os “ais” de Cristina... Acompanhado pelos alunos…

Rapidamente... A sala transformou-se num auditório…

De régua na mão... Ou melhor... De batuta... Pedro orientou aqueles músicos numa ária monumental... Fazendo sinais de silêncio… Onde teriam de fazer uma pausa e calar-se... Aumentando e diminuindo a altitude do som... Numa orquestra de “ais” repetidos insistentemente...

Numa sinfonia de loucos… Pedro gesticulava-se expressivamente... Como um maestro endiabrado que sabia o que fazia... Violinos e violoncelos... Celebravam num agrupamento instrumental de música erudita... Cordas... Madeiras... Metais... Percussão e teclas… Numa orquestra de câmara.... Desalinhada e sem rumo... Guerra de fagotes... Oboés e flautas... Harpas e trompetes desconexos e descompostos... Cravos... Pianos e órgãos... Vincados por caixas... Tímpanos e triângulos... Mediados por um enorme contrabaixo... Que assaltado pelo trombone... Foge da flauta e do sentido... Grito grave da tuba... De desalento e de emoção…

O maestro avisa que vai acabar... Carrapito prepara-se para bater os pratos... Atenta... Bebé insiste no violino... Pedro faz o sinal do fim... Todos param... À excepção de Filipe... Que continua com um enorme e estóico “ai”...

Os aplausos apregoaram no ar... De emoção… De adrenalina… E são os próprios músicos... Que eufóricos com o seu desempenho... Batem as palmas numa ode ao dever cumprido... Num misto de loucura e de entusiasmo...

Inesperadamente... Pedro sente o calor de umas mãos... Que lhe cerram os olhos... Conhecendo o cheiro a perfume abusado... O professor... Agarra as mãos com ternura... E diz:

- Com estas mãos macias... Hum... Quem será?

Os alunos gritaram pelo nome... Todavia... Pedro pareceu não os querer ouvir...  Optando por cheirar parte delas...

- Que perfume tão bom! – Declarou...

Nisto… Desceu suavemente as suas mãos... Deixando que estas tocassem nos lábios... E voltou-se para trás…

Leontina sorria... De lábios carnudos... Rosto claro e grande... Demasiadamente bem desenhado... Enfim… Uma mulher perfeita... Para a idade que carregava... Ainda que... Não parecesse de facto…

O professor segurou nas suas mãos e afastou-a de si... Contemplando-a com malandrice...

- Estás linda! – Afirmou... Beijando-a nas duas faces... Num cumprimento delicioso e deveras demorado...

Os alunos contemplaram a situação... Soltando palavras de observação e de incentivo... Animados... Pareciam assistir a mais um capítulo de uma novela da quatro... Mais quente e interessante...

Leontina agradeceu e efectuou um esboço enorme que lhe atravessou a face... Os seus olhos riscaram-se e realçaram a sua beleza... Deu duas voltas sedutoras de braços abertos... A saia clara rodou... Num entremostrar de prazer... Oculto e proibido... Peito vasto e pontiagudo... Apertado na blusa de alças... Bem à vista… Bem aceso…

Afastou-se... Enviando-lhe um beijo à distância...

- A Leontina é casada! – Informou Samuel... Olhando-o... Como que avisando...

O professor sorriu...

Às seis da tarde seria a reunião... Ainda houve tempo para mais um café e um cigarro...

A maior parte dos funcionários estava no café... À excepção de Leontina que ainda fazia a distribuição dos alunos pelas suas casas... Ou perto delas...

- O que será que ela nos quer! – Desabafou Elisa... Referindo-se a Dona Filó... Num desabafo de enjoo... Enquanto se preparava para beber a sua meia de leite clarinha...

- Até parece que nunca foste a uma reunião geral! – Exclamou Luz... Apoiada na mesa... Bafejando o seu cigarro... E olhando-a com surpresa... Apontando-lhe os seus olhos dilúcidos...

- Deve ter a ver com o plano de actividades... – Sugeriu Júlia... Pronunciando as palavras ao jeito do norte... Olhando para Pedro... Como que esperando por uma confirmação...

O professor acrescentou ainda... Que para além do plano de actividades... Estariam outras coisas em cima da mesa... Como… O projecto educativo... A rotação dos recursos espaciais e humanos... Enfim... Subitamente... Entrou-se numa conversa de desagrado... Onde cada uma delas começou a sugerir problemas e situações... Impossibilitando e inviabilizando todo o processo...

Luz tocou com a perna em Pedro... Avisando-o da situação contestatária que ali se vivia…

Esta estava sentada num sofá de parede... Bem ao lado do professor que estava numa cadeira…

Luz... Sempre imponente... De vestido azul claro... Quase sem cor... Cabelos louros e brincos a condizer... Sandália discreta nos pés morenos do sol… Cheiro perfumado que atentava a um encosto e a uma aproximação…

Ao longe... Bela e Preta... Pareciam comentar o que viam... Prudentemente e sem levantar ondas…

Luz fitou-as... Sorrindo de um jeito repressivo...

Carla e Martinha pareciam conversar acerca de outro assunto... Qualquer coisa relacionada com alguém que conheciam em comum...

- Era bom que se resolvesse a situação da sala! – Afirmou Telma... Um pouco a medo...

- Qual situação? – Perguntou Luz...

Telma já não conseguiu terminar... Gaguejando palavras perdidas e sem sentido...

- E a dos almoços! – Disse Saudade... Elevando o tom da sua voz... Como que afirmando uma posição de seriedade e de afirmação...

- Qual situação? – Repetiu Luz... De cigarro na mão... Olhando para Pedro… De forma que este a visse...

Entretanto... Irene e Dora... Também entraram na conversa... Expondo a falta de material... Os atrasos das carrinhas... A falta de capacidades dos alunos para realizar determinado tipo de tarefas… Em suma… Gerou-se uma troca de palavras... Divididas entre três ou quatro mesas... Daquele estreito café... Onde Preta e Bela ainda lançavam achas de longe... Completamente alheadas do que ali se passava... Alternadas com os gritos estéricos da educadora Elisa... O gaguejo de Telma e a falta de nível de Saudade..

Júlia explicava a Irene e a Dora alguns dos pormenores que tinham ficado estabelecidos para as oficinas desde o final do ano lectivo passado... Martinha e a terapeuta da fala... Comentavam a situação…

Distante... Bela já arremessava palavrões em crescendo... Luz olhava Pedro com cumplicidade... Bafejando o seu cigarro com doçura e prazer... Cerrando parte dos olhos e ajeitando os lábios de um modo sensual... Até que disse para todos:

- Daqui a pouco... Na reunião! Quero ver o que dizem! 

Imediatamente... O silêncio instalou-se... Ninguém disse mais nada e nem sequer mudaram de assunto... Pedro constatou o silêncio com estranheza...

- O que vocês querem sei eu! – Gritou Bela ao longe... Fazendo um gesto grosseiro com o braço e mordendo a língua... Completamente desalterada...

Elisa olhou-a com raiva... Sem dizer uma palavra...

Aos poucos... As pessoas foram-se levantando e saindo em direcção ao colégio...

Já na reunião… Dona Filó estava sentada na grande mesa do escritório… Olhando uns papeis… Enquanto os funcionários se iam instalando desorganizadamente… Revelando alguma impaciência…

- Vamos lá meninas! – Disse a directora… - Sempre a mesma coisa!

Luz fez um sinal a Pedro… Que ainda se encontrava de pé… Para que se sentasse na mesa principal… Ao lado de Dona Filó…

- Como está senhor professor? – Cumprimentou a directora… Olhando-o por cima dos óculos e esboçando um sorriso simpático…

Pedro sorriu também e efectuou um gesto assertório e consonante com a sua saudação...

A directora deu início à reunião… Retirando os óculos e olhando em redor... Evocando o prestígio da escola e a sua missão... Atender as crianças diferentes com a máxima qualidade possível... Trabalhando em equipa no sentido de superar as dificuldades e os obstáculos que sempre aparecem…

Algumas das colegas de Pedro sopravam… Como que expressando repúdio pela conversa… Assim como… Algum desmazelo e falta de educação...

Dona Filó percebeu-o… Contudo… Prosseguiu o discurso com classe... Sem se deixar intimidar pelos olhares e segredinhos… Acrescentando:

- Gostaria que o nosso director pedagógico falasse um pouco acerca do que delineou para este ano lectivo… Sei que tem andado a trabalhar nisso… Não se importa professor Pedro? – Disse…Convidando-o a falar perante as colegas de trabalho... Olhando-o com confiança e admiração...

Subitamente… Todas aquelas mulheres o fixaram… Avaliando o seu estado de espírito… Nervoso e algo inseguro…

O professor engoliu em seco e avançou…

- Fui incumbido de fazer alguns documentos que servirão de suporte e de apoio às actividades lectivas deste colégio… Como tal… Debrucei-me primeiramente no projecto educativo… Um documento que visa delinear metas e objectivos principais para esta escola e consequentemente para os seus alunos… - De queixo erguido… O professor contemplava as colegas de ponta a ponta… Assim como Luz e a directora… Esta última… Agitando a cabeça… Como que embevecida pelas suas palavras… - De qualquer forma… - Continuou… - Tive a oportunidade e o prazer de estar com todos os alunos… Analisei as suas maiores dificuldades… Assim como… As suas maiores necessidades… Realizei fichas diagnosticas e tenho estado a aplicar baterias de testes… No sentido de os conhecer melhor para os poder enquadrar nos grupos de trabalho… Para além disto… Conhecê-los um pouco… Significou ter bases para melhor definir os propósitos do projecto… - As colegas continuaram a olhá-lo com atenção... Pedro sentiu-se mais seguro e persistiu:

- O projecto está feito… E prende-se com a formação pessoal dos alunos… Ao nível académico… Motor e sócio afectivo… Desenvolvendo a autonomia pessoal e social e promovendo a auto estima… No sentido de uma transição para a vida activa consertada e eficaz.

Em silêncio… Colegas e directora escutavam-no atentas…

- Escolhi como tema do projecto educativo... “Formação pessoal e transição para a vida activa”… Todavia… Gostaria de deixar um pouco à vossa consideração…

- Parece-me um bom tema! – Concordou Dona Filó… De sorriso feito… - Fico contente de o ouvir falar assim… Compenetrado e profundamente inteirado dos problemas destes nossos jovens alunos!

Algumas das colegas abanaram positivamente a cabeça…

Leontina e Luz entremostraram um grande sorriso… Como se fizessem parte daquele pequeno sucesso… Pedro sentiu-se ainda mais forte... E avançou:

- Relativamente ao plano de actividades... E como já disse anteriormente... Penso que seria pertinente prepararmos estes alunos para o futuro!... Desta forma... Poderíamos estruturar actividades de carácter vocacional!

- De carácter quê? – Perguntou Dora... Boquiaberta e estranhamente surpresa...

O professor efectuou um pequeno compasso de espera e prosseguiu com a sua argumentação:

- Isto é... A ideia seria conseguirmos criar pequenos grupos de alunos... Onde estes desenvolveriam actividades pré profissionais... Formativas e sensibilizadoras... No sentido de conhecer aptidões e sondar vocações nos alunos… Através do ensino de novas competências relacionadas com uma actividade profissional.

- Deixa ver se eu percebi! – Interrompeu Martinha... Elevando a voz... – Fazer formação aqui no colégio?

Pedro efectuou um gesto parcialmente consonante com a pergunta...

- Mas... Não temos recursos! – Exclamou Saudade... Aparentemente indignada...

- E como se faz? – Questionou Elisa... A educadora... Atalhando a conversa...

- Deixa-o explicar! – Gritou Luz... Colocando ordem na sala...

O professor respirou fundo e olhou Dona Filó... Que permanecia tranquila e atenta ao seu discurso... Transmitindo-lhe apoio...

- A minha ideia seria aproveitar as sextas-feiras. Pelo menos no começo... E posteriormente estender a outros dias...

- Mas como? – Interrompeu de novo a educadora... Nervosa e num tom descontinuado e pouco ordeiro... – Estes miúdos são especiais!

- Posso continuar? – Pediu Pedro... Subindo a voz e olhando-a de frente...

Elisa pareceu amedrontar-se e recolheu-se... Assim como algumas colegas que estavam por perto... Luz e Leontina pareceram gostar da atitude... E a directora manteve o mesmo sorriso brando...

- Tive oportunidade de conhecer os alunos... Contactei com todos e já inventariei algumas das suas dificuldades… Para além disso... Reconheço neles algumas capacidades que podem e devem ser estimuladas! – Pedro realizou uma pequena pausa para contemplar os presentes de ponta a ponta... - Especiais somos todos!... E  diferentes também!

- Todos diferentes... Todos iguais! – Brincou Irene... Repetindo um slogan publicitário de uma campanha humanitária...

Todos riram... Óptimo para quebrar o gelo...

- Mas o que podem fazer estes alunos senhor professor? – Indagou Dona Filó... Revelando curiosidade e interesse...

- Era isso que eu ia explicar... Se concordarem... Esboçarei um plano de acção que contemple áreas vocacionais internas e externas… Ou seja... Umas dinamizadas na escola... Outras fora desta.

Júlia preparou-se para falar... Mas... Pedro parou-a com um gesto da mão... E acrescentou:

- Nas áreas vocacionais internas... Poderíamos colocar alunos a auxiliar no refeitório... Na portaria... Nas fotocópias... A ajudar na limpeza deste espaço... A reconstruir e reparar materiais... Podemos aproveitar a cerâmica e a pintura como áreas vocacionais também! – Disse... Olhando para as colegas das oficinas... Irene e Dora...

- Como? – Interpelou Irene surpresa e talvez pouco satisfeita por Pedro se estar a meter na sua área...

Gerou-se um burburinho... Onde todos participaram desconjuntadamente... O professor olhou em redor e não falou...

- Meninas! Deixem ouvir o senhor professor! – Ordenou Dona Filó... Cerrando os olhos e ascendendo a voz…

Toda a gente se calou...

- Já comecei a elaborar um pequeno currículo para cada área vocacional... Algo que contemple os objectivos gerais e específicos... Assim como os recursos e os alunos implicados.

- Mas... Serão todos? – Interrogou Telma... Gaguejando...

- O objectivo seria colocar o maior número possível de alunos! É claro que não poderão ser todos! – Confessou... - Contudo... Deveremos escolher os mais capazes e até quem sabe... Fazer com que estes beneficiem de duas ou mais áreas vocacionais… Para que possamos conhecer as suas preferências... Isto é... Descobrir aquelas em que eles têm mais jeito e as que mais gostam.

- E as que são fora? – Inquiriu Júlia... Com algumas dúvidas...

Pedro torceu o nariz e fechou um dos olhos... Todavia... Destacou:

- Teremos de procurar empresas privadas e instituições locais… Como... A câmara municipal... A junta de freguesia... Centro de emprego e outros... Realizar com eles protocolos de cooperação e de colaboração.

- Falar é fácil! – Embargou Elisa... – Mas...

- Posso acabar?

Luz e Leontina sorriram de novo... Enquanto o professor olhou de frente a educadora...

- Estes parceiros... Receberiam alunos... Uma ou duas vezes por semana… Uma manhã ou uma tarde... Ou apenas algumas horas... Para desenvolverem actividades de formação em contexto de trabalho!... Procurando áreas de interesse... Dentro das capacidades destes... Para integrarem uma formação pré profissionalizante!

O murmurinho reinstalou-se... Todavia... Pairavam algumas ideias no ar…

Embevecidas... Luz e Leontina olhavam-no com afeição... Por seu lado… Dona Filó abanava continuamente a cabeça... Parecendo concordar com a situação...

- Tens alguma ideia para seleccionar as actividades consoante o aluno? – Indagou Júlia... Revelando alguma curiosidade...

- Tinha ideia de proporcionar aos alunos mais que uma área vocacional… Desta forma... Teriam a oportunidade de experimentar... E nós de os sondar e de os conhecer…  – Pedro reflectiu e parou um pouco... – Posteriormente... E de acordo com os protocolos que estabelecêssemos... Elaboraríamos uma área vocacional externa à medida das necessidades... Capacidades e interesses de cada aluno.

- Isto a falar... – Meteu-se Elisa... – Na prática não é bem assim! – Vociferou... Desenhando um sorriso de certeza... Como quem aprecia a desgraça dos outros... Enfim... Um hino ao conformismo e à oposição constante...

- Que grupos propunha? Senhor professor... – Questionou a directora... Revelando interesse pelo assunto...

O docente sorriu e acrescentou... Guiando-se pelas folhas de papel que trazia:

- Ao invés de falar de grupos... Pelo menos para já... Preferia falar de áreas vocacionais. Assim sendo... Teríamos… A culinária e o refeitório... A portaria... O escritório... A limpeza dos espaços... A reparação e manutenção dos mesmos... A cerâmica e a pintura... E porque não a carpintaria? – Perguntou… Irene e Dora pareceram concordar… - Entre outros… Tudo isto depende do que possamos dar e da contribuição de todos os recursos humanos desta instituição.

- Quem controla as actividades? – Interrompeu Elisa... Elevando a voz em destempero total... - Quem as promove?... Quem as regula? Quem é o responsável?

Pedro olhou-a… Exausto das suas tentativas de embargo... E contemplou-a por momentos... Elisa pareceu tremer por dentro... O professor modificou a feição e argumentou:

- Farei um currículo próprio para cada uma delas… Poderei ficar com essa responsabilidade… De supervisão... Apoio e avaliação do processo… Contudo... Gostaria de contar com uma ajuda mais directa da vossa parte.

Na sua maioria... As colegas manifestaram-se afirmativamente... Mostrando interesse em colaborar…

Júlia... Carla e Martinha... Começaram a conversar entre si... Partilhando ao mesmo tempo com os restantes algumas ideias de implementação do projecto... Irene... Dora e Telma... Também falavam…

Saudade e Elisa pareciam ser as únicas a apresentar e mencionar as dificuldades... Se bem que a primeira... Mudava de posição aos poucos... Levada por Luz que as tentava dissuadir à força…

- Mas... Que grupos propunha? – Insistiu Dona Filó...

- Primeiramente… Gostaria de formar um grupo ligado à limpeza do espaço! - As colegas pareceram admirar-se… Mas… Deixaram-no continuar: - A Maura e a Raquel… A Angela e a Sarita… A Ilda e a Ana… - Disse recorrendo a uma cábula… - Em grupos de dois… Inicialmente às sextas-feiras… Limpariam o pátio… A sala de convívio e algumas salas.

- Crianças a limpar salas? – Interrompeu Elisa atónita…

- Não são crianças! – Exclamou Pedro…

- Está bem… Mas ainda assim… São deficientes!

- Somos todos! – Respondeu…

As colegas riram e gerou-se mais um estardalhaço que parecia querer desviar a conversa… Dona Filó pediu que se calassem e que escutassem o professor…

- Não as quero na minha sala! – Exclamou Júlia… - Tenho lá coisas bastante importantes!

- Na minha também não! – Disse Elisa… Olhando para Telma… Procurando apoio… - E quem é que as ajuda? – Insistiu…

- Não faz mal! – Falou Pedro… - Há muito para fazer… Limpam a minha sala… O ginásio… A sala de convívio e o pátio!... Não há problema!

Elisa calou-se… E o docente continuou:

- Falarei com Bela para as supervisionar ao início! Tenho a certeza de que nos ajudará!

Pedro já tinha falado previamente com Bela acerca do assunto… Sabia que estava à vontade…

- Depois tenho uma proposta de grupo… - Avançou… Olhando de novo para o papel… - Que auxiliará no refeitório… Na preparação dos lanches da manhã e da tarde… A servir os pratos ao almoço… Ajudar na limpeza das mesas e do chão do refeitório… Entre outros…

As colegas olharam-no…

- Também já falei com a cozinheira! – Disse… Mirando Elisa com um ar de gozo…

Luz e Leontina… E até Dona Filó sorriram… Nitidamente se percebia que a educadora estava do contra... Numa posição de insistentemente crítica... Porém... Pouco sustentada e talvez estúpida...

- Por fim... Tenho ideia de colocar a Rosa a ajudar numa sala!

- Isto é o cúmulo! – Interrompeu Saudade... Nervosíssima...

- Ela não pode fazer o que fazemos! – Exclamou Telma revoltada...

Elisa abanava a cabeça... De olhos cerrados... Completamente incrédula com a situação…

Descrente estava o professor... Com a atitude das suas colegas... Mas mesmo assim avançou:

- Obviamente que não fará o que vocês fazem! Nem é essa a ideia... – Justificou... – A responsabilidade será para quem lá está!... Estamos a falar de pequenos trabalhos… Nomeadamente... Brincar com os alunos... Ajudá-los e colaborar na sua educação…

- Na sua educação? – Interrogou Elisa possessa... – Deficientes a cuidar de outros!

- Como trabalhas na educação especial sem acreditar no que fazes? – Inquiriu Pedro elevando a voz...

Elisa tentou falar... Mas o professor não deixou e insistiu:

– Se não acreditas nestes miúdos... Estarás apenas a ocupá-los ou a entretê-los... Isto não deve ser um depositário! Deve ser uma escola! – Argumentou... Fazendo com que fosse o único senhor da palavra naquela sala... – Proporcionar um ensino de qualidade... Que envolva transmissão e aquisição de competências! Centrado no aluno e na sua inclusão social!

- Concordo plenamente! – Afirmou Dona Filó... Com bastante tranquilidade... – E devo dizer-lhe que estou muito satisfeita com o seu projecto! – Acrescentou… Desenhando um sorriso leve...

- Mas ainda há mais... – Avisou...

As restantes pessoas... Pareciam agora mais consonantes face à intervenção abonatória da directora...

- O que tens mais? – Perguntou Martinha curiosa...

O professor sugeriu que o Teófilo passasse a realizar algum trabalho informático... Uma vez que possuía alguma motivação e jeito... Trabalhos básicos... Como... A ementa do refeitório... Listas de alunos... Tabelas... Isto é... Uma ajuda útil para a escola... Numa área vocacional orientada por Luz... Que assim que escutou o seu nome... Sorriu deliciada...

- Desculpa interromper! – Disse Carla... – Mas não estou a perceber uma coisa!

- Ora diz!

- Os alunos em questão passam a ter só isto?

- Não! Claro que não! – Esclareceu... – Os alunos continuarão a beneficiar da área académica... Das terapias... Da psicologia e terapia da fala... Da psicomotricidade e das oficinas…

- Como é isso das oficinas? – Perguntou Irene... Revelando algumas dúvidas...

 Pedro sorriu e continuou:

- A ideia de área vocacional é de eles terem oportunidade de experimentar várias... Como a pintura... A cerâmica e a limpeza... Posteriormente e de acordo com a idade é que faremos uma selecção de uma mais especializante… Que quem sabe... Até pode ser alvo de uma certificação… – Disse... Olhando para Dona Filó... Como que sugerindo…

Júlia e Martinha balançaram as cabeças e pareceram exteriorizar alguma concordância…

Seguidamente... Falou do caso do aluno João... Que seria uma óptima ajuda na portaria e na vigilância do espaço... Podendo inclusivamente ser utilizado para pequenos recados no exterior do colégio... Como pagar a água... A luz ou o telefone... Ir aos correios... E mais...

Sugeriu ainda... O Mário para apoiar Leontina nas carrinhas... Acompanhando-a nos percursos de recepção e de entrega dos alunos... Auxiliando-os a subir e a descer da carrinha...

Curiosamente… Leontina pareceu ficar atrapalhada... Quando Pedro mencionou o seu nome e lhe traçou rasgados elogios... Ao contrário... Luz emburrou...

Para a área de reparação e manutenção... Área vocacional que envolveria pequenas restruturações de espaços e de materiais... Pedro escolheu… Carlos... Virgílio... Luís e Roberto…

Explicou ainda às colegas Irene e Dora... Que teria de ter o contributo das duas... Articulando com a carpintaria... Pintura... Cerâmica e todas as actividades realizadas nas oficinas... Elas pareceram concordar...

- E em relação aos outros? O Bruno? O Ronaldo? – Questionou Júlia preocupada...

- Tenho a ideia de integrar esses dois numa espécie de brigada de limpeza no exterior!

- Brigada de quê? – Demandou Dora surpresa...

Pedro sorriu e repetiu a ideia... Adiantando que integraria os dois alunos no grupo mais jovem da escola... Com Filipe... Carrapito... Ramos e Samuel... Cristina... Bebé e Fábio… Sairiam uma vez por semana para a rua... Armados com vassouras... Luvas e sacos do lixo... Para limparem uma determinada área...

- Quem vai com eles? – Indagou Júlia...

- Sim?... Com quem falaste desta vez? – Perguntou Elisa sorrindo em jeito de vitória...

- Poderei ser eu! – Exclamou... Sem qualquer medo ou problemas... Fazendo silenciar os presentes... Que na sua maioria... Apresentavam alguma falta de vontade em sair com os alunos para a rua... Aliás... Não era muito agradável passear na rua com alunos que se babavam... Deficientes com problemas motores... Ou de comunicação…

Infelizmente... Para aquela gente e para a maioria das pessoas... Não ficava muito bem...

- Tens alguma coisa prevista para os alunos da sala da Elisa? – Perguntou Martinha...

O professor revelou que tinha previstas algumas alterações para aquela sala... Porém... Os alunos seriam integrados ao máximo e lentamente nas actividades... Uma incorporação de carácter pontual... Sem a obrigatoriedade ou o rigor dos outros...

Contudo... A maior alteração proposta para esta sala... Começaria pela adulteração do espaço... Isto é... Divisão dos alunos por duas salas... Assim como o próprio nome... Estimulação global I e II... A primeira para albergar os cinco alunos multideficientes... A segunda para atender a Sónia... Os dois clones e a Tatiana... A Andreia e o Hélio... O Zé e o Fábio...

As dúvidas das pessoas centravam-se no espaço... Onde colocariam essa sala...

- E se usassem a sala que está fechada? – Propôs Martinha... Arregalando os olhos...

- Estás doida! – Exclamou a educadora... – Isso dava muito trabalho!

Rapidamente... E de novo... Instalou-se uma algazarra ensurdecedora... Sem chegar a porto que fosse... Nesse momento… Voaram palavras de um lado para o outro... Sem missão aparente... Despenhando-se ao primeiro embate... Sem consciência ou razão...

- Nada se consegue sem trabalho! – Assegurou Pedro... Fazendo calar as hostes... – Proponho modificar e alterar as salas. Criar um espaço na sala I... Com pistas tácteis e estímulos sonoros e visuais...

- Não me consigo desdobrar entre as duas salas!

- Eu sei Elisa! Porém... Poderás programar e orientar as actividades. Auxiliando a Telma!

A educadora preparou-se para falar.... Mas Pedro interrompeu-a de novo... Dizendo que Leontina e a aluna Rosa auxiliariam Telma na sala um... Saudade ajudaria Elisa em tempos cruciais do dia...

Enfim... A partir dali... Pedro enredou um discurso onde enalteceu e valorizou o trabalho de equipa... Em prol do desenvolvimento dos alunos e da sua integração...

Propôs actividades desportivas... Passeios pela comunidade envolvente... Para que os alunos ganhassem autonomia pessoal... Circulando na rua... Atravessando passadeiras... Conhecer sinais de trânsito e andar no passeio... Sugeriu que se visitasse uma cidade mais distante... Utilizando o comboio... Para experimentarem um transporte diferente... Comprando um bilhete... Passeando em diferentes meios... Propôs umas experiências na piscina municipal... Idas à praia e um acampamento... Que gerou muita contestação... Enfim... Pedro teria tempo... Pois... Seria só no final do ano lectivo...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XX

Na sexta-feira... Pedro iniciou o dia na sala de aula... Com o grupo mais limitado e virado para a escolaridade…

Ramos... Sempre bem disposto e animado... Afiava o lápis... De sorriso nos lábios... Curvado pela marreca... Num movimentar repetitivo das sobrancelhas... Com calma e sem pressas...

Depois de se sentarem... O professor explicou-lhes a finalidade do jornal de parede... Os alunos não pareceram muito entusiasmados e atentos... Contudo... Quando Pedro pediu um voluntário para completar o boletim meteorológico... Alguns manifestaram-se... Talvez sem saber ao que iam…

Pedro escolheu Samuel...

Ramos e Filipe ficaram amuados... O professor explicou que a partir dali seria à vez... Todos teriam o direito e o dever de o fazer...

No resto dessa manhã... Pedro distribuiu pelos alunos várias folhas cheias de letras... Dentro de pequenos quadrados... O objectivo seria cortá-las e guardá-las dentro de uma pequena caixa devidamente identificada... A actividade demorou imenso e não ficou concluída…

Os alunos apresentavam grandes dificuldades em utilizar a tesoura... Filipe... Ramos... Carrapito... Que deslocava a mão da folha para a boca... Da boca para a folha... Bebé... Com dificuldade em seguir o traço... Samuel... Que não gostava de falhar...

- Isto é pra quê?... Rum... Rum… - Contestou Cristina… - Pra que é isto professor? – Insistiu... Olhando-o por cima dos óculos... Num jeito de puro gozo... Cortando a folha... Com correcção... Isto é… Na medida do possível... Ou das suas capacidades... Fabricando com os lábios um desenho matreiro...

Nesse dia... Ao almoço Pedro sentou-se na mesa dos alunos da manhã de terça-feira... Bruno... Sentado junto à janela cumpria uma postura torcida e molengona... Olhando o professor e os colegas por cima dos óculos... Sem falar...

Ao lado Mário... Que por vezes metia conversa com este... Na verdade… Pareciam entender-se... Contudo… O tom de voz era muito baixo...

João... Mesmo ao lado de Pedro falava acerca de futebol... Do benfica e da selecção nacional... Todavia… O professor não entendia metade das suas palavras... Mas mesmo assim… Estimulava-o… Continuando…

De uma forma desorganizada... Maura e Raquel cruzavam diálogos com Pedro... Sem respeitar a harmonia de uma conversação normal... Mas… De facto… Nada tinha de normal...

Afinal… Uma súmula de perguntas diversas… Acerca de cores... Gelados e telenovelas...

Angela olhava-o de lado... Uma atenção estranha e perturbadora... Como se o contemplasse a sério... Vigilante e atenta... Aos movimentos e palavras do novo professor...

Ronaldo... De barrete enfiado na cabeça... Não por frio... Mas para o estilo... Falava do seu sporting... Grupos de rock e guitarras eléctricas...

- Sabes tocar professor? – Perguntava...

Pedro respondeu que sim... Aliás... Mais ou menos... E nesse momento pareceu abstrair-se do colóquio que decorria na mesa do refeitório... Saiu do colégio e daquela cidade... Pareceu entrar na sua velha cidade... Viu a sua casa e entrou no seu quarto... Lá estava a sua viola velha... Encostada à parede... Aguardando-o...

Subitamente... Sentiu um toque no ombro... Pedro regressou de novo à mesa do almoço... Era Filipe que uma vez mais o convidava para se sentar com ele e os colegas... Atordoado... O professor olhou a mesa... Ramos e Bebé acenaram... Efectuando um sorriso convidativo e irrecusável…

O professor levantou-se e levou Filipe com ele... Explicou-lhes com ternura que segunda iria almoçar com eles... Luz contemplou a sua atenção para com os miúdos... Parecia embevecida... Já Saudade... Era o costume... Trombuda e repressiva...

Voltou para a sua mesa de origem... Esbarrou com Leontina... Que havia chegado... Pedro desculpou-se e sorriu... Agarrando-a... Ela também o agarrou…

A sua fragrância era demasiado tentadora e sensual... Um convite à volúpia e à loucura... Os seus olhos pintados inebriavam... Cheiro a delícia... Que confundia o desejo e a razão...

Com a sua voz doce... Pronunciando Algarve... Perguntou:

- Não me viste?...

Pedro sorriu e segredou-lhe ao ouvido:

- Achas mesmo que não te via?

Com um brilho nos olhos... Leontina separou-se de Pedro... Favorecida de encanto e de prazer... Provavelmente... Agraciada para o resto do dia...

Pedro sentou-se novamente...

Gaguejando... Cláudia... Perguntou-lhe se queria atropelar Leontina... Todos riram...

Sarita levantou-se para repetir... O professor convenceu-a a desistir e ela fê-lo... A aluna estava demasiado obesa... Mas... prader willi... Que era a sua problemática... Convidava mesmo a uma alimentação exacerbada... Um descontrole que não conseguia dominar…

A aluna sentiu a atenção do professor... Pareceu agradar-lhe e ficou...

- Quando é que trazes a guitarra? – Interrogou Ronaldo...

- Não comes professor? – Demandava João... Ao notar o atraso de Pedro...

O novo professor suava... De falta de tempo e de espaço… Para a refeição… Para si próprio e para as emoções...

Respondeu a Ronaldo dizendo-lhe que ia tratar do assunto...

Pedro sabia que não voltaria tão cedo à sua terra natal… Seria melhor desenrascar-se de outra forma... Depois se veria...

Ao longe... Luz olhava Pedro com um ar sério... Um pouco parecida com Saudade…

As colegas atravessaram o refeitório... Saindo da tal sala privada…

Elisa... Júlia e Martinha... Olharam-no com alguma repulsa pela sua atitude... O novo professor sentiu alguma antipatia no ar...

Porém… Carla... A terapeuta da fala e Telma cumprimentaram-no com simpatia...

Irene e Dora haviam ficado... Andavam sempre mais juntas... Afinal... Trabalhavam ambas nas oficinas... Isto é... No piso de baixo…

Do outro lado do balcão Preta e Bela conversavam com Leontina... Numa galhofa monumental... Cá fora... Saudade permanecia mal-encarada... E estranhamente... Luz também...

Nessa tarde... Pedro observou os alunos na totalidade... Nas actividades de expressão... Nas suas brincadeiras e conversas…

Na sua cabeça iam aparecendo ideias…

Aos poucos... Conseguiu delinear uma série de metas e de estratégias com vista à ocupação dos alunos... Actividades formativas e preparatórias para uma futura integração... Áreas vocacionais internas e externas... Actividades que possibilitassem uma transição para a vida activa consertada e eficaz...

Nesse dia... Ainda teve Rafael... O último dos alunos multideficientes... Rafa para os pais e para escola…

De olhar disperso e firme... O aluno de corpo grande para as capacidades... Atraso mental... Carência de comunicação... Membros flácidos e sem cor... Entorpecimento quase total... Dependia completamente para comer... Beber e defecar…

A fralda era demasiado grande... O choro era doente e atormentador... A música convidava-o ao riso e à alegria… Por meio de ruídos salteados e ao acaso... Aos olhos de quem não sabe… Ou desconhece… O que este tem na alma...

O novo professor falou com Dona Filó... Tomaram um café numa pastelaria local… Marcou uma reunião geral para segunda-feira da semana seguinte... Ela apenas lhe perguntou se haviam muitas mudanças…

Pedro engoliu em seco... Mas... Respondeu afirmativamente... A mulher sorriu amorosamente... Afirmando:

- Acho bem! Precisamos de mudar!

Nessa noite... O novo professor estava exausto com o final da semana... Adormeceu no enorme terraço... Sentado numa cadeira de esplanada... Enquanto olhava a lua e pensava na vida... Na família e no seu conforto... Na solidão que vivia... No amanhã...

António Pedro Santos

(Continua)... 

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XIX

Nessa noite... Depois do jantar... Pedro sentou-se no terraço... Para alinhavar as coisas para o dia seguinte... Ou como dizem os entendidos… Planificar…

O quase terminar de uma semana inteira... Permitia-lhe agora conhecer o contexto da escola... Os alunos e as suas dificuldades... Ou melhor... Algumas delas... Até porque os mesmos variavam demasiado as atitudes e os comportamentos...

O estar ali... Distante e quase ausente da sociedade... Num processo de ensino diferente... Separatista e desviado... Das outras crianças e jovens... Nascidos no mesmo país... Com os mesmos direitos... De por exemplo... Beneficiar de uma educação que respeite a diferença... Inclusiva e mais justa... Enfim…

Ao longe a lua imperava... A paisagem deslumbrante... Engrandecia a mente de conhecimento…

Controvérsia social moderna... Que exclui e afasta os seus próprios filhos... Escondendo-os dos outros por serem diferentes... Em asilos... Hospícios e manicómios... Como se não existissem...

Alegando a falta de preparo e de condições... Numa história ainda pior que pouco evoluiu…

Instituições de tratamento de outro entrecho... Teia inseparável do pensamento social... Da ciência... Das doenças e dos doentes mentais... De ontem e de hoje... Camisas-de-força... Prisões e jaulas... Acolchoadas e separadas... Na solidão obscura... Onde se apura o descontrole e a loucura…

Choques eléctricos... Torturas ao cérebro e no corpo... De um ser humano com direitos à luz da constituição... De ontem e de hoje... No século dezanove... Na república... No estado novo ou mesmo depois do vinte e cinco de Abril... Tudo evoluiu... Mas pouco mudou para esta gente...

Pedro observa a vista e divaga... O cigarro consome-se pelo vento e pelo esquecimento...

Ao fim de quase uma semana de trabalho... O professor parecia apaixonado por aqueles alunos... Pelo espaço e pela sua história... Sentindo-se um privilegiado por ali estar e viver tudo aquilo...

Pedro trava o cigarro e expande o fumo para bem longe... Participando como um artista... Que pinta e instala um componente mais... Naquela cópia de deslumbro... Como tantas outras... Diárias e tão dissemelhantes... Todos dias tão únicas e empolgantes... Que ainda assim… Parecem passar bem longe aos olhos de quem por aí anda... Num encerrar de um dia que já foi... E na preparação de um novo amanhã...

António Pedro Santos

(Continua)... 

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XVIII

Na quinta-feira... Pedro teve oportunidade de trabalhar com os alunos mais evoluídos… Isto é... Todos sabiam ler... Ainda que apresentassem dificuldades... Nomeadamente... Erros ortográficos... Confusões verbais... Ou ao nível da construção frásica...

Na matemática... Apenas um deles fazia multiplicações simples... Os restantes só conseguiam efectuar somas e subtracções… O que para o novo professor já era muito bom... Face ao panorama anterior…

Para além disto... Eram alunos mais comunicativos e faladores... Com objectivos mais definidos... Em suma… A participação era outra...

Na sala estavam os alunos mais velhos do colégio...

Teófilo apresentava perturbações do espectro do autismo... Um rosto bem feito... Escondia na sua beleza exterior um grande entrave interior... Contudo... A vivência e o estímulo que beneficiara ao longo dos tempos já surtia efeito... Quando solicitado... Respondia tipo robot... Articulando um discurso bem preparado e com ênfase... Porém e por vezes... Confundia-se na totalidade... Baralhando-se e perdendo a paciência com a sua cabeça e com os seus problemas…

Dizendo: “É a minha cabeça! Não tenho a culpa!”…

Curioso... Estudava palavras com prazer... Desbravando dicionários e enciclopédias...

Enfim… Registos mais antigos falavam em autismo infantil... Para Pedro... E depois de uma exaustiva investigação... Aprendeu que o autismo é uma deficiência e não uma doença mental... Talvez fosse Asperger... Bem melhor e mais evoluído... No entanto... Havia por ali um problema neurológico... Ou cerebral... Que originava um decréscimo da comunicação e das interacções sociais...

Teófilo recolhia-se dentro de si próprio... Apesar dos seus dezassete anos de idade... Nem sempre correspondendo aos factores extrínsecos... À margem... Aparentava indiferença para com os outros indivíduos... Muitas vezes com o mundo...

Adorava a sétima arte... Foi o novo professor que lhe ensinou o termo... De uma forma especial... Contava filmes do seu gosto pessoal ao pormenor... Relatando diálogos e modificando a voz... Pintando cenários de magia com muita cor…

Gostava de desenhar e fazia-o razoavelmente bem... Invadia o professor de perguntas... Previamente preparadas... Acerca de palavras difíceis... Bandeiras e países... E até sentimentos... Que o atormentavam no dia-a-dia... Uma perturbação vitalícia que comprometia seriamente a sua interacção social... A comunicação... As actividades e os interesses...

Patrícia e Rosa... Sentaram-se juntas... Quinze e dezoito anos respectivamente... Um pouco tímidas... Contudo... Vigilantes e atentas ao decorrer da aula... Enquanto o professor falava e se deslocava de um lado para o outro...

Ilda sentou-se junto de Ana… A sorte grande e a terminação… Falando por vezes sozinha... Sem qualquer hipótese para além do monólogo…

Apesar do seu olhar disperso... Apresentava um elevado grau de motivação pela frequência escolar... Sobretudo pelas novas aprendizagens... Já a colega do lado... Nada dizia...

 

 

 

Noutra ponta... De braços cruzados... Angela observava o professor e os colegas ao longe... Colocada nitidamente à parte por estes... Resignava-se ao seu lugar... De distante e só...

Em frente... Estava o Carlos... Largo e sempre suado... Transpirando uma abundância de suor por toda a sua carne… Observando e ouvindo a conversa do professor…

Ao lado… Virgílio... Com o arranhar dos dentes... Num enrugar da face... Clara e ameninada... Piscando um dos olhos...

Mais atrás... Estavam o Luís e o Roberto... O primeiro a desenhar e o segundo com o dedo enfiado no nariz...

Pedro falou com os alunos como se fosse da idade deles... Os jovens escutaram-no com atenção... Sonhos... Profissões e futuro... Dificuldades e ambições... Para além disso... Deu-lhes espaço para que falassem de si... Sem excepção... Mas nem todos se manifestaram... Porém... E enquanto falou... Até os mais dispersos lhe pareceram atentos...

Convenceu-os a fazer um jornal de parede... Um espaço dedicado a todos os alunos que frequentassem as actividades daquela sala... Dividiram-se em pequenos grupos e colaboraram motivados...

No final Roberto perguntou... Em voz alta...

- Quando é que jogamos à bola?

A sala inteira riu... Até Ana... Que sem mostrar os dentes... Desenhou um sorriso leve na face...

Durante o almoço... Pedro sentou-se junto destes alunos... Uma mesa grande que comportava aquele grupo inteiro... Algumas colegas olharam-no com estranheza... Elisa... Martinha e até a psicóloga…

Ao longe... Luz ajudava Andreia e sorriu para o professor... Já Saudade não parecia estar muito satisfeita...

Enquanto comiam... Pedro observava os seus modos e escutava as conversas... Uma forma eficaz de os conhecer melhor... Pensamentos e sonhos verdes... Ou primaveris... Comportamentos estereotipados e alguns pouco usuais na sociedade... Usavam apenas um talher e o guardanapo era pouco utilizado... Muitos deles limpavam a boca ao braço...

Os alunos invadiam-no de perguntas... Como se o idolatrassem... Afinal... Um respeito que parecia ter conquistado…

Roberto falava de futilidades... Uma conversa completamente desorientada que apenas procurava atenção... Luís corrigia-o constantemente... Roberto parecia ouvi-lo…

Carlos contava coisas da sua família... Do pai e da mãe... Do irmão e dos sobrinhos... Que embora adoptiva... Era a que ele considerava... E a que tinha talvez alguma consideração por ele...

Patrícia conversava por todas as moças... Que envergonhadas sorriam... Atentas ao desenrolar…

Virgílio... Gaguejando disse:

- Professor... Sabia que nunca comem com a gente?

Pedro percebeu-o... Mas mesmo assim perguntou:

- Quem?...

O aluno preparou-se para articular... Expressando na face uma tentativa...

- Os professores! – Adiantou-se Patrícia...

- Você é o primeiro! – Completou Virgílio a custo...

- É verdade! – Exclamou Patrícia olhando-o... Os restantes concordaram... E gerou-se mais um motivo de conversa... Por entre cruzamentos de palavras trocadas... De um lado para o outro...

- Isso é bom?... – Questionou Pedro... Revelando algum interesse e atenção… – Acham melhor?...

Os alunos manifestaram-se em grupo... Aliás... Quase todos... Se bem que… Ana permaneceu muda e Teófilo parecia não estar ali... Demasiado concentrado na sua sopa...

- É melhor! – Afirmou Virgílio... Gesticulando com o braço...

- Os alunos gostam mais! – Disse Patrícia... Engolindo metade das palavras...

- Assim falamos todos! – Interrompeu Carlos… – Aprendemos e tal...

- Fazemos parvoíces! – Gritou Roberto... Olhando em redor abruptamente... Numa tentativa de dar nas vistas...

- Lá tá este!... – Exclamou Luís... Agitando a cabeça em sinal de desagrado...

Os restantes também demonstraram o seu descontentamento...

- E tu Teófilo... O que achas ?

- Diga professor?... – Questionou surpreso e atarantado... Interrompendo de imediato a sua acção...

- Estás sempre a dormir! – Exclamou Carlos...

- O que achas do professor... – Disse Virgílio...

- Comer aqui com os alunos? – Interrompeu Patrícia... Rapidamente...

Teófilo efectuou um compasso de espera... Buscando na sua cabeça algum raciocínio que lhe possibilitasse a sua resposta...

- Acho bem! Acho bem! – Bisou... Abanando a cabeça...

Entretanto... Filipe saiu da sua mesa e aproximou-se de Pedro... Colocando-lhe a mão nas costas... Luz chamou-o engrossando a voz... Mas o professor fez-lhe um sinal de concordância para com a situação…

O aluno com trissomia vinte e um... Usava uma linguagem quase totalmente imperceptível... Porém... Pedro entendeu que este o convidava para a sua mesa... Com um rosto de pedinte...

- Vai-te embora! – Ordenou Roberto... Falando alto...

Pedro repreendeu-o... Pedindo-lhe que não falasse assim... E explicou a Filipe que se sentaria na sua mesa noutro dia...

Ainda assim… O aluno afastou-se desolado... Cabiz baixo... Olhando-o às prestações por cima dos óculos... O professor sorriu e Luz também…

Saudade ainda repreendeu Filipe por se ter levantado... O professor achou que não era necessário... Mas nada disse...

Combinou com os alunos mudar os hábitos à mesa... Utilizar os dois talheres... O guardanapo e colocá-los na ordem adequada... Beber água... Comer de tudo um pouco e terminar a sopa... Alertou-os ainda... Que por causa dos outros alunos... Teria de se dividir um pouco pelas outras mesas…

Os alunos nem regatearam e até pareceram demonstrar interesse no assunto... Talvez porque Pedro lhes transmitiu preocupação e consideração pelo desenvolvimento global... Falando-lhes de melhores homens e mulheres... Com poder para impressionar os outros e deixar a sua marca na sociedade... Os alunos ouviam-no enlevados...

Durante a tarde... Na aula de psicomotricidade... Os alunos do primeiro grupo fizeram um aquecimento geral... Comandado pelo professor... Correndo... Andando... Rastejando e rebolando... No parado... Com flexão... Extensão e rotação das articulações... Alongamentos... Entre outros…

Posteriormente atribuiu uma bola a cada um... Pedindo-lhes que a manipulassem... Atirando-a ao ar e agarrando... À parede... Chutando-a e conduzindo-a… Driblando-a...

Filipe foi o único que pareceu mais à vontade...

Ramos e Fábio apresentaram grandes dificuldades de coordenação óculo manual e pedal... Assim como no que diz respeito à motricidade global…

Bruno era esforçado... Contudo… Desistia facilmente…

João era um poço de força... Mas muito desajeitado... Adorava desporto... Ao contrário de Carrapito ou Samuel...

Ainda fizeram actividades de deslocamentos e equilíbrios num banco sueco e uns enrolamentos no colchão...

No final da aula... Entrou outro grupo… Alunos de educação física... Com eles... O professor organizou um pequeno jogo pré desportivo... Utilizando uma bola e dois arcos... Alguns alunos destacaram-se mais... Como o Luís e a Patrícia…

Os restantes estavam bem mais acanhados... Mas foram aparecendo... Como o Mário e o Carlos...

Virgílio e Roberto perseguiram-se a aula toda... Provocando-se mutuamente e baixando o rendimento da aula... Pedro interveio sempre e conseguia resolver a situação por momentos... Todavia… Roberto chamava ao colega “cara torta”… E começava tudo outra vez…

Rosa e Cláudia estavam mais tímidas e Teófilo parecia não saber o que fazer... Mas enfim... Lá correu... E os alunos acabaram por empenhar-se...

O aluno multideficiente da quinta-feira chamava-se Ruben... Tinha síndrome de lowe... Segundo os registos apresentava um grave défice das suas capacidades físicas e motoras... Sensoriais e intelectuais…

Com dez anos de idade... Vivia numa instituição de solidariedade social... A mãe... Muito nova... Visitava-o por vezes... Não tinha pai... Não que tivesse falecido... Mas porque fugiu a sete pés após o seu nascimento…

Ruben era totalmente cego... O seu aspecto de bebé grande... Perdia-se na observação dos seus movimentos bruscos e violentos... Auto agredindo-se com brutalidade... Feriando-se diariamente… Talvez por receio ou estranheza… Provavelmente por medo…

Para além disto... Não falava... Chorava bastante e nunca ria... Chupava os dedos das mãos e dos pés... Não andava e apenas gatinhava... Aliás... Arrastava-se pela sala... Com as pernas atrofiadas e pé boto…

O professor transportou-o até ao ginásio... No primeiro andar…

No caminho... O aluno esbracejou e gritou... Os colegas que por ali se encontravam olharam-no…

Ao entrar... Pedro deu-lhe bolas... Arcos... Cordas e outros objectos... O aluno agarrava-os e atirava-os para longe... Berrando em seguida... Só não atirou uma garrafa de água... Que era do professor... Mas gritou... Talvez porque não a conseguisse abrir... Sempre com um ar de mostrengo... De aberração…

Pedro falava com ele e suava...

- Eu vou abrir a garrafa! – Dizia o professor... Tirando-lha...

Roberto bebeu vários golos... Enfiando o gargalo totalmente na boca… Pedro emendou a sua atitude... Mas pouco adiantou... Nunca tinha visto nada assim... Ligou a música e este acalmou-se... Adormecendo... No final... O professor levou-o de regresso para a sua sala...

- Bem... Estás todo molhado! – Observou Elisa... Sorrindo... – Então... É ou não é difícil? – Disse... De mão nas ancas... Armando-se... Como se fizesse uma advertência a Pedro... 

- Ninguém disse que era fácil!... – Exclamou o docente... Em jeito de resposta à observação descabida...

- Eu não disse! Eu não disse! – Repetia... Como se tivesse avisado Pedro ou alguém do colégio... – Ninguém me ouve! – Desculpava-se e sorrindo...

Pedro mirou-a de alto a baixo... Como que... Medindo o seu calibre... Apreciando-a no seu todo... Enfim... Não passava de uma gabarola armada em vítima... Dentro de um contexto pouco ético e humano... Completamente fora... Contudo integrada na sociedade actual... E consequentemente ajustada à realidade social…

O novo professor detestava gente assim…

Telma... A auxiliar da sala... Pareceu percebê-lo... Ainda assim... Pedro ignorou a conversa da educadora e relatou a sessão com o miúdo... Enfatizando as suas dificuldades... Mas valorizando a sua juventude... Afirmando que não iria baixar os braços... Face aos lentos progressos que pudesse vir a ter...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando

XVII

No terceiro dia da semana... Quarta-feira de manhã... Depois do café... Pedro subiu com Elisa...

No caminho para ambas as salas conversavam acerca do início do ano lectivo:

- Estás a gostar? – Perguntou... Com a voz meiga e olhar desconfiado...

O professor respondeu afirmativamente... Contrapondo:

- E tu... Está a correr bem?

Elisa efectuou um desenho de enjoo... Como se um cheiro irrespirável andasse por ali...

- Bom dia! – Cumprimentaram em coro Irene e Dora... Que ao contrário de ambos... Desciam para as oficinas...

- Bem... As miúdas tão encantadas contigo! – Afirmou Irene...

- E os rapazes também! – Completou Dora...

Pedro sorriu... Irene agitou a cabeça e continuou:

- Sabes o que é que a Maura disse ontem lá em baixo nas oficinas? – Interrogou... Efectuando um pequeno compasso de espera... – O professor Pedro é muita giro! – Exclamou... Realizando um decalque oral do sucedido...

- E a Raquel disse: É lindo! – Gritou Dora... Num rasgo de imitação jocosa da aluna... Gaguejando para melhor parecer...

Elisa e Pedro riram... Se bem que... A educadora fê-lo de uma forma mais discreta e contida... Exactamente o contrário das colegas das oficinas... Que elevavam a voz... Encenando interpretações ao mais alto nível... Mesmo ao lado de alguns alunos que já andavam por ali...

Ao visualizar Ramos... Pedro deu-lhe a chave e pediu-lhe que abrisse a porta aos colegas... Depois foi atrás dele...

Elisa ainda realizou uma expressão de aspereza... Enquanto as restantes desciam as escadas rumo às oficinas...

Por outro lado… Pedro achou graça... Talvez pela forma tão idêntica com que articulavam o mesmo discurso... Encadeando palavras numa história colectiva contada a duas vozes... Harmoniosas na voz e semelhantes no aspecto...

Já na sala... O professor cumprimentou os alunos e explicou-lhes o que iriam fazer nessa manhã... Iriam trabalhar a escrita do nome... Alguns dos alunos pareceram entusiasmar-se com a ideia... Outros... Tão dispersos pareceram nem perceber... Como Cristina... Que juntava os dedos das mãos nos seus lábios... Rodopiando os olhos... Ou Filipe... Que contemplava o seu enorme lápis...

Ramos já estava a afiar o seu... Sorrindo em tom de gozo... E Bebé ainda preparava religiosamente a sua mesa... Retirando o material lentamente da sua mochila...

Talvez Samuel e Carrapito estivessem atentos... O primeiro a coçar a cabeça... Ainda devagar... O outro com a mão esquerda escondida na boca...

Pedro assobiou e bateu as palmas... Ramos também o fez...

Alguns alunos riram do ocorrido... E o docente sorriu também...

No final da aula... Os alunos dirigiram-se ao refeitório...

Saudade e Luz ajudavam os alunos com maiores dificuldades... Enquanto que… Preta e Bela... Do lado de dentro do balcão... Preparavam os pratos…

Ao passar... Pedro foi abalroado por Andreia... Que o abraçou... Arrastando o seu andar... Por entre uma excitação de riso com saliva... Que escorria agora para cima do novo professor... Pedro conduziu-a ao lugar... Mas esta... Agarrou-o com tanta força... Que Luz teve de o auxiliar...

- Ai! Ai! – Gritou... – Deixa o professor ir almoçar!...

Mas Andreia... Revoltada... Entoou gritos suprimidos da sua própria alma... De uma forma débil e translocada...

Pedro dirigiu-se ao local onde almoçaria... Porém... Foi também abordado por Sónia... Que o abraçou com toda a força…

Desta vez... Foi Saudade quem o ajudou... Levando a aluna para o seu lugar...

Tumultuosa... Entrou num pranto sem igual... Por entre lágrimas e um carpir medonho... Já ao chegar à porta... Pedro ainda ganhou um beijo de Maura... Que mesmo com o seu porte... Desapareceu timidamente com pulos infantis...

- Bem... Isso está mau! – Exclamou Carla... A terapeuta...

- Ainda és acusado de pedofilia! – Afirmou Martinha sorrindo...

Pedro agitou a cabeça e sentou-se... Cansado somente do pequeno período da manhã... Tão absorvente e intenso...

- Talvez não aguentes! – Disse Júlia... Bonacheirona...

- Comigo também foi difícil! – Estorvou Elisa... – Ao princípio estive para desistir! – Completou... Efectuando um olhar de vida complicada e penosa...

- Um homem nunca desiste! – Interrompeu Bela... Em grossa voz... Colocando o prato de Pedro na mesa...

- Ora aí é que é! – Exclamou Pedro... Seguro das suas palavras...

- Ora vêem? Caralho! – Desabafou Bela... – Ai! Desculpem! Saiu-me! – Descartou-se... Afastando-se...

Pedro sorriu... Contudo... A maioria dos presentes efectuou uma expressão de desdém...

O resto do almoço teve uma banda sonora usual... A conversa do ensino e dos alunos... Aliada à má educação e formação dos intervenientes no processo educativo…

O professor desligou... Alimentando-se e procurando descansar... Restabelecendo-se para a tarde e apagando dos seus ouvidos a futilidade das conversas das colegas...

Depois do café... Seguiram-se dois grupos de psicomotricidade...

Zé entrou no ginásio eufórico... Sem parar junto de Pedro... Que estava junto à porta... Acomodando-se nos colchões de ginástica... Enquanto o professor o chamava... Inutilmente…

Sónia placou-o por trás... Num abraço enérgico... Os clones ainda vinham no início das escadas... Agarrando-se e deslocando-se lentamente..

Tatiana também entrou no ginásio... Levando Hélio pela mão…

Pedro desceu para ajudar Andreia... Que assim que o sentiu... Esperou que este fizesse tudo... Libertando a moleza e o peso total…

O professor acomodou-a nos corrimãos e ordenou-lhe que subisse... A aluna não se mexeu e Pedro subiu... Fazendo-lhe adeus...

Ao chegar ao ginásio... Os clones estavam estacionados à entrada... Estagnados de corpo e face... Num sorriso artificialmente definitivo…

Hélio batia as palmas... Como sempre… Arreganhando os dentes... De olhos muito abertos…

Tatiana e Sónia espojavam-se no chão...

Ao contrário... Num autismo isolado e vão... Zé entretinha-se consigo próprio nos colchões…

Pedro pediu que se sentassem no centro da sala... Sónia sentou-se de imediato e Tatiana foi buscar o Hélio... Guiando-o para o local que o professor indicara... A pedido do docente...

Os dois irmãos também foram para o sítio... Mas não se sentaram e ficaram de pé...

- Zé! – Chamou o professor... Contudo... Este nem sequer se moveu... Continuando siderado nas suas íntimas actividades...

Andreia entrou por fim... Pedro elogiou-a e levou-a para junto dos colegas...

Sem ligar a Zé... Começou a aula... Ligando a música de um pequeno gravador... A opera rock “Tommy”... Dos “The Who”...

Pediu que estes se levantassem e começou o aquecimento... Correndo com eles... Saltando e pulando... Dançando... Saltitando ao pé-coxinho e pedindo-lhes que andassem nas pontas dos pés... Enfim... Os miúdos acederam à proposta... E consoante as suas capacidades... Imitavam o professor... Na medida do que podiam…

Tatiana auxiliava Hélio... Que parecia um pouco assustado com o ruído e talvez com o excesso de movimento…

Sónia desfrutava o movimento e a música em alto som...

Os clones... Necessitaram de ser empurrados pelo professor... Tipo motor de arranque... Mas depois lá fizeram...

Andreia... A princípio intimidada... Entrou numa deambulação de palmas e movimentações... Arcaicamente desarticuladas... De sorriso armado... Emitindo sons de pura felicidade...

Ao longe... Zé olhava os colegas... Todavia... Permanecia distante... Sem participar... E assim foi até ao fim... Um olhar afastado e gélido... Numa tranquilidade de abusiva observação... Nessa aula já não fez mais nada sozinho... Mas não se juntou ao grupo... Ao sair... Beijou Pedro na testa com delicadeza e fugiu...

Andreia e Hélio tiveram de descer as escadas sozinhos... Com a supervisão do professor... Os irmãos e Tatiana foram obrigados a descer com a ajuda de apenas uma mão...

Em baixo... Já Sarita coordenava as operações... Formando com as colegas uma fila... Que esta organizava com distinção... Ao entrar:

- Então professor? Rum... Rum... – Cumprimentou Cristina... Elevando o braço... Numa expressão de desconserto... Rindo... Talvez de atrapalhação...

- Porta bem! – pediu Sarita... Colocando em ordem a colega...

- Tá bem! Rum... Rum... – Exclamou... Desculpando-se... Embora animada...

- Despacha-te! – Pediu Bebé... Com a voz sumida... Num sussurro... – Parva!

- Professor... Ela chamou-me parva! – Denunciou Maura... Com o rosto inconsolável... Apesar do seu corpo... Já um pouco envelhecido para esse tipo de birras...

Pedro sorriu e apaziguou a situação... Desvalorizando-a... Apesar de Raquel protestar de uma forma lunática acerca da atitude de Bebé... Revirando os olhos...

- Ela é assim! Ela é assim! – Repetia Ilda... Sem parar... – Eu sei! Eu sei!

- É verdade! – Exclamou Angela... A irmã... De olhar vesgo... Cruzando os braços...

- Cala-te! Cala-te! – Gritou Ilda... Revirando os olhos e gesticulando os braços num tom ameaçador... – Não tou a falar contigo!...

- Tá a ver professor... – Disse Sarita... Olhando-o com tristeza... – Assim não dá!

- Calma! – Pediu o professor... Elevando a voz e os braços...

Ilda continuava a barafustar e Raquel protestava... Arranhando as palavras e misturando-as com risos... Descontroladamente... Por entre o tique vocal de Cristina e o desconsolo de Maura... Face à impotência de Sarita que olhava o professor... Com atenção…

Pedro ligou a música... Em alto e bom som...

Lentamente e atendo às dificuldades físicas de Sarita... Assim como dos restantes alunos... Realizou um aquecimento com música... “Don McLean” e “American Pie”...

Dança individual... A pares e em pequenos grupos... O professor também participou... Puxando pelas mais envergonhadas... Inventando passos e criando…

As alunas explodiam em movimentos impossíveis de fazer sem música... Enfim... Sonhos e desejos proibidos... Numa sociedade nua e crua... Carregada de preconceitos... Sem uma banda sonora que as liberte... Desenvolva e divirta...

Não deu para fazer uma roda geral... Ilda não quis estar no mesmo círculo da irmã... Enfim... Seria um trabalho a fazer... No futuro…

No final dessa aula... Ainda houve uma sessão individual com Bento... Com doze anos de idade... Multideficiente e totalmente dependente...

Também ele entregue aos cuidados de uma instituição de internato... Pais divorciados... Trabalhadores da classe operária sem tempo ou qualidade para oferecer ao filho…

O pai visitava-o sempre que podia... Tentava saber como estava e tratava-o com um carinho nunca visto... Pedro nunca vira um homem tão terno…

Bento não falava... O seu choro era mudo e quase silencioso... Gemidos subtis que ecoava sempre que se assustava... Com um toque ou com uma simples aproximação... Pedro aproveitou a música para que este se descontraísse... O seu corpo de bebé grande era rígido... Desfazendo-se em flacidez... Os pés e mãos atrofiaram... A cabeça agitava-se... E os olhos amedrontavam-se sempre que este sentia medo...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando

XVI

No dia seguinte... Terça-feira... Pedro dirigiu-se ao café... Estavam lá Luz e Bela... Tomou o café com ambas... Falaram acerca do dia anterior...

Luz estendeu-se em divagações pelo passado da escola e Bela esticou-se nas palavras... Aliás... Como sempre…

Ao sair... Luz acompanhou-o até ao colégio... Atalharam pela escadaria...

Uma vez mais... Pedro perseguiu o seu rabo enorme com atenção... Vestido vermelho que trazia... Na sua pele escurecida pelo sol da praia... Sandálias cor de prata…

Paragens e interrupções... Na subida da escadaria... Onde desenvolviam ainda mais os assuntos falados... Através de toques subtis no ombro ou no braço... Num aperto em que por vezes... Dava para sentir o seu cheiro e o seu hálito fresco a pastilha elástica...

Lá chegaram a cima e cada um foi para o seu lado...

Abriu a sala e aguardou os alunos…

Chegou o João... Um aluno residente próximo das instalações da escola... Com deficiência mental moderada... Um dos mais velhos em idade e antiguidade na escola... Adorava falar de futebol... Se bem que a conversa não era o seu forte... Apresentava dificuldades gravíssimas ao nível da comunicação... Falhas e interrupções... Na conversa e no discurso... Raciocínio e memória... Uma simpatia de aluno que já parecia procurar o seu lugar num mundo complexo de adultos…

Chegaram também a Maura... A Raquel e a Angela... Que Pedro já tinha conhecido na aula de psicomotricidade

- Bom dia! – Cumprimentou docemente Leontina... Permanecendo junto à porta...

- Obrigado Leontina! – Agradeceu Sarita... Por esta a ter auxiliado com a mochila... Entre comendo algumas letras das palavras... Com a voz melosa e cândida... – Bom dia! – Cumprimentou... Entrando e sentando-se...

- Nada querida! – Exclamou Leontina... Olhando a sala com um sorriso contagiante...

Esta mulher com cinquenta anos... Ou quase... Inventava um modo de estar ou de parecer... Bonito e fora do comum... Calça de ganga muito apertada... Cabelo farto e composto... Blusa justa... Segurando um peito amamentador de muita gente... Uma aparência sensual que transparecia alegria... Vontade e desejo... Para lá do seu estado... Já debilitado pela idade que carregava... 

- Está muito bonita hoje! – Elogiou o professor aproximando-se...

- Está não! Estás! – Corrigiu... - Obrigado! Só hoje? – Perguntou abrindo os braços... Mostrando alguma indignação...

– Hoje e não só! – Emendou... – Sempre!...

- Ah! – Exclamou... Colocando-lhe a mão no ombro... Dando-lhe dois beijos na face... Um cumprimento... Lento e profundo... Na quentura dos seus lábios carnudos e pintados de vermelho... Pedro desfrutou da sua fragrância e da sua brandura... Sentiu os seus mamilos no seu peito... Apeteceu-lhe agarrá-la...

– Já valeu a pena vir cá! – Afirmou afastando-se... Com um brilho maior no olhar...

- Vem quando quiseres! – Convidou o professor... Encenando alguns gestos de pura representação...

Leontina saiu... Acenando a mão com suavidade e macieza... Soprando um beijo ao professor e aos alunos presentes... Que dela se despediram em coro...

Bruno entrou na sala timidamente... Por detrás dos seus óculos... Espreitou a sala... Os colegas cumprimentaram-no...

- Então... E o benfica? – Perguntou João... Corroendo as palavras... Sem qualquer harmonia...

Bruno sorriu mas não respondeu…

Este aluno com trissomia vinte e um... Vestia um fato de treino com o emblema do seu clube do coração... Estatura baixa e muito gordo... Falava muito pouco e por vezes enervava-se facilmente com os colegas...

Mário chegou... Irmão de Ana... A tal que sofria de mutismo selectivo... Alto e magro... Bastante desenvolvido socialmente... Porém... Muito atrasado ao no que diz respeito aos conhecimentos e aquisições académicas…

A família... Tal como a maioria das outras... Era super disfuncional... Dizia-se que a mãe era prostituta... Contudo... O aluno era um exemplo no colégio... Para todos os seus colegas…

Essa foi uma das razões porque Pedro o integrara neste grupo... Liderança e boa conduta...

Chegaram também… Ronaldo e Cláudia... O primeiro com um défice cognitivo grave... De acordo com os registos... Olho claro e bem-parecido... Embora aparentasse um estado perfeitamente normal... Só desmistificado quando falava... Gostava de música e muito pouco de chatices... Raramente se zangava com quem quer que fosse...

Cláudia vivia num bairro de pescadores... Onde casas de lata deram origem à miséria mais profunda da humanidade... Sem os dentes da frente... Escondia-se da sua própria timidez... Apresentava deficiência mental ligeira... Ainda que... As suas complicações parecessem maiores...

Pedro apresentou-se de novo e falou com os alunos... Cada um apresentou-se e o professor tentou perceber... O que é que cada aluno sabia de si... O nome completo... A idade e o sítio onde viviam... As trocas monetárias e a utilização do dinheiro... As ambições para o futuro... Enfim... Pedro entendeu que estes alunos... Embora mais velhos que os anteriores... Apresentavam dificuldades académicas gravíssimas... Que condicionavam o seu desenvolvimento individual... Assim como... Social…

Delineou um conjunto de estratégias que tinham a ver com o conhecimento de si próprios... Posteriormente... Uma leitura funcional que permitisse uma melhor integração... O resto via-se…

Depois de almoço... Seguiu-se mais uma sessão de psicomotricidade... Desta vez com: Filipe... Carrapito... Ramos... Samuel... Ronaldo... João... Bruno e Fábio…

Este último pertencia à sala de estimulação sensorial... Com síndrome de Down... Parecia apresentar imensas dificuldades... Quer ao nível da comunicação... Cognição e motricidade global... Contudo... E atendendo à idade... Pedro integrou-o neste grupo... Realizaram um trabalho de perícias com bolas... Equilibro e deslocamentos vários... Uma pequena sondagem inicial... Em que o novo professor tirava registos para tabelas... Comparando e avaliando... O nível cognitivo e sócio-afectivo... A linguagem... Assim como as habilidades e capacidades motoras…

Neste grupo destacava-se Filipe... Com um nível motor elevado... Os restantes... Estavam quase todos motivados para a prática desportiva... À excepção de Carrapito e Ronaldo...

O grupo que se seguiu era de educação física... Comportava alunos... Que no entender de Pedro apresentavam outros níveis de desempenho…

Teófilo... Alto e elegante... Com perturbações do espectro do autismo... Muito reservado e pouco motivado para a prática desportiva... Ou melhor… De tudo aquilo que implicasse competição e exposição mediática... Vivia com uma tia... Nada lhe faltava... Talvez o pai... Ausente... E a mãe... Já falecida...

Patrícia apresentava uma deficiência mental moderada... Filha de um idoso que já se encontrava institucionalizado... Aprendia com a mãe... Uma escola bem diferente daquela que frequentava... Era das alunas mais evoluídas e inteligentes... Contudo... A sua baixa auto estima parecia balanceá-la por caminhos mais obscuros...

Luís não falou logo com o professor... Mas depois de Pedro se meter com ele... Passou a admirar o docente como ninguém...

Apesar de não ser o mais alto... Nem o mais forte... Respeitava os mais fracos e protegia-os sempre que necessário...

A mãe era muito nova... Parecia uma miúda e pelo que diziam... O padrasto agredia-o com frequência... Vinha mencionado como tendo problemas cognitivos e comportamentais... Com um desenvolvimento intelectual ligeiramente abaixo da média...

Virgílio também apresentava problemas de comportamento... Assim como uma deficiência mental moderada... Expressava tiques faciais com frequência e babava-se... Tinha um irmão mais novo que estava institucionalizado na capital... De quatro irmãos que eram... Só a menina parecia ser mais normal... Viviam num estado de miséria absoluta…

Faziam também parte deste grupo a Cláudia e o Mário… Que ao entrarem no ginásio cumprimentaram o professor de imediato... Distinguindo-se dos outros... Como se o conhecessem há mais tempo... Afinal... Tinham estado com ele de manhã...

Rosa... Apresentava deficiência mental moderada... A par com Patrícia e Cláudia... Já se interessavam pelos colegas mais velhos... Nem o professor escapava... Já falavam de namoros e trocavam segredos...

Rosa vivia com um irmão e uma cunhada... Parece que a usavam para trabalhar em casa... Cozinhar... Limpar e cuidar dos sobrinhos... Enfim... Há muito que deixara de ser criança...

Carlos foi o primeiro aluno que Pedro conheceu... E este sabia-o... Achando por vezes... Que talvez fosse mais próximo ou tivesse mais direito à atenção do professor... Era obeso e talvez um dos únicos que levava equipamento desportivo para esta aula... Gostava de desporto e de se colocar à parte dos colegas... Em termos de capacidades... Apresentava uma deficiência mental ligeira...

Roberto era um desbocado... Era o maior e mais malcriado do colégio... Falava muito alto e tinha a mania de se auto vitimar... Revelava problemas de comportamento e um desenvolvimento intelectual abaixo da média...

Segundo diziam... O pai e os irmãos ainda eram piores... Adoravam sessões de pancadaria no bairro onde viviam... Parece que não se relacionavam muito bem com as pessoas... Quem sofria sempre era a sua mãe... De olhos amargurados pelo choro... Sacrificada socialmente pelo álcool dos outros…

Roberto provocava constantemente colegas e professor... Mas no final acabava por acobardar-se...

Nessa aula fizeram alguns testes de condição física... Os alunos participaram com bastante empenho e motivação... Uns mais que outros…

Salvador era o último aluno do dia... Sorridente... Apesar dos seus sete anos de idade... Conturbados e austeros... Multideficiente com problemas diversos... Espinha bífida... Problemas de locomoção e de comunicação... Embora tentasse a todo o custo falar... Realizando sons afáveis numa tentativa de articulação de palavras... Andava de cadeira de rodas... Tendo contudo de ser auxiliado na sua deslocação... Mexia bem o trem superior... Ao contrário do de baixo... Completamente atrofiado e inútil…

Este brincalhão adorava bolas e objectos... Ria demasiado... Sobretudo quando fazia alguma malandrice... Estava entregue aos cuidados de uma instituição de internato...

Às quinze e trinta... No final das actividades... Pedro tinha uma hora e meia para realizar tarefas relacionadas com a direcção pedagógica... Função repartida igualmente com a sexta-feira…

Nesse dia... Pedro começou a esboçar o projecto educativo... Subordinado ao tema: Formação pessoal e preparação para a vida activa...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando

XV

Nessa mesma tarde... A partir das treze horas... Pedro transformava-se em psicomotricista... Uma função pouco diferente da que desempenhava ao nível da educação física... Contudo... Atendendo um público dissemelhante do hipotético normal…

O primeiro grupo era constituído por alunos pertencentes à sala de estimulação sensorial…

Sónia apresentava uma deficiência mental com uma grave perturbação cognitiva... A aluna revelava alterações de humor muito díspares e pouco usuais... Reclamando a atenção toda para si... Tanto ria como chorava... Num pranto que fazia doer a alma... Sempre que via o professor abraçava-o efusivamente e beijava-o na face... Aliás... Um costume habitual na maioria dos alunos do colégio... A que Pedro teve de se acostumar…

A sua comunicação era arcaica... Falando por silabas disformes e emitindo ruídos de felicidade ou de tristeza... Acompanhados por um pequeno estalar da língua no céu-da-boca... Batia com as mãos no peito quando verificava que o professor estava junto de um colega... Exigindo-o para si num sentimento de posse plena...

Os dois clones eram irmãos... Quase iguais… Situação que dificultou o trabalho de Pedro no início…

Segundo a documentação existente... Apresentavam um grave atraso global do desenvolvimento psicomotor...

No colégio… Corria um boato que assegurava que ambos eram filhos de um casal de irmãos... Enfim… Mas não haviam certezas…

Sabia-se que era gente pobre e miserável... E que viviam numa barraca com chão de terra batida… Isto… Segundo as palavras de Luz e Bela…

A verdade é que permaneciam quase imóveis se os deixassem num local... Os olhos eram enfáticos... Bradando por clemência e atenção... Os seus membros superiores eram atrofiados e o resto do corpo espástico... Passavam o tempo calados... Exprimindo sons estranhos… Quem sabe… Numa tentativa de comunicação infrutífera... Meias palavras... Breves terços... Ditongos perdidos...

Tatiana era medonha... Muito branca... Quase sem cor... Agredia tudo e todos na falta de medicação... Acusava perturbações do espectro do autismo... Com muito mais coisas associadas... Provavelmente paralisia cerebral…

A sua voz era sussurrada e muito grave... Um arrastar penoso que a aproximava sempre que esta não era ouvida... Corpo mole e desequilibrado... Parecia perder-se no andar... Cambaleando... Quase caindo... Como se as pernas caminhassem sós... Sem a ajuda do tronco...

Em suma… Um quadro clínico indefinido… Sintomas e sinais sem fim…

Andreia... Apresentava um sorriso aparente... Quase sempre armado... Noutras vezes esvaia-se em lágrimas... Num espectáculo indigno de se visualizar…

Uma deficiência mental profunda com diplégia atáxica... Ou seja... Os quatro membros afectados... Com os inferiores mais comprometidos do que os superiores... Distúrbios no equilíbrio e na coordenação... Enfim... Paralisia Cerebral ao seu mais alto nível... Ou... Conjunto de perturbações do desenvolvimento do movimento e da postura... Associadas a limitações da actividade...

Para além disto... E como se não bastasse... Também tinha epilepsia... Alteração temporária e reversível do funcionamento do cérebro... Expressada por crises epilépticas repetidas... Motricidade muito pobre... Num rol de problemas que endureciam o seu corpo e provavelmente o espírito..

Andava coxeando... Arrastando as pernas... Fortificando o corpo e prendendo-o sempre que assim o entendia…

Gritava efusivamente a sua loucura... De uma forma medonha e assustadora…

Babava-se e cheirava sempre demasiado a saliva... Um odor activo e muito forte que chegava a enjoar... Tinha uma estranha propensão por puxar cabelos... A colegas e a funcionários... Enfim... Tremores de acção... Numa ausência total de noção temporal e espacial...

O Hélio era um dos alunos mais novos da escola... Pele castanha e rosto cadavérico... Sempre desenhando uma expressão carrancuda e pesada para o seu corpo pequeno e franzino…

Deficiência mental com epilepsia... Um constante bater das palmas... Numa ode à satisfação... Ou de abstracção ao medo exterior... Não dizia nenhuma palavra... Apenas gemidos abatidos... Numa apatia permanente de solidão continuada...

Zé... Também de raça negra... Obeso e maior do que os outros... Gostava de ficar à parte e fazia muito pouco em grupo... Ou quase nada... Raramente olhava as pessoas de frente e gostava de beijá-las docemente na testa…

Troteava canções imperceptíveis aos ouvidos dos outros... A música parecia tranquilizá-lo…

Encenava representações como se estivesse em cima de um palco... Preparado para dar um espectáculo... Num festival de emoções... Bem à vista e à flor da pele…

Era estrela única de uma exibição que só ele vivia na realidade... Hiperactivo... Autista com epilepsia... Só no seu mundo... Porém... Com tantos em volta...

No ginásio... Pedro observou-os correndo... Gatinhando... Em volta do pilar... Bem no meio da sala...

Zé… Completamente alheio nos colchões... Representava para si... Hélio batia palmas... Os clones moviam o tronco Cadenciados pelo barulho que ecoava no ar... Sónia rebolava no chão e Tatiana amparava Andreia... Ajudando-a a equilibrar-se ou equilibrando-se a si própria…

Pedro contemplou a cena com poesia... Visão desarmoniosa e triste... Onde aquele grupo... Parecia saber viver a sua vida... Desfrutando-a à sua maneira... Sem complexos ou privações... Num mundo tão mais problemático e selectivo do que aquele em que a maioria pensa que vive…

Nessa aula Pedro não fez quase nada... Observou-os e tentou comunicar com eles... Teria de aproveitar aquela loucura para introduzir algo novo...

O grupo seguinte... Era composto pela Cristina e por Bebé... Quase sempre juntas…

Tinha a Sarita... Uma obesa... Com cento e tal quilos... Com síndrome de prader willi... Uma problemática com uma incidência de um em vinte cinco mil nascimentos... Uma carinha infantil... Cabelo liso com bandolete... Vestido ameninado e postura cândida... Para lá do andar pesado e difícil... Apresentava dificuldades de aprendizagem e de comunicação... Problemas hormonais... Dificuldades ao nível do desenvolvimento pessoal e social e uma constante sensação de fome e interesse por comida... Carregando sempre consigo gomas e rebuçados para si e para os amigos... E tinha muitos... Para além dos enigmas característicos da síndrome…

A Sarita desempenhava neste grupo de alunas um papel de liderança... Um apoio sempre reconhecido pelo professor...

A Maura... Era muito tímida e parecia atrapalhar-se sempre que Pedro a ela se dirigia... Uma das alunas mais velhas do colégio... Apresentava deficiência mental moderada... Usava óculos e amuava com facilidade... Prendendo o burro como se fosse uma criança pequena...

 

 

 

Raquel tinha uma voz rasgada... Como uma cana rachada... Segundo as palavras de Sarita…

Estava-lhe diagnosticada uma deficiência mental moderada... Tinha problemas de visão e de audição... Irritava-se com facilidade e tornava-se agressiva... Mesmo com o seu corpo magro e franzino... Os seus olhos rodavam numa paranóia alimentada pelos nervos... Por vezes adormecidos e inertes... Falava tão depressa que se atrapalhava a si mesma no discurso... E espumava... Demasiado...

Ana era irmã de Mário... Apresentava um mutismo selectivo e deficiência mental moderada... De acordo com o diagnóstico... Nunca tinha falado na escola... Os pais e o irmão diziam que esta falava em casa... Sempre a sorrir... Sem contudo mostrar os dentes... Apenas agitava a cabeça timidamente para dizer sim ou não... Por vezes... As colegas desmistificavam os seus queres e não queres... Bem melhor que Pedro...

Angela e Ilda eram irmãs... Contudo... Não se relacionavam muito bem... Ilda... A mais velha... Vivia com os avós maternos e Angela com os pais... Apresentavam ambas uma deficiência mental moderada…

Pedro fez questão de as juntar neste grupo... Precisamente para desvalorizar este problema relacional… Embora tivesse ouvido os avisos dos restantes técnicos...

Angela era muito metediça e conflituosa... Já se interessava pelos colegas do sexo masculino... Enquanto que Ilda... Ainda desfrutava das brincadeiras e objectos mais infantis...

Nesta sessão... O professor realizou actividades de perícia e de manipulação de objectos... Como bolas e arcos... Assim como... Alguns deslocamentos e equilíbrios... Observou bastante e tirou muitos apontamentos...

A tarde terminou com Miguel... Um aluno da sala sensorial... Multideficiente... Com epilepsia... Deficiência cognitiva... Motora e perceptiva... Ou melhor... Distúrbio na percepção dos estímulos sensoriais... E perturbação do espectro autista…

Apesar dos seus sete anos de idade... Usava fralda e tinha corpo de bebé…

Pedro transportava-o e manipulava os seus membros... Miguel siderava-se na mão... Fixando o olhar na mesma... Como que hipnotizado... Ria e por vezes emitia sons... Conseguia colocar-se de pé... Mas não mantinha o equilíbrio... Caindo pura e simplesmente para trás…

No final desse dia… O novo professor sentiu-se pequeno e bastante impotente...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando

XIV

Ao almoço... No refeitório do colégio... Os alunos amontoavam-se nas mesas... Aguardando o serviço...

Bela e Preta procuravam dar conta do recado dentro da cozinha... Fora do balcão... Saudade e Luz ajudavam no serviço de mesa...

Alguns dos alunos apresentavam grandes dificuldades em realizar esta actividade básica...

A sala era grande... Contudo... As mesas não era. muitas... Aglomerados... Os jovens comiam... Procurando superar as suas dificuldades... Assim como... Saciar a fome...

A verdade era esta... Em pleno século vinte e um... Muito deles saiam de casa sem pequeno almoço e por vezes não chegavam a jantar… Era na escola que tomavam a primeira refeição... No intervalo das dez e meia... Logicamente... Ao almoço... Desforravam-se... Rapando o prato e repetindo se fosse esse o caso...

Quando Pedro passou em direcção ao balcão... O contentamento dos alunos fez-se notar... Quase todos lhe acenaram... Como se este fosse a estrela maior...

Este... Respondeu com um grande aceno de atenção e de carinho...

As colegas aguardavam-no numa sala à parte... Ou seja... Tinha de se passar por uma porta... De acesso à cozinha...

- Os moços estão encantados contigo! – Exclamou Carla... A terapeuta da fala...

Pedro desenhou um sorriso simples... De embaraço...

- Está a correr bem? – Perguntou Martinha... Falando de um modo muito célere... – Estás a gostar? – Insistiu...

O novo professor respondeu afirmativamente à questão…

Subitamente... Elisa entrou na sala transtornada:

- Ai pá! – Desabafou... – Estou farta disto!

- Que se passa? – Perguntou Irene... Demonstrando alguma preocupação...

- Alguma vez a viste bem? – Questionou Dora... Provocando nos mesmos... Resquícios de animosidade...

- Aquela sala não dá! – Desabafou... – Não há espaço nem condições! E a Telma... Bem!...

 

 

 

A sua ira parecia reflectir um estado de desespero... Nos seus olhos... O descontrole das emoções... Face aos risos alheios... A quem as coisas dos outros... Custam sempre menos do que as nossas...

 

 

 

- E se usassem a sala que está fechada? – Propôs Martinha... Arregalando os olhos...

- Tás doida! – Exclamou a educadora... – Isso dava muito trabalho!

- Nós ajudávamos! – Sugeriu Irene...

- Vocês não sabem! – Afirmou... – Não dá!

Elisa anunciava uma boa dose de arrogância... Clamando por auxílio... Desabafando e apregoando aos sete ventos... Sem contudo... Se preocupar em ouvir ou em simplesmente arranjar soluções para o problema...

Pedro começou a pensar... Talvez fosse melhor propor a Dona Filó uma pequena alteração... Dividir aquela sala em duas... Repartindo os alunos por grau e nível de aprendizagem... Dificuldades... Necessidades e limitações...

- Como estão as meninas? – Questionou Bela... Esgazeando os olhos na direcção das colegas... – E o professor?... Como está? – Disse… Voltando-se para este... Com educação...

Pedro sorriu e cumprimentou-a também...

- Olá bom dia! – Cumprimentou Leontina... A motorista algarvia... Que chegava para almoçar... Sempre aperaltada e elegante... Calça de ganga muito justa... Blusa decotada... Brincos e pulseiras... Batom e rímel acima do quanto baste...

Ao passar junto de Bela... Que se encontrava na porta... Levou um apalpão e um piropo:

- Tás mesmo boa!

Atrapalhada... Leontina barafustou... E algumas das colegas ficaram escandalizadas...

Luz... Que já havia aparecido... Juntara-se à festa... Dizendo que por vezes também era vítima das investidas de Bela...

- Cala-te cabra! – Insultou esta... Apalpando o enorme rabo de Luz...

De fora... Saudade espreitou sem sorrir... E alguns dos alunos pareciam tentar perceber o que lá se passava...

- Ai desculpe! – Disse Bela... Parecendo só agora verificar que Pedro estava por lá... – Saiu-me!

As colegas riram... Mesmo não tendo vontade... Todos sabiam que o propósito da cena era indignar o novo professor... E ele também o sabia... Por isso sorriu...

No final do almoço... Pedro foi tomar café com a educadora social e com a terapeuta da fala... Isto é... Martinha e Carla...

No café... Conversaram acerca do colégio... Pedro contou um pouco da sua experiência do dia e as restantes falaram dos alunos com um conhecimento ainda maior... O novo professor percebeu que Carla trabalhava numa sala minúscula... Com grupos de dois alunos e nos casos mais graves apenas com um... Os problemas de comunicação e de linguagem eram enormes e abundantes...

Martinha explicou a Pedro um pouco da sua função ali na escola... O contacto com as famílias... O trabalho de formação pessoal e social... A higiene e a segurança... As actividades da vida diária... Entre outros…

Desabafou ainda... Que o maior problema com que se deparava... Era a integração dos alunos na sociedade... Como seres autónomos e activos…

Pedro ficou siderado com o seu testemunho e predispôs-se a ajudar... Informou-as ainda… Que seria ele a fazer o projecto educativo e o plano de actividades… Talvez fosse bom... Abordar essa temática e delinear estratégias de intervenção...

Pedro fumava um cigarro e contemplava a paisagem... Lá fora... O fim do Verão estava bem à vista... O tempo já não era tão quente... Os pássaros pousavam de sitio em sitio... Cantando e alimentando-se... Porém... As folhas já apareciam por ali... Trazidas pelo vento...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando

XIII

Após uma semana de trabalho... Um pouco atabalhoada e ao improviso... Devido à avaliação das capacidades dos alunos e consequente preparação do ano lectivo... Seria segunda feira... O primeiro dia em que tudo funcionaria como previsto... Os horários e grupos formados pelo professor... Seriam experimentados por fim...

Ao chegar de manhã... Encontrou-se com Luz no café... Depois acompanhou-a até ao escritório onde ainda conversaram um pouco... Pedro aproveitou para fazer umas fotocópias... Tinha preparado umas fichas simples...

- Queres levar já o material? - Perguntou Luz... – Já cá está quase todo!

Pedro tinha efectuado uma lista de material escolar... Requisitou cadernos e dossiês... Canetas... Lápis e borrachas... Entre outras coisas... Levou para a sala o que pôde...

Os alunos chegaram... Cumprimentaram-no... Alguns deles... Mais afectuosos fizeram questão de o beijar... Como a Bebé e Filipe...

Este último... Que no primeiro dia esteve tão distante e alheio... Era afinal amoroso...

Pedro tinha colocado previamente as mesas em forma de “U”...

Na lateral sentavam-se o Ramos e Samuel... Ao centro Carrapito e Filipe... No lado oposto a Cristina e a Bebé…

Distribuiu por eles uma ficha muito simples... Envolvia o trabalho do traço e um pouco de pintura... Na sua maioria... Revelavam dificuldades em segurar o lápis com segurança...

Enquanto isso... Pedro distribuiu algum material pelos alunos e arrumou o restante... Tratou de identificar os cadernos de capa preta e os dossiês... Com o nome dos alunos...

Que agora estavam compenetrados na ficha...

De fundo escutavam-se os ruídos emitidos por Cristina... “Rum... Rum”... Bebé… Por seu lado… Ainda permanecia de pé... Estruturando paulatinamente o seu material em cima da mesa... Dispondo com organização... Marcadores e lápis de cor... Canetas... Borracha e afia... Uma régua e até uma flauta…

Ao longe... Carrapito enterrava a mão dentro da sua boca... Enquanto que… Com a outra... Parecia realizar a tarefa concentrado... Exteriorizando calma e tranquilidade...

Filipe olhava distante para o infinito... De boca escancarada e óculos embaciados... Na mão esquerda segurava o tal lápis amarelo gigantesco... Um amuleto da sorte talvez...

Samuel realizava a ficha... Movimentando por vezes a cabeça para olhar o professor... Rosto rectilíneo... Semblante sério e compenetrado...

Ao seu lado... Ramos... De pé... Com as calças puxadas para cima... Ao máximo... Afiava o lápis... Consecutivamente... Esboçando um sorriso aprazível sempre que o seu olhar se cruzava com o de Pedro...

Enquanto os observava... O novo professor preparava os seus cadernos individuais... Colocando o nome completo destes em maiúsculas... Com pequenos pontos ou tracejado... Alguns grafismos e algumas letras...

Na mesa de Pedro... Os livros requisitados na biblioteca... Ao fundo... Alguns livros do primeiro ciclo que Luz havia disponibilizado…

Nesse dia... A observação e o acaso da aula ocorreram... Deixando que tudo acontecesse por si... O professor alongava o seu olhar e abria a atenção... Permitindo que as coisas sucedessem por si...

Bebé sentara-se por fim... Por vezes o seu corpo tremelicava... Rodando as mãos repentinamente e sacudindo a cabeça...

Cristina permanecia imóvel... Rodopiando os olhos... Perdendo a concentração com qualquer situação que verificasse... Às vezes... Parecia tentar focar o seu próprio nariz ou os óculos… Era um movimento impressionante...

Mais afastado... Filipe também dispersava... Lento na execução dos exercícios... Imensamente molengão... Manuseava o enorme lápis amarelo... Perdendo-se nesta divagação... Puramente contemplativa…

Estes três... Tinham em comum a síndrome de down... Ou trissomia vinte e um... Uma anomalia no cromossoma vinte e um…

Na sua pesquisa... Pedro descobriu que existem esculturas no México... Provavelmente dos Olmec... Que espelham as primeiras evidências da doença... Ou problemática...

Assim como... Pinturas dos séculos catorze... Quinze e dezasseis… Onde aparecem pessoas com essas características…

Durante muito tempo... Estas pessoas foram estigmatizadas e enclausuradas... Utilizadas como atracções de circo e outras barbaridades...

Só no século dezanove... Mais precisamente em mil oitocentos e sessenta e seis... John Langdon Down fez a primeira descrição clínica da doença...

Embora fosse investigador... Este acreditava na inferioridade natural de algumas raças e etnias...

 

Durante muito tempo... E ainda hoje... Imperaram termos como: mongolóides e mongolismo... Enfim… Com o tempo... Durante os anos sessenta e setenta... Foram excluídos das principais revistas e publicações... Hoje são considerados arcaicos...

Ramos levantara-se de novo para afiar... Sorrindo para Pedro... Gesticulando com o sobrolho um cumprimento...

- Queres outro lápis? – Perguntou o professor...

- Hã? – Questionou...

O professor repetiu mais alto…

Ramos não ouvia nada bem... A sua voz era muito grave e nasalada... Um tom fanhoso que por vezes não se entendia... Apresentava contudo uma aparência afável… Simpatia e um interesse fora do comum pelas pessoas...

Pedro lembrou-lhe que havia mais trabalho para fazer... Para além da ficha...

- Ele nunca se senta! – Avisou Samuel... Arrastando a voz... Coçando a cabeça e entremostrando alguns tiques... – Anda sempre de pé!

Samuel tinha espinha bífida... Alguns problemas nervosos e deficiência mental moderada... Isto é... Uma idade mental entre os três e os sete anos... Aproximadamente... Um quociente de inteligência  entre trinta e seis e cinquenta e um... Segundo a literatura específica...

- Há mais trabalho para fazer! Rum... Rum... – Repetiu Cristina para si própria... Ecoando aquele ruído constante... Auto avisando-se...

Bebé... Já de lápis na mão... Agitou as mãos... Sacudindo-as num tremor calmante... Ou talvez necessário... E começou a trabalhar...

- Despacha-te Filipe! – Lembrou Carrapito... Quase sem mexer os lábios... Num instinto protector do colega... Filipe bocejou... Murmurando algo imperceptível...

Este apresentava uma grave dificuldade ao nível da comunicação... A sua linguagem ainda estava numa fase muito inicial e básica... Característica própria da trissomia vinte e um... Tal como a flacidez dos músculos... A excessiva flexibilidade das articulações... O rosto similar... A face achatada... Pálpebras inclinadas para cima e orelhas pequenas... A língua grande e a boca reduzida... Muita pele no pescoço e pernas curvadas... Dedos curtos... Assim como... A existência de uma prega transversal na palma da mão... Para além disto... Podem ainda apresentar doenças do coração e problemas digestivos... E outras anomalias...

- Então Filipe! Trabalha! – Recordou Carrapito... Ajeitando a ficha a este e colocando-lhe o lápis na mão... – Vá lá! – Disse... Ordenando...

Carrapito tinha uma voz muito aguda e demasiado infantil... Falava com uma fluência e rapidez satisfatórias... Porém... A sua boca permanecia quase imóvel e o seu olhar era fugidio... Isto é... Sempre que se sentia encarado... Desviava o olhar... Contudo... Revelava uma calmaria fora do comum na realização das actividades... Um olhar brando e ameno... Por detrás do seu corpo obeso e imponente…

Portador da síndrome do X frágil... Uma deficiência mental de origem genética... Anomalia causada por um gene defeituoso localizado no cromossoma X... Caracterizado por perturbações na linguagem... Dificuldades de concentração... Hiperactividade e limitações ao nível da aprendizagem…

Particularmente e segundo os registos... Carrapito apresentava alguma agressividade quando haviam falhas ao nível da medicação ou quando era contrariado... Pedro verificou também... Que o aluno ainda usava fraldas durante a noite... Apesar dos seus doze anos de idade...

Enfim... Pedro olhava-os inebriado... Para ele... Estava a braços com uma experiência enriquecedora...

- Já acabei! – Informou Samuel levantando-se...

Pedro chamou-o e corrigiu junto dele a ficha... Rasgando-lhe alguns elogios... O aluno ficou satisfeito por ter atingido os objectivos...

Do latim spina bífida... Espinha cindida ou dividida... Deformação congénita provocada pelo encerramento incompleto do tubo neural embrionário...

Samuel apresentava dificuldades de coordenação... Aprendizagem e controlo muscular... Problemas de mobilidade…

Noutros casos poderia provocar paralisia nas pernas... Alterações da sensibilidade por baixo da lesão... Problemas na locomoção... Incontinência urinária e fecal...

Contudo... Samuel parecia revelar muito interesse e empenho pelas actividades propostas... Ficou radiante com o reforço de Pedro e entremostrou um sorriso... Voltou para o lugar com o sentimento de dever cumprido e carregando a próxima tarefa no caderno que Pedro preparara previamente...

Quando Samuel se sentou... Ramos dirigiu-se a Pedro... Carregando consigo a ficha de trabalho... Sem dizer nada... Cruzou os braços e olhou para o professor... Movendo o queixo para cima e para baixo…

Este aluno apresentava uma deficiência mental moderada... Segundo os registos... Contudo... Parecia ser algo mais severo... Apresentava grandes dificuldades de concentração... De atenção... Ouvia muito mal e tinha problemas ao nível da linguagem... Todavia... Era muito sociável e adorava conversar... Usava óculos e dizia-se por lá... Que tinha uma grande propensão em parti-los... Não os seus... Mas... Os dos outros...

- Que se passa? – Interrogou o professor... – Já fizeste?

Ramos não ouviu... Aliás... Ele tinha mesmo dificuldade de audição...

Pacientemente... Pedro repetiu... Elevando a voz...

- Preciso da tua ajuda! – Exclamou... Não sei fazer isto!

O professor sorriu e acompanhou-o até ao seu lugar... Lá... Explicou-lhe a tarefa por duas vezes... Certificando-se de que este tinha percebido...

- Ele nunca faz nada! – Afirmou Samuel... Coçando a cabeça aflitivamente...

- Cala-te! – Ordenou Ramos... Gritando de forma fanhosa...

- Parvalhão! – Desabafou Samuel...

Imediatamente... Pedro colocou ordem nos dois... Apaziguando a situação e recordando que o propósito principal não era o insulto... Mas sim o trabalho... Ramos enterrou a cabeça na ficha... Samuel... Enervado com a repreensão... Baixou de rendimento e coçou a cabeça de uma forma continuada...

- Estás a fazer um bom trabalho! – Atestou Pedro... Passando por detrás da cadeira de Samuel e abaixando-se junto deste... – Tens uma bela letra!

O aluno pareceu gostar do que ouvira e acalmou-se... Continuando...

O professor avançou para junto de Filipe e Carrapito...

Embora estivessem numa fase muito arcaica e inicial... Pedro deu-lhes uma palavra de encorajamento... Pedindo-lhes apenas algum cuidado com a força com que faziam no lápis…

Cristina estava de cabeça no ar... Pescoço inclinado para trás... Observando o andar do professor...

- Ai! Cristina! Ai! Rum... Rum... – Balbuciou sorrindo atrapalhada... Ao reparar que este a olhava...E

- Já terminaste? – Questionou... – Queres ajuda?

- Ajuda? – Perguntou surpresa... Efectuando um longo compasso de espera... – Rum... Rum... – Ajuda? Não preciso! – Disse gaguejando... – Rum... Rum... Despacha-te Cristina! – Ordenou a si própria... – Não vês o professor?

Ao seu lado... Bebé ria à gargalhada com a saída da colega... Um ataque de riso que a fazia perder completamente a compostura... Movimentando o corpo para trás e para a frente... Contagiando os restantes elementos da sala...

- Ainda estás muito atrasada! – Exclamou Pedro... Apoiando-se no seu ombro...

Esta confirmou-o... Todavia... Quando o percebeu bem próximo... Beijou-o na face... De uma forma mélica e profunda… Olhando-o com cumplicidade… E culminando o momento com uma valente gargalhada... Que acabou por instalar-se de novo na sala...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando

XII

Ao longo dessa semana... Pedro efectuou um trabalho de acompanhamento e de observação dos alunos... Com pequenas tarefas... Grupos improvisados... Aplicou actividades... Fichas e exercícios... No sentido de os avaliar…

Durante esse mesmo tempo... Apareceram-lhe mais alunos que não compareceram no primeiro dia de aulas... Como... Bebé... Uma aluna com síndrome de down... Muito amorosa e sociável... Ramos e Samuel... Entre outros...

O novo professor contactou ainda com os alunos de Elisa: Sónia... Andreia... André e Márcio... Que eram irmãos e quase idênticos... Havia quem lhes chamasse clones...

Conheceu ainda a Tatiana... O Hélio e o Zé... Mais limitados que os anteriores... E ainda... Miguel... Salvador... Bento... Ruben e Rafael... Alunos multideficientes... Que por e simplesmente quase não comunicavam... Apenas um olhar… Um sorriso ou um choro…

De certa forma… Este tipo de  miúdos chocaram-no… No fundo… Eram algo fora da sua realidade e provavelmente… Completamente à parte da de todos…

A directora avisara-o que iriam chegar mais alunos...

Durante essa semana... Inventariou os recursos humanos... Assim como... Os materiais e espaciais...

Efectuou uma lista de alunos... Actualizada... Nome completo e respectivos encarregados de educação... Idade e data de nascimento... Morada e contacto telefónico... Problemática ou síndrome... Estruturou o seu próprio horário de intervenção... Organizando pequenos grupos consoante as dificuldades e capacidades dos alunos...

Pedro entrava diariamente às nove e meia e terminava por volta das quinze e trinta minutos... Um total de cinco horas lectivas... Com uma de almoço...

Criou três grupos para aquilo que no colégio chamavam de escolaridade... Isto é... Em contexto de sala de aula... Estes alunos trabalhariam conteúdos académicos adequados ao seu nível... Assim como competências funcionais…

No primeiro grupo... Colocou os alunos com maiores dificuldades cognitivas... No sentido de beneficiarem de uma estimulação inicial... No que concerne à introdução da leitura e da escrita... Cálculo e números... Eram eles... Filipe e Carrapito... Bebé e Cristina... Ramos e Samuel... E Fábio… Que havia faltado à apresentação…

Estaria com eles às segundas... Quartas e sextas...

O grupo número dois... Era composto de alunos mais velhos que os primeiros... Foi complicado conseguir que estes beneficiassem desta única sessão semanal... À terça-feira... Visto que... Para muitos dos técnicos... Estes alunos pouco mais iriam desenvolver... Mas Pedro conseguiu-o... Afinal... Tinha o apoio de Dona Filó... Seria simplesmente um trabalho de manutenção das aquisições adquiridas...

Desse grupo... Constavam... Bruninho... Ronaldo e Sarita... Maura e Mário… João e Raquel... Cláudia e Ângela... Estas últimas também faltaram ao dia da apresentação…

O terceiro grupo de alunos... À quinta-feira... Reunia aqueles que... Segundo as observações do novo professor e a opinião dos restantes técnicos... Tinham melhores condições para efectuar maiores conquistas académicas… Não seriam maiores pelo tamanho... Seriam apenas diferentes das dos outros... Todas elas pertinentes e importantes para o desenvolvimento pessoal e social dos mesmos... Eram... O Teófilo... A Patrícia... A Ana e o Luís... A Ilda... Que era irmã da Angela... Do grupo número dois... Parece que não se davam muito bem... O Virgílio… A Rosa... Que também tinha faltado no primeiro dia… O Roberto e o Carlos...

Depois do almoço... Que seria no refeitório do colégio... Aliás... Uma forma inteligente de não lhe pagarem o subsídio de alimentação... Pedro realizaria sessões de psicomotricidade e de educação física... Aqui os grupos seriam mais reduzidos... Com duas aulas semanais cada...

Segunda... Durante a tarde atenderia duas classes de alunos... Aí faria psicomotricidade... E teria de abranger os restantes alunos da escola... No primeiro tinha a Sónia... Que cada vez que o via lhe dava um beijo... Os dois clones... A Tatiana e a Andreia... O Hélio e o Zé... Os únicos alunos de raça negra... Seria à segunda e à quarta...

O segundo grupo... Era composto por Cristina... Pela Bebé e Sarita... Maura e Raquel... Angela... Ana e Ilda... Segunda e quarta... Ao segundo tempo da tarde…

O terceiro grupo de psicomotricidade era constituído por Filipe e Carrapito... Fábio e Ramos... Samuel... Ronaldo... João e Bruninho... Às terças e quintas... Sempre a seguir ao almoço…

Depois... Havia um grupo de educação física... Eram alunos mais desenvoltos fisicamente... Com outras capacidades e motivações... O Teófilo e a Patrícia... Luís e o Mário... O Virgílio e a Rosa... Cláudia... Carlos e Roberto... Às terças e quintas…

Por fim... Pedro atendia ainda os alunos multideficientes... Nenhum deles falava... Todos tinham problemas graves ao nível da motricidade global e cognição... Para além disso… O domínio sensorial estava severamente afectado… O Miguel... O Salvador... Bento e Ruben... E Rafael... Por vezes um choro ou um sorriso era a única forma de comunicação...

Esta nova estrutura... Demorou cerca de uma semana até estar preparada... Tiveram de conciliar-se os respectivos espaços e os recursos humanos... Nomeadamente... A terapeuta da fala e a educadora social... A psicóloga... A educadora de infância... Que tomava conta da sala sensorial... Uma sala que atendia imensos alunos para as dimensões e condições que tinha... Auxiliada por Telma e Saudade... As oficinas... Onde os alunos desenvolviam actividades de pintura e de cerâmica... Dinamizadas por Dora e Irene...

Enfim... Pedro apercebeu-se bem da dificuldade de ser uma pessoa nova na casa... Nem todos o olhavam com bons olhos... Duvidando das suas capacidades e intenções... Mas... A verdade é que ele tinha esse poder... Enquanto director pedagógico...

Pedro procurou ignorar sempre os olhares e as conversas... Tentando levar sempre tudo a bom porto...

Introduziu horário de alunos com cores... Associando cada área de intervenção a uma cor... Embora a palavra escrita estivesse lá... Muita gente torceu o nariz... Mas a directora gostou e os miúdos pareceram perceber melhor...

Pedro necessitava de provar a si próprio que era capaz... Seria essa a única forma de merecer a confiança atribuída...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando

XI

O tão esperado dia chegara por fim…

Pedro acordou duas horas antes das nove... Estava sem sono e demasiado nervoso para ficar na cama...

Tinha a aula mais ou menos planificada... Enfim... Era o primeiro dia... Teria conversas... Alertas... Perguntas e uns joguinhos... Seria um dia para melhor se conhecerem... Professor e alunos...

O sol da manhã aparecia cada vez com mais força... No terraço... Aproveitava os últimos resquícios de bom tempo do Verão para desfrutar... Tomando o pequeno-almoço ao ar livre...

O telemóvel tocou... Era do sindicato...

A informação era clara... O recibo verde estava fora de questão... Não só colocava em causa a contagem de serviço tempo para efeitos de concurso... Como comprometia a antiguidade para a reforma... Todavia... A voz feminina que lhe transmitiu esta informação... Também não estava bem certa... Contudo... Lembrou-o da luta pelos direitos fundamentais... A atitude prepotente do ministério da educação... O desrespeito e a demagogia do governo... Recordando: “Está na nossa mão a defesa dos nossos direitos! Não devemos sujeitar-nos ao trabalho mal remunerado e sem condições! Está na nossa mão!”...

Pedro escutou-a... Quase sem palavras... Agradeceu o esclarecimento e desligou o telemóvel... Completamente desfeito e sem saber o que fazer…

Na verdade... Nunca tinha começado a trabalhar tão cedo... Conseguiu colocação num estabelecimento de ensino privado... Longe da sua residência… E de todos... Já estava instalado e motivado para o início do novo ano lectivo... Conhecia a escola por dentro e já havia realizado algumas adaptações... Teria de falar com Dona Filó e expor-lhe a situação...

Às oito horas da manhã... Pôs-se ao caminho e dirigiu-se ao colégio... Completamente desmotivado e desconcertado... Pelo caminho... Passou pelo café do costume... Estavam lá Luz... Preta e Bela...

- Bom dia! Já? – Cumprimentou Luz esbugalhando os olhos claros... Em sinal de admiração... – Ainda é cedo!

Pedro sorriu e sentou-se... Respondendo:

- Gosto de acordar cedo!

As três mulheres olhavam-no com atenção... Enquanto bebia o café... Nessa manhã... Derivado ao sucedido... Pedro estava pouco conversador e pouco disposto para a ouvir...

- Como é a casa? – Perguntou Bela... Fitando-o… De olhos marcados pelo tique da sobrancelha...

- Bom... – Interrompeu Luz... Afastando ligeiramente a cadeira... – Já queres saber demais...

Bela não respondeu... E continuou a olhar Pedro nos olhos... Efectuando uma expressão facial de desdém das palavras de Luz...

Pedro respondeu que estava satisfeito com o apartamento... Sem adiantar muitas palavras...

Bela sorriu... E ainda assim... Continuou a mirá-lo nos olhos... Com o queixo apoiado pela mão…

Luz provocou... Segredando a Pedro:

- Ela é muito metediça!

- E se fosses pró caralho! – Desabafou Bela... Carregando ainda mais o tique das sobrancelhas... – Ai desculpe! – Disse... Olhando para Pedro atrapalhada...

- Desculpe?... Desculpe?... – Repetia Preta... Abanando a cabeça... Como se não houvesse nada a fazer...

- Saiu-me! – Lamentou Bela...

- Saiu-me... Saiu-me... - Duplicou Preta... Continuando o movimento e soprando...

- Sai sempre! – Exclamou Luz... Rindo à gargalhada...

- Vai apanhar na cona! – Gritou Bela...

Pedro estremeceu... As pessoas que estavam nas restantes mesas... Olharam-na... Bela não pareceu preocupar-se... Desculpando-se de novo com Pedro... E modificando repentinamente o seu aspecto másculo... Para uma figura mais dócil e afeminada... 

Pedro levantou-se e despediu-se... Dizendo que ia para a escola... Luz predispôs-se a ir com ele... Ao sair ainda escutou Preta... Ao longe:

- Já enxotaste o homem!

- Vai pró caralho! – Respondeu Bela...

Ao aperceber-se... Luz declarou:

- Esta é sempre assim! Mas não é má pessoa!

Pedro sorriu... Parecendo não se importar...

- Preciso de falar com Dona Filó! Será que já chegou? – Questionou...

- Só costuma chegar lá para as dez... Dez e meia. – Correspondeu... – Mas como hoje é o primeiro dia... Deve vir mais cedo!

Como ainda era cedo... O professor acompanhou Luz até ao escritório da direcção…

Depois de subirem as escadas apertadas... O telefone tocou... Entraram...

Luz atendeu com uma voz meiga... Contudo... Ao perceber que era Leontina... A condutora da carrinha... Passou a tratá-la de uma forma mais agressiva... Sempre olhando para Pedro com um ar de cumplicidade... Enquanto a esclarecia acerca de uma morada de uma das alunas... No final do telefonema... Pedro perguntou:

- Vão buscar todos os alunos às suas casas?

- A maioria sim! – Afirmou... – Ou simplesmente... Combinamos um local de encontro... Onde se apanham dois ou três!

Luz continuou a conversar acerca dos transportes dos alunos... Pedro não estava muito disponível para a conversa…

Enquanto fumava o cigarro... Agitava a cabeça e modificava sorrisos... Como se estivesse consonante com a sua conversa... No interior da sua cabeça... Um rol de dúvidas intrigava-o... Por completo...

Elisa e Júlia entraram no escritório... A educadora deslocava-se lá dentro com dificuldade... Encerrando os olhos e agitando os braços... De forma a afastar o fumo do tabaco que os dois produziam... Júlia também acendeu um cigarro...

Depois de ficar um pouco... Elisa apanhou um dossiê e dirigiu-se à porta... Dizendo:

- Vou andando para a sala... Não consigo ficar aqui!

- Espera por mim! – Pediu Júlia... Com a pronúncia nortenha do costume...

- Nem penses! – Exclamou... – Não aguento isto!

- Vou contigo! – Disse Pedro... Dirigindo-se para a porta...

Desceram as escadas íngremes e com pouco espaço... Até chegar à sala comum...

- Queres ver a minha sala?... É esta! – Informou enquanto abria uma pequena sala... – Não tem condições nenhumas... E é super pequena! Não sei como vou trabalhar aqui com cinco alunos com problemas graves e mais uma auxiliar!

Pedro apercebeu-se de alguma mágoa de Elisa face à forma como falava daquela escola... E sentiu-se à vontade...

- Vais ter uma auxiliar?

Elisa abanou a cabeça... E encerrou os olhos... Em sinal de depreciação e de destempero...

- Logo a Telma! – Adiantou... – Bem isto neste colégio... Está cada vez pior!

Elisa deixou transparecer algum incómodo...

Alguma amargura patenteava o seu rosto... As posições e expressões... Transmitiam algum descontrole e angústia... Um ser algo instável... Que aos olhos de Pedro... E sem saber porquê... Não parecia muito fiável... Afinal... Não o conhecia tão bem assim... Para fazer tantas confidências... Qual seria o seu propósito?...

No fundo... Pedro estava descontraído... Desde o telefonema do sindicato... Foi-se preparando para uma eventual saída... Sabia que não iria ter contrato de trabalho... E a recibo verde não ficaria…

Ao longo daquela manhã... Foi premeditando um antecipado regresso a casa... Teria de voltar a aguardar por uma eventual colocação... Para isso... Era necessário que a lista de candidatos esgotasse quase na sua plenitude...

- Tens contrato de trabalho? – Perguntou Pedro...

Elisa... Esboçou um rosto de admiração e transfigurou-se...

De alma doce metamorfoseou o seu estado aparentemente saudável... Para uma ira desmesurada...

- Alguma vez? Gritou... – Aqui quase ninguém tem! – Disse... Baixando a voz... Em segredo...

Pedro respirou fundo e sorriu... Ocultando a vontade de lhe responder...

- E tu? Como estás? - Perguntou Elisa... Abrindo os olhos... No sentido de desenterrar algo escondido...

Pedro suspirou...

- Eu... Ainda tenho tudo por definir! – Informou...

- Mas hoje já começas! – Afirmou... Completamente surpresa...

Pedro abriu os braços... Em sinal de dúvida... Acrescentando:

- Por acaso queria falar com a Dona Filó... Mas... Ainda não apareceu! – Desculpou-se...

Elisa aproximou-se e confidenciou-lhe:

- Ela não é o que aparenta! É preciso muito cuidado com ela...

- Realmente... – Interrompeu Pedro... - Isto por aqui é um bocado familiar! Ainda ninguém me explicou como isto se vai processar hoje!

- Nem explicam! – Exclamou Elisa... Sorrindo de contentamento... Talvez por perceber a sintonia para com Pedro... – Tu vais para a tua salinha e aguardas os miúdos! É assim!

Entretanto... Júlia desceu e a conversação acabou...

- Vou para a minha sala! – Disse... Ecoando o seu característico sotaque... – Hoje parece que tenho poucos miúdos!

- Eu também já vou andando para a sala! – Disse Pedro afastando-se...

- Não te admires! – Avisou Elisa... – Isto aqui é assim!

Pedro voltou-se... Enquanto se afastava e visualizou o rosto da educadora... Repleto de boa disposição por ter encontrado um novo “amigo”... Alguém confidente dos seus problemas profissionais... Pedro não achou muita graça à situação... Ainda por cima… Por esta ter feito a cena na presença da psicóloga... Estranho...

E seguiu para a sala... Lá dentro... Contemplou o ambiente com alguma nostalgia... Seria pena ter de deixar aquela sala... Mas enfim... Era assim a vida...

Deslocou-se até à porta e esperou que os alunos chegassem... Avisaram-no... Que nem todos chegavam à mesma hora... Porque... Para além de virem de zonas diferentes... Só havia uma carrinha e uma condutora no colégio...

O dia estava bonito e repleto de luz solar... Irradiando a sala de um colorido inexplicável... Os canteiros ao abandono... Tornavam o pátio mais triste e só... Subitamente... Uma melodia de guitarra entrou na sua cabeça... Como banda sonora melancólica... Fazendo-o recordar com alguma tristeza a sua casa... Assim como todo o seu percurso profissional... Atribulado e infeliz…

Lembrara-se da sua viola... Um instrumento que estudara quando era muito novo... Algo que lhe proporcionava prazer e tranquilidade... Infelizmente... Não lhe dedicava o tempo suficiente…

Olhou para a sua mão esquerda e apertou as cabeças dos dedos... Verificando a sua resistência e pressão ao esforço…

“Se cá ficar... Trazer-la-ei!”... Pensou...

- Bom dia! – Interrompeu uma voz... – É o novo professor?

Pedro respondeu afirmativamente àquele aluno... Muito obeso e anafado... De olhar magoado e disperso... E retribuiu o cumprimento estendendo-lhe a mão...

- E tu como te chamas?

- Carlos Manuel da Luz e tenho dezassete anos! – Respondeu... Enchendo o peito de vaidade... Orgulhoso de saber o nome completo e a idade... Pedro convidou-o a entrar e a sentar-se...

- E os teus colegas?

- Devem estar a chegar! – Afirmou... Esticando o indicador... – Eu venho a pé! Chego sempre primeiro! – Completou... Inundado de vaidade...

Aquele aluno borrachudo falava pelos cotovelos... Do ano lectivo transacto... Da família e do seu trajecto diário... Carros velozes… E mais coisas...

Pedro retorquia... Escutando-o e fazendo-lhe perguntas... Desenvolvendo assunto para criar ambiente... Carlos... Embora quase com dezoito anos de idade... Apresentava um rosto desconforme... Uma vontade imensa em expressar-se oralmente... Contudo um olhar distante e escurecido... Que vestia roupa infantil... Apesar do seu corpo de adulto... Calções e camisa florida... Ténis brancos com meias puxadas até cima... Chapéu vermelho e verde... Com as insígnias portuguesas... Bem antes da euforia da selecção...

- Olá! bom dia! Rum... Rum... Bom dia! Sou a Cristina! – Saudou efusivamente uma aluna com síndrome de down... Magrinha... Andar desengonçado e movimentos engraçados... Penetrou dentro da sala... Repetindo a sua felicitação ensaiada... Com actividade... – Vamos Cristina! Rum... Rum... – Dizia... Para si própria...

Trazia mochila às costas... Roupa e sandálias cor-de-rosa... Cheia de bonecos infantis... Usava óculos coloridos...

Bom dia Cristina! – Cumprimentou Pedro... Com uma certa criancice... Depois de constatar as suas limitações... – Estás boa?

- Estou! Rum... Rum... E tu? – Questionou... Retribuindo a felicitação... Olhando enviesadamente para o novo professor... Bem na sua frente...

- Tu não! Você! – Reparou Carlos... Olhando para Pedro com alguma cumplicidade... – As férias foram boas? – Inquiriu...

- Ãh? As Férias? Rum... Rum... – Repetiu... Tentando processar aos poucos a pergunta... – Sim! Rum... Rum... Boas! Sim! As férias! Boas! Foram boas Cristina! Rum... Rum... – Soltando uma gargalhada estranha... Que a fez esconder os dentes com ambas as mãos... De vergonha…

Carlos enxergou Pedro e efectuou um sinal de cumplicidade... Certificando a loucura de Cristina... Rodando o indicador direito na testa...

- Onde é que te sentas Cristina? Ai... Rum... Rum... – Perguntou para si própria... Passeando às voltas... Circulando o corpo à toa... Sem saber bem o que fazer...

- Onde quiseres Cristina! – Exclamou Pedro sorrindo...

Por instantes... Cristina olhou em redor... Como que... Procurando o melhor lugar para o efeito... Visualizou... Pensou... Circulou e lá se sentou por fim...

Subitamente... Entraram mais dois alunos... Em silêncio... Um deles ficou estático à porta e o outro foi sentar-se a passos largos numa cadeira das de trás...

- Bom dia! – Cumprimentou Pedro... – Como se chamam?

- É o Carrapito e o Filipe! – Afirmou Carlos... Em voz alta...

Nenhum deles respondeu... Pedro dirigiu-se à porta e convidou o aluno que ficara estagnado a entrar na sala...

Este aluno com síndrome de down... Óculos bem graduados e alourado... Vestia fato de treino e segurava um enorme lápis amarelo... Assim como uma mochila às costas e um enorme saco desportivo na mão...

- Senta-te aqui Filipe! – Disse Carrapito... Gaguejando num tom muito agudo…

Carrapito era muito gordo... Apresentava uma enorme cabeça e metia uma das mãos constantemente na boca...

- Então... Tu és o Carrapito? – Perguntou Pedro... Alongando a mão para o cumprimentar… Este retirou a mão da boca... Cheia de saliva e apertou a do professor... Sem contudo o olhar de frente...

- Bom dia Filipe! Tás bom? Rum... Rum... – Cumprimentou Cristina... Voltando-se para trás muito direita... Filipe não respondeu... Limitando-se a murmurar quaisquer palavras... Dificilmente perceptíveis... – Olá Carrapito! Rum... Rum...

- Bom dia Cristina! – Balbuciou Carrapito... Em voz aumentada e amolada... De mão na boca e sem a olhar...

Para não esperarem... Pedro distribuiu por todos uma folha em branco e lápis de cor... E convidou-os a desenhar... Ou a escrever... O objectivo seria utilizarem o papel como quisessem...

Os alunos alimentaram um pouco a sua criatividade e conversaram entre si... Pedro regressou à porta para ver se vinha mais alguém... Carlos acompanhou-o... Verificaram que já lá estavam mais alunos no exterior... O professor apresentou-se e convidou-os a entrar... Carlos nomeou-os um a um:

- Ora vamos lá... Esta é a Maura... A Sarita... A Raquel... A Ana que é irmã do Mário... Olá Mário! – Interrompeu Carlos... Felicitando-o... – O Bruno! Então Bruninho? Amigalhaço! – Disse abraçando-o... – A Patrícia... O Ronaldo e o João... Olá amigo! – Cumprimentou com uma grande pancada nas costas...

Carlos contemplou Pedro esboçando uma expressão de missão cumprida... O professor bateu-lhe nas costas e agradeceu-lhe...

Depois de sentados... Ficaram a fazer um desenho... E alguns... Mais desembaraçados... Trocavam palavras de amizade e de saudade... Pedro observava-os um a um…

“Que bom seria se pudesse ficar!”... Pensou... Completamente deliciado com o ambiente de ingenuidade cristalina e de afecto puro... Que se vivia naquela sala de aula... Tão diferente da maioria das outras... Os alunos partilhavam os materiais e sorriam... Mesmo com todos os seus problemas e deficiências... Deixando de lado as necessidades e as contrariedades da vida…

De súbito... Uma cabeça espreitou na porta e desapareceu... Pedro apressou-se ao local e verificou que um aluno se afastava...

- Olá! – Congratulou Pedro...

O aluno... Aparentemente assustado... Voltou-se para trás e interrompeu a marcha... E perguntou pausadamente:

- Está a falar comigo?...

- Sim! Espera! Como te chamas? – Demandou... Deslocando-se na sua direcção...

O aluno... Alto e muito bem parecido... Revelava alguns tiques e alguma instabilidade...

- Sou o Teófilo! – Disse hesitando... – Como o…

- Como o presidente! – Interrompeu Pedro… - Teófilo Braga!

O jovem aluno olhou-o nos olhos… Como se… Tivesse havido alguma empatia…

- Não vens para a sala? – Questionou Pedro...

O aluno pareceu mais nervoso e instável... Os seus pés começaram a mover-se... Parecendo querer sair dali…

Pedro acalmou-o e convidou-o a entrar... Segurando-o delicadamente no braço...

- Olá Teófilo! – Congratulou Carlos... Assim como alguns dos restantes alunos...

Discretamente... Teófilo efectuou um cumprimento generalizado à sala e sentou-se... Sozinho...

Depois disso... Chegaram mais alunos... Virgílio... Com baba no canto da boca e um tique quase sempre presente… Que consistia em cerrar um dos olhos...

Chegou ainda... Luís... De aspecto aparentemente normal... Porém muito calado... O Roberto... Muito falador... Timbre de voz muito grave e elevado... Enfim... A sala estava a compor-se aos poucos...

O burburinho ia-se instalando... Pedro sentou-se numa cadeira e contemplou-os com benevolência e alguma subtileza... Apresentou-se e disse que seria o novo professor... Maura... Sarita e Raquel murmuraram entre si... Enfim... Palavras... Risos de alguma vergonha... Já... Bruno... João... Teófilo e Virgílio... Fitavam-no com atenção…

Os restantes alunos desenhavam traços ameninados na folha branca... Outros pareciam completamente alheios... Como Cristina e Filipe…

De cara séria... Carlos na primeira fila... Olhava a turma como se fizesse parte do corpo docente...

O novo professor... Apenas falou do seu nome e nomeou a terra de onde vinha... Pediu a todo que se identificassem de novo... Nem todos falaram ou responderam... Mas Carlos ajudou... Depois disso... Pedro deslocou-se pela sala e conversou individualmente com os discentes... Procurando saber um pouco mais acerca de cada um... De onde vinham... Do que gostavam... Enfim... Tentar perceber um pouco as suas capacidades e as suas limitações...

O grupo era dissemelhante... Alguns não sabiam o nome completo... Outros inventavam a idade... A maioria não sabia escrever... Nem mesmo o próprio nome...

Eis que... Dona Filó entrou na sala... Galanteado-os... Alguns avançaram na sua direcção e abraçaram-na com ternura... E alguma força...

- Bem vejo... Que já conhecem o vosso novo professor! – Certificou... Elevando a voz com um jeito adocicado e mélico...

- Sim! – Gritou Maura... Desconjuntadamente... Tapando em seguida a boca com a mão...

- Gostas do professor Pedro? – Perguntou Dona Filó... Amplificando a sua curiosidade... Face à manifestação desta...

Maura escondeu a cabeça entre os braços e disse:

- É... Bonito!

A directora e o novo professor riram com a resposta...

- Bonito! Ãh? Rum... Rum... – Disse Cristina... Apanhando a deixa da colega...

– Ai... Ai...  Cristina... – Exclamou Carlos... Esticando o dedo na sua testa...

- Eu sou do Sporting! – Gritou Roberto... Já de pé... Entre Pedro e Dona Filó... – Este ano ganhamos o campeonato! – Insistiu... Segurando o braço dos dois e salpicando-os de saliva...

- Sim! Sim! Roberto... – Assegurou a directora... Afastando-o suavemente... De forma a proteger-se das investidas deste... – Eu depois falo contigo!... Deixa-me falar com o teu professor... Se fazes favor... – Pediu... Contemplando-o com um olhar meigo...

Pedro constatou a gentileza com que esta se dirigiu ao aluno... Assim como aos restantes... Elevando a educação de um modo soberbo... Com uma dicção clara e perceptível... Delicadamente pronunciada...

- Por favor! – Demandou... Dirigindo-se à classe... – Vão até ao intervalo que eu preciso falar com o vosso professor!

- Mas ainda não são horas! – Exclamou Teófilo... Olhando para o seu relógio... E movimentando o seu corpo com algum nervosismo...

- Tens razão! – Comprovou... Olhando-o… – Só que hoje é o primeiro dia de aulas e eu preciso de falar com o professor Pedro! Pode ser? – Esmolou... Fazendo olhos de quem implora...

Teófilo acedeu ao seu pedido e saiu... Assim como os restantes...

Dona Filó sentou-se numa das cadeiras dos alunos... Algumas eram mesmo muito baixas... O seu aspecto frágil... Imenso de classe... Parecia estar um tanto ou quanto transtornado... Parecia querer dizer-lhe alguma coisa... Mas Pedro antecipou-se:

- Precisava mesmo de falar consigo!

- E eu também! – Disse... Cruzando as pernas num movimento carregado de alguma sensualidade... Apesar da sua idade... Aquela mulher era dona de um encanto diferente... Pele morena... Cabelo arranjado... Sem muita tinta ou batom... Olho profundo e aparentemente sensato... – Nem imagina os problemas que tenho tido no arranque deste ano lectivo... Mas diga você primeiro! – Pediu... Respirando fundo...

Pedro explicou-lhe toda a situação... O encanto que sentiu em receber aqueles alunos... Socialmente diferentes... Do telefonema do sindicato... E de todos os alertas que lhe fizeram... Dos seus medos e receios... Da paixão que tinha para com o seu trabalho... Assim como dos projectos que rapidamente improvisou... Só num pequeno momento em que conviveu com eles...

Dona Filó escutava-o com serenidade... Porém... Nos seus olhos... Um misto de preocupação... Traduzido eficazmente pelo modo em que emitia expressões de desagrado...

Pedro abanou a cabeça em sinal de desalento...

- Olhe! – Atalhou... Abreviando a conversa... – O colégio está a atravessar momentos difíceis! A directora financeira vai-me chatear a cabeça! Já sei! – Anunciou... Sacudindo a mão... Em sinal de desagrado... – Mas não quero saber! Não vou abdicar de um professor tão motivado e competente!

Pedro pensou para si próprio: “Mas ela ainda nem me viu a trabalhar!”...

- Além disso... Preciso que exerça as funções de director pedagógico! Eu faço-lhe o contrato de trabalho!

Pedro sorriu... Emocionado com as suas palavras de entusiasmo... Dona Filó esticou-lhe a mão e o novo professor correspondeu... Em seguida... Confidenciou-lhe alguns dos problemas que a preocupavam... Como... As pressões da direcção regional... Os problemas financeiros... A má vontade de alguns funcionários... A necessidade de ter um director pedagógico... Que planificasse a intervenção pedagógica... A falta de um plano anual de actividades... De um regulamento interno... Do projecto educativo... O medo constante de uma inspecção que encerrasse a escola... Os horários dos alunos por fazer... Enfim... A mulher estava visivelmente angustiada...

Pedro disponibilizou-se a ajudar... Comprometendo-se em começar nessa mesma noite... Investigando legislação e começando a delinear as estratégias intermédias...

A directora ficou embevecida ao ouvir as suas palavras... Confidenciando-lhe que se sentia mais forte por saber que não estava sozinha...

No resto desse dia... Pedro esteve deliciosamente bem disposto... Combinou com Dona Filó estruturar os horários dos alunos numa semana... Durante esse tempo... Iria observar as capacidades dos mesmos... Organizando-os em grupos de nível... Consoante as suas necessidades... Começou a tirar apontamentos nesse mesmo dia...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando

X

Era sexta-feira... Faltava apenas um fim-de-semana para o início do novo ano lectivo...

No final do dia... Na sua nova casa... Nas tais águas furtadas de um edifício antiquado...

Pedro já tinha o horário de trabalho consigo…

No terraço... Sentado numa cadeira de plástico... Daquelas de esplanada de café... Apreciava a mudança de cores que o fim do dia lhe proporcionava... Pôr do Sol deslumbrante... Num acaso em que o ocaso acontecia... Como um espectáculo cénico... De efeitos especiais assombrosos e sem qualquer manipulação...

De pernas apoiadas no muro... Fumava um cigarro lentamente... Puxando a nicotina para dentro de si... Com intensidade e sem pressas… No mesmo momento em que o Sol se escondia aos poucos no horizonte azulado…

Acontecimento de cariz único... Episódio que nos escapa... E que no entanto... Ocorre todos os dias em toda a parte... Dádiva do movimento dos corpos... Gradativo e vagaroso... Sem que se note... Mesmo que se pare para reparar... Num exercício rotativo... Irradiante... Avermelhado e alaranjado…

Um incêndio que une os mais frágeis seres... Mesmo sem o saber... Tornando-os alheados e atentos aos pormenores... Pensativos na beleza... Reflectivos como Pedro... Num novo amanhã…

Lembrou-se do horário... Manhãs com escolaridade... Tardes com educação física e psicomotricidade... Diferentes grupos de alunos... Rotativos ao longo dos dias da semana... Todos passariam por lá... Distantes capacidades e necessidades...

Não ia ser tarefa fácil...

“Depois se veria!”... Pensou... Enquanto travava o fumo com avidez...

Atmosfera que esbraseias... E conservas com ganância uma enormidade de partículas... Aquecimento da humidade da Terra... Aceleramento das correntes de ar... Desorientadas e perdidas... Correndo campos e montes... Vielas e casas... Cidades grandes e pequenos aglomerados de casebres... Levantando poeira... Criando algazarra...

Sem espaço para ter medo do amanhã... Sem apreensão pelo que possa acontecer... Porque aquele espectáculo era de facto soberbo e único... Tornando cada ser e os seus problemas em pequenas misérias insignificantes...

António Pedro Santos

(Continua)... 

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IX

Pedro regressou à sala de aula transportando alguns livros que trouxera da biblioteca... Chegou rapidamente à conclusão que existia muito pouco material acerca da problemática da deficiência... Ainda assim... Com a ajuda da bibliotecária... Lá encontrou algumas coisas...

Pedro abriu um dos livros... Acerca da temática psicomotora e iniciou a sua investigação…

Constatou que tinha como objectivo principal... O estudo do movimento do corpo do ser humano no seu ambiente... De intervenção e de incidência socio-afectiva... Relacional e cognitiva... Fisicamente educativa... Variando os locais e os contextos de interferência... Bastante próximo das matérias que estudara na educação física... Do desenvolvimento da aprendizagem motora... Da pedagogia e de toda a sua prática... Anatomia... Fisiologia... Organização perceptiva... Simbólica e conceptual...

Pedro avançou embevecido... Era de facto um tema que lhe dava prazer...

Trabalho e correcção da postura... Esquema corporal e coordenação geral... Lateralidade... Comunicação e linguagem... Orientação no tempo e no espaço... Desenvolvimento da memória…

Percebeu que... A psicomotricidade se utiliza no trabalho com deficientes... E não só... Realizando actividades de prevenção... Educativas e reeducativas... Lúdicas e expressivas... Recorrendo ao relaxamento e conhecimento corporal... Trabalho da postura... Desenvolvimento do movimento... Coordenação óculo manual e óculo pedestre... Ou pedal...

De toda a informação que lera... Houve uma em particular que reteve... Seria conveniente efectuar no início uma avaliação diagnostica psicomotora... Para que melhor programasse a intervenção futura... Uma bateria simples de exercícios com uma simples cotação... Pedro começou a tirar apontamentos e a escrevinhar ideias...

- Bom dia! – Cumprimentou uma voz feminina... Muito aguda... – És o novo professor?

Pedro levantou-se da sua secretária e respondeu afirmativamente...

A mulher... De aproximadamente cinquenta anos... De cabelos pintados de louro e de saltos altos abusados... Aproximou-se com um andar desengonçado... Com a roupa apertada... Segurando à força a sua própria carne...

- Eu sou a Leontina! A condutora da carrinha! – Apresentou-se... Saudando-o com dois beijos...

Pedro sorriu e efectuou um ar agradável...

- Vim apresentar-me e dizer que estou à disposição se precisares de alguma coisa! – Disse... Com uma pronúncia acentuadamente algarvia…

- És algarvia? – Questionou...

- Nota-se? – Perguntou... Entremostrando alguma classe e glamour... Enquanto se afastava rumo à porta... De andar cadenciado e erótico... – Bem... Tenho de ir! Já sabes... Se precisares... Diz! – E saiu... Despedindo-se com um aceno e um piscar amatório de um dos olhos…

Leontina... Uma simpatia de senhora de meia idade... Admirável produção estética... Numa combinação de pinturas e de cheiros frenéticos... Cabelo... Olhos e unhas... Das mãos e dos pés... Salto alto pontiagudo que proporcionava a todo aquele peso... Um andar desequilibrado e pouco consistente... Mesmo com tanta carga... Uma atraente forma de estar... Numa deleitável presença de eterna juventude... De aromas e fragrâncias fortes... Sorriso leve e contagiante... Num grito de perpétua mocidade... E de amizade...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

VIII

Pedro ficara um pouco mais que os restantes… Dona Filó fez questão de lhe dar uma palavra acerca do sucedido e por causa dos horários... O novo professor disponibilizou-se a ajudar no que fosse necessário...

Aproveitou o final da reunião para ir ao café...

No caminho... Encontrou Luz e Irene... Apressou-se para as acompanhar... Quando lá chegaram... Já lá estavam Júlia e Elisa sentadas na mesma mesa... Numa segredada conversa de mexericos...

- Vieram e nem esperaram! – Exclamou Luz... Fazendo-se de zangada... – Gostam muito de cuscar as duas!

Ambas sorriram... Como se fosse uma brincadeira… Ainda assim… Convidaram-nos a sentar...

- Estão zangados connosco? – Perguntou uma voz esganiçada…

Era a Saudade... Que estava numa mesa mais ao fundo juntamente com Carla... Martinha... Telma e Dora...

- Gosto mais desta mesa! – Exclamou Luz... De uma forma expansiva...

Irene... Elisa e Júlia... Riram à gargalhada... Pedro pediu um café e acendeu um cigarro... Naquele tempo... Ainda se fumava no interior de todos os cafés... Elisa e Irene efectuaram expressões de desagrado... Franzindo os olhos e torcendo os narizes... O professor percebeu-o e afastou a cadeira ligeiramente para trás...

- Não sei o que é que estas querem? – Interrogou Luz olhando-o... Enquanto acendia também um cigarro... – Fumam de borla e ainda se queixam!

Todos riram... Contudo... Elisa havia recuado um pouco a sua cadeira e Irene realizava movimentos continuados de afastamento do fumo do tabaco...

Na mesa mais ao fundo... Uma acesa conversa... Discutia-se a vida cor-de-rosa e as férias de Verão... Pedro estava a sentir-se um pouco incomodado por ali... Todavia... Fez algum esforço...

- Existe alguma biblioteca municipal por aqui? – Questionou...

- Temos uma aqui bem perto... – Respondeu Irene...

- Mesmo no fim da rua! – Interrompeu Luz... Elevando a voz e olhando para Irene... Quase como... Ganhando espaço em relação à colega...

- É uma biblioteca muito boa! – Afirmou Elisa com aquela voz demasiado cuidada...

- Preciso de lá ir para encontrar umas coisas! – Justificou... Bafejando o cigarro e terminando o café...

- Por acaso... Está muito bem apetrechada de materiais actualizados! – Disse Júlia... Com o seu sotaque de Viseu... – Costumo lá ir muitas vezes! É muito boa mesmo! – Completou...

Pedro levantou-se... Pagou o seu café e renovou o stock de tabaco... Despediu-se dizendo que não demoraria... E seguiu rumo à biblioteca...

Ao sair do café... Deparou-se com o reflexo da vitrina. Todas as colegas o olhavam... Pareciam comentar a sua saída na cavaqueira... Enfim… Seria para esse lado que Pedro dormiria melhor...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

VII

Quando Pedro entrou na sala da psicóloga... Dona Filó... Que se encontrava sentada à cabeceira... Ergueu-se para o receber...

- Bem vejo que já conheceu a nossa educadora Elisa! – Exclamou... Verificando com quem vinha...

Pedro respondeu afirmativamente com um alvoroço incomplexo da cabeça...

- Meninas! Prestem atenção! – Alertou... – Este é o professor Pedro... Que vai trabalhar connosco!

O novo professor... Olhou a sala de uma forma geral e efectuou um cumprimento... Dona Filó convidou-o a sentar... Ao seu lado direito...

Na sala... As mulheres que a compunham... Ainda manifestavam uma certa alegria... Talvez fosse o início do ano lectivo... Ou por não estarem ainda... E de facto... No ensino directo... Isto é... Com os alunos do colégio... Na verdade... Pedro pressentiu que por ali ainda se falava de férias...

Depois de sentados... A directora deu início à reunião... Apresentando as pessoas:

- Professor... Já conhece a doutora Júlia e a educadora Elisa! – Disse apontando para o seu lado esquerdo... Pedro olhou-as e correspondeu... Confirmando... – Ao seu lado temos a Luz que é a nossa administrativa... – Luz sorriu e falou-lhe de um jeito hilariante:

- Como está... Senhor professor?

- Ao lado... Temos a terapeuta da fala... A Carla... A educadora social Martinha... As auxiliares Telma... Saudade... Irene e Dora.

À medida que Dona Filó ia efectuando as apresentações... As anunciadas iam levantando o braço... Ou simplesmente... Realizavam um gesto subtil... Em jeito de saudação...

Posteriormente... A directora falou um pouco acerca do colégio... Da sua história... Que já contava com pouco mais de dez anos... Das suas metas... Do cariz de instituição formadora de crianças e jovens com necessidades educativas especiais... Auxiliando e preparando o seu caminho pessoal e social... Numa perspectiva de transição para a vida activa consertada e eficaz...

- Dona Filó! – Interrompeu Carla... A terapeuta da fala... – Será que este ano poderei dar sessões individuais aos alunos?

- Já davas sessões individuais! – Exclamou Luz... Abrindo os braços em surpresa...

- Apenas a alguns alunos! – Completou Carla... Elevando a voz...

- Minha querida... – Acalmou Dona Filó... - Isso são assuntos que verificaremos depois! Assim que os horários estejam concluídos!

- Pois... – Interrompeu Martinha... – Eu tenho o mesmo problema!...

- E os almoços Dona Filó? – Inquiriu Telma... Quase em coro com Saudade...

- Bem... Vocês mandam vir com tudo! – Gritou Luz… Com a sua pronúncia de sabor alentejano... – Isso depois resolve-se com a Bela e com a Preta!

Por seu lado... Júlia e Elisa pareciam segredar algo...

- Já que falam em reivindicações... – Interrompeu Dora... – Gostaria de saber se é este ano que passo a ter contrato!

Luz agitou a cabeça... Parecia não acreditar no que ouvia…

As pequenas confidências estendiam-se agora a Irene e Martinha... Para além das que já se mantinham... Ao contrário... Dona Filó optou por nada dizer... Mantendo-se numa posição de expectante observação...

- Temos de ver como vão ser as carrinhas! – Alertou Irene... Metendo-se na conversa...

- Não está cá a Leontina! – Alertou Luz... Abrindo de novo os braços... – Depois resolve-se!

Pedro... Um pouco apalermado... Porém... Sem tomar partidos... Limitou-se a vigiar os acontecimentos...

- Meninas! – Interrompeu Dona Filó... – Não estamos a dar uma boa impressão ao senhor professor!

Rapidamente... E face ao modo amável com que a directora se dirigiu às presentes... Todos se calaram... E os segredos cessaram... Adiantou:

- Não é a altura nem o momento... Para colocarmos essas questões em cima da mesa! – Lembrou... – Este ano vai iniciar-se dentro em breve... Os horários irão sair entre hoje e amanhã... E tentaremos melhorar o que não está bem... Sempre no sentido de proporcionar um ensino de qualidade aos nossos alunos!... A ideia agora é preparar o ano lectivo... Arrumem as salas... Coloquem-nas ao vosso gosto! – Exclamou… - Agradáveis... Acessíveis e funcionais...

Na cabeça de Pedro... E enquanto escutava o discurso... Um presságio do destino... Quem sabe... Com algo de irrealizável... Talvez ainda fosse uma utopia na sua mente...

Dizia-se por ali... Que seria o novo professor... E também o novo director pedagógico do colégio... Rol de dúvidas que o inquietava face à evidência de um todo... Nas declarações de anunciação de Dona Filó... No acolhimento de Luz... Coisas que pareciam boas demais…

Resumindo... Havia um telefonema que tardava em chegar...

Entre conversas segredadas de colegas... Em que uma se dizia professora e era afinal educadora... Embora não achasse isso importante... Pareceu-lhe estranho que ela assim se fizesse parecer... Colegas bem diferentes das que havia tido nas outras escolas por onde tinha passado... Personagens novas num contexto diferente... Auxiliares... Psicólogas... Terapeutas e até uma administrativa...

Pedro sentiu o silêncio no ar... Enquanto a directora expunha as novidades...

Naquele dia... Os protestos e as reivindicações apresentadas de uma forma efusiva... Perderam rapidamente a força de que dispunham aquando do início da reunião... Em detrimento de palavras floreadas e paulatinamente pronunciadas... Suavemente e assertivamente…

António Pedro Santos

(Continua)...

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VI

Depois de chegarem ao primeiro piso... Luz conduziu Pedro até à sua sala... No caminho disse:

- Ainda não está aqui ninguém! As outras só chegam lá para dez e tal... É sempre assim!

- Não faz mal... Assim terei tempo para ver como é por dentro. – Afirmou...

- A chave está na cozinha! – Lembrou Bela...

Pedro seguiu-as pelo refeitório e atravessaram um balcão que o separava da cozinha...

- Bom dia Preta! – Cumprimentou Bela… – Esta é a nossa cozinheira e este é o nosso novo professor!

Pedro cumprimentou-a e esta contra-atacou Bela... Sem ligar muito ao recém-chegado:

- Grandes vidas que por aí há! Isto são horas de chegar?

- Vai pró caralho Preta! – Gritou Bela... Movimentando compulsivamente as sobrancelhas... – Vou-me vestir!

- Não ligues! – Aconselhou Luz... – Isto são só malucas!

- E tu vai-te foder! – Berrou Bela à distância... – Ai desculpe! – Corrigiu... Colocando a cabeça de fora da arrecadação... Sorrindo... – Saiu-me...

Preta olhou-o e abanou a cabeça... Num jeito desdenhoso acerca da conduta da colega...

Luz entregou a chave a Pedro e acompanhou-o à sala de aula... Nesse momento... O telefone da recepção tocou...

- Tenho de ir atender! – Disse... E enquanto isso correu em direcção às escadas... Gritando:

- Deixa-te estar à vontade!

A sala dava para um pequeno pátio... Com canteiros desactivados... A porta de madeira esverdeada tinha quatro grandes vidros... Os de baixo eram martelados e os de cima completamente transparentes…

Pedro rodou a chave e a porta não abriu... Forçou de novo e nada... A chave era grande e a porta antiquada... Só depois descobriu que teria de premir um pequeno gatilho para que esta abrisse... Mesmo assim... Tinha de se apanhar o jeito…

A porta arrastou-se pelo chão de corticite... As dobradiças chiaram... De dentro um bafo a mofo... Um sopro guardado durante as férias grandes que agora se libertava por fim…

Lá dentro... As paredes brancas variavam consoante a húmidade... Assim como… Uma ou outra pincelada artística dada por alguém no passado...

A sala era alta e tinha uma clara bóia no topo... As mesas orientavam-se para um pequeno quadro preto... As cadeiras variavam de tipos e de tamanhos... Em frente à porta... Três janelas de alto a baixo pareciam iluminar o espaço... Nas paredes... A cortiça parecia querer desagarrar-se... O cabide estava caído e o mobiliário reduzido... Estava em muito mau estado... Gavetas sem puxadores... Portas descaídas... Enfim... A sua mesa... Situada na frente do quadro... Era pouco maior que a dos alunos... Pedro sentou-se e abriu as gavetas... Encontrou material escolar estragado... Restos de lixo... Folhas amachucadas...

“Se cá ficar!”... Pensou para si... Como se ainda não acreditasse muito... Afinal... Ainda aguardava o tal telefonema do sindicato... Era imperioso que tivesse contagem do tempo de serviço para efeitos de concursos futuros e progressão na carreira...

Mas... Na verdade… Pedro estava descontraído... Não tinha nada a perder... Geralmente nunca trabalhava tão cedo... Nunca antes de Outubro... Novembro e até Janeiro... O máximo que podia acontecer era voltar para casa e aguardar por uma chamada do ministério da educação...

- É o novo professor? – Interrompeu uma voz delicada...

Pedro reergueu-se da secretária... Cessando a sua divagação e respondeu:

- Sim sou eu!

A mulher entrou na sala e apresentou-se como sendo a professora do ano lectivo transacto... Chamava-se Elisa... Estatura baixa... Pele morena e olhos escuros... Talvez da idade de Pedro... Vestia uma roupa demasiado conservadora para a sua faixa etária... Uma espécie de um fato azul-escuro... Provavelmente pouco confortável para um fim de Verão cheio de calor...

- Vim informá-lo que vamos ter uma reunião geral na sala da psicóloga! – Participou... Com uma dicção tão cuidada... Que parecia sacrificada por uma doença qualquer...

Pedro corrigiu-a... Pedindo que esta o tratasse por tu...

- Ai… Chegaste primeiro! – Exclamou Luz da entrada da porta... – Eu é que vinha chamar o professor! – Disse... Em jeito de graça... Provavelmente para atrapalhar Elisa...

A qual o olhou… Efectuando uma expressão de seca... Mas Luz continuou:

- Sempre a tentar antecipar-se! Esta gente! – Generalizou... Olhando o docente e piscando um dos olhos...

A elocução de Elisa pareceu ainda mais débil... Uma expressão do pensamento por palavras... Que se tornou mais lenta e lerda que há pouco...

Pedro disfarçou o momento dizendo:

- Onde é a sala da psicóloga?

Enfim... Acabou por segui-las para a reunião onde iria ser formalmente apresentado aos restantes colegas... E... Embora a sua situação ainda não estivesse bem definida... Pedro lá foi...

António Pedro Santos

(Continua)... 

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V

No dia seguinte... Apresentou-se no colégio... Por volta das nove horas... Ainda houve tempo para um café num local próximo... Luz estava lá… Com um vestido e uns sapatos cor de laranja...

Estava com outra mulher... Bem mais discreta... Ambas fumavam... No tempo em que se fumava em qualquer café...

- Então como dormiste? – Perguntou...

Ao balcão... Pedro sorriu e respondeu:

- Deitado!

As duas mulheres riram... Luz convidou-o a sentar…

Com a mão direita... Transportou a chávena sobreposta no pires... Até à mesa de ambas... Num acto de equilibrismo e de orientação... A mão esquerda estacionou a pasta junto à cadeira onde se sentou...

- Esta é a Bela! – Apresentou Luz... – E este é o nosso novo professor! Trabalha connosco! – Completou...

Bela sorriu e cumprimentou Pedro com dois beijos na face... Pedro sentiu-lhe o cheiro a tabaco...

- Está a gostar da nossa cidade? – Questionou... Aguardando pela resposta... Segurando o cotovelo e preparando-se para bafejar o cigarro... Entremostrando um pequeno tique com as sobrancelhas...

- Ainda não tive muito tempo... – Respondeu... Enquanto levava os lábios à chávena do café... – Acabei de chegar!

Bela era uma mulher mais velha que Luz... De cabelos curtos e grisalhos… Senhora de uma robustez aparente... Curvilínea e tesuda... Voz grave... Porém agradável e meiga... Dona de uns olhos grandes... Incrivelmente desenhados e penetrantes... Delicadeza pujante e rigidez patente... Na forma tranquila como se quedava... Naquela cadeira de café... Sem muita beleza... Mas... Com muita elegância atractiva...

Pedro acendeu um cigarro...

- Mais um para o clube! – Exclamou Luz... Batendo nas costas compactas de Bela... Que sorriu...

- Qual clube? – Perguntou Pedro... Soprando o fumo para longe da sua boca...

- Dos fumadores! – Afirmou Luz... Soltando uma gargalhada...

- É que aqui no colégio há muita gente anti fumos... – Assegurou Bela... – Uma cambada de Putas! Ai cala-te boca! – Exclamou... Rectificando-se… Ou melhor… Desculpando-se com o que havia dito... Contemplando-o profundamente nos olhos... Na mesma posição de há pouco... Movimentando apenas os lábios na direcção no cigarro... Num exercício de preguiça impoluta e sensual...

Repetiu o tique das sobrancelhas... Agora acompanhado de constantes inspirações...

Depois de beber o café e de fumar o cigarro... Pedro levantou-se e disse:

- Bem... Vou andando!

- E nós ficamos aqui? – Inquiriu Luz em tom de brincadeira...

Até chegar à entrada principal... Teriam de virar à esquerda e depois no final da rua… Fazer o mesmo outra vez... Era aí que ficava o enorme portão principal...

- Vamos por aqui! – Sugeriu Luz... Atalhando o caminho por uma porta de madeira que ficava a meio caminho... – É mais perto!

Luz retirou da sua mala laranja uma chave grande... Daquelas antigas... E entrou...

- Faça favor! – Falou Bela... Indicando o caminho a Pedro... Enquanto atirava o cigarro para longe... Amparando o cotovelo como há pouco...

Pedro agradeceu e entrou... Lá dentro uma grande escadaria... Em baixo a porta de um elevador...

- Não trabalha! – Avisou Bela... Ao verificar o interesse de Pedro... – Aqui é tudo a pulso! – Exclamou... Aludindo o sobrolho em harmonia com os olhos... Numa inalação de ar a três tempos...

Entalado entre as duas... Pedro subiu... A enorme escadaria até ao primeiro andar... Íngreme e maçuda... Constituída por dois lanços de escadas…

O edifício antigo... Apresentava sinais de degradação... E o enorme pé direito daquela área... Dificultava ainda mais a subida…

A visão de Pedro deambulava e por entre as características do interior do prédio e o rabo alaranjado de Luz... Amplíssimo... Mas mesmo assim delicioso... Escurecido por uma cueca…

No ar... A fragrância de Bela... Que por trás de si... Emanava um odor pouco perfumado... Contudo... Carregado de sensualidade...

- Foda-se! – Estas escadas dão cabo de mim! – Lamentou-se... Subindo os degraus com dificuldade... Completamente apoiada no corrimão... Efectivando constantes respirações com o nariz...

- Quer ajuda? – Perguntou Pedro... Interrompendo a subida...

- Não sejas calona! – Disse Luz... Gozando...

- Cala-te puta! – Gritou Bela em desabafo... – Ai... Cala-te boca... Desculpe!

Pedro sorriu... E continuaram até ao primeiro piso...

António Pedro Santos

(Continua)...

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IV

Naquele quarto do último piso... Ou melhor... Acima dele... Na tal água furtada... Pedro desmantelou a mala pesada que carregara durante todo o dia…

Aos poucos... Começou a estruturar aquele espaço com vontade... A roupa ficou espalhada num guarda-fatos envelhecido e maltratado pelo tempo... As poucas pastas e os documentos de apoio à prática... Ficaram em cima de uma cómoda de pés altos... De construção rudimentar e com uma única gaveta... Seria uma adaptação de secretária... Escrivaninha bailadora que gingaria sempre que sentisse um toque...

No balcão da cozinha... Pousou um termo com dois compartimentos... Um resto de arroz de manteiga e quatro almôndegas... Tudo confeccionado pela sua mãe... Que à distância ainda não se havia habituado a esta mobilidade condicionada pela conjuntura nacional da sua profissão... “Podias ter sido enfermeiro!”... Dizia... Cobrando a má escolha do filho... “Ou até engenheiro!”...

Pedro acabava sempre por sorrir e reafirmava sempre: “Antes feliz e realizado... Do que prisioneiro dos intentos dos outros!”...

A sua mãe acenava-lhe sempre com a cabeça... Desdenhando das suas frases bonitas... Que ainda assim a deixavam sem argumentos... No fundo ela sabia que ele estava certo em seguir a sua paixão... Mas temia que Pedro lhe desse razão...

Por vezes... Ele próprio reflectia acerca de tudo o que a sua mãe lhe dizia... No sofrimento do dia-a-dia... Na precariedade e instabilidade pessoal e profissional... Ano após ano... Numa conquista atroz por um lugar na vida activa... De um mundo competitivo... Onde se esquecem valores e afastam sentimentalismos… Num desassossego de atropelo... Por cima e por baixo de semelhantes... Com uma boa dosagem de entusiasmo... Ao sabor da cunha e do compadrio... Num processo de colocação burocrático e pouco transparente... Onde as novas gerações... Responsáveis pelo futuro do nosso país... Vivem numa ansiedade constante... Incertos e sem saber se terão emprego amanhã...

Pedro jantou mais cedo do que o habitual... Sozinho como tantas outras vezes... Olhando a janela... Onde a luz... Cada vez mais fosca... Entristecia ainda mais aquele local e a sua solidão...

Ligou à sua mãe para dizer que estava bem... Do outro lado... Um rol de recomendações já habituais de outras alturas... “Vê se comes!”... “Não andes com a roupa suja!”... “Não te deites tarde!”... Pedro ria sempre... Mas acatava os seus avisos com carinho...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

III

Ao sair dali... Pedro teria de fazer duas coisas... Telefonar para o sindicato e arranjar um quarto ou uma casa para pernoitar...

Por sugestão de Luz... Que o acompanhou... Acabou por ficar numa água furtada de um prédio velho de dois andares... Um quarto composto por uma cama... Uma janela e uma pequena cozinha... Tudo na mesma divisão... Para lá chegar... Tinha de subir as escadas em caracol e aceder a um pequeno terraço... Onde posteriormente encontrava a porta do seu novo abrigo... Uma pequena arrecadação remodelada e transformada num estúdio para alugar...

A casa tinha um aspecto triste... Todavia... Pedro deslumbrou-se com a vista... Daquele terraço e daquela janela poderia avistar grande parte da cidade... Ao longe o rio desembocando no mar... Antes o cais desactivado... Numa calçada de esplanadas de cafés... Visando a caça ao turista e ao veraneante...

O casario envelhecido... Perdia-se no silêncio daquela paisagem... Que mesmo assim... No ruído natural da cidade... Emudecia com respeito o presente... Em detrimento de um pretérito... Há muito passado e vivido... Desde o tempo em que o centro da cidade era por ali... Em que as gentes passeavam descalças ou mal calçadas... Rua acima e rua abaixo... Na amplitude das mesmas... Mal vestidas... Transportavam desejos e espraiavam a fome... Sem automóveis...

Bicicletas e animais povoavam a calçada de paralelepípedo... Na venda do peixe... À cabeça e ao balde... A dinheiro ou por troca directa... Entremeavam-se negócios e trocavam-se juras de fidelidade... Ou de honradez... Laços de afecto... Brigas e amor proibido... Ao olhar dos mais velhos... Antes personagens principais... Depois castradores e inquisidores de boas maneiras... Costumes de gentes do mar e do rio... Onde as gerações cresceram... Absorvidas pelas transformações de uma sociedade modernamente irresistível...

- Acho que aqui ficas bem! – Afirmou Luz... Verificando o prazer de Pedro a admirar a paisagem... – E a renda é baratinha!

Pedro sorriu e gesticulou a cabeça em sinal afirmativo...

Os olhos claros de Luz pareciam acompanhá-lo no anteparo da vista... Admiração e zelo na forma de olhar e de falar... Cabelos louros e rosto imponente... Transparência alegre…

Radiante forma de se entregar às conversas feitas de palavras... Que com jogos de toques e de gestos mimosos... Escondia a carência do seu corpo... Irrequieto e refugiado debaixo daquele enorme vestido azul... Numa dança de pés... Aprisionados nas sandálias escancaradas que trazia... Num desassossego frenético e fogoso... Como quem ama a vida... E sobretudo... Os intervenientes que a compõem...

Luz despediu-se e Pedro agradeceu-lhe por tudo...

Em seguida... Ligou para o sindicato... Expôs a situação... Contudo... Do outro lado... Alguém registou e prometeu um contacto em breve... Parece que a doutora não estava...

António Pedro Santos

(Continua)...

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

II

O edifício era velho...

Um enorme portão verde separava o colégio do mundo de fora...

Do exterior... Não dava para perceber qual era a sua composição...

Pedro confirmou a morada e tocou o sino... Era esta a única campainha que existia...

De cigarro na mão... Eis que aparece uma senhora loura... Bem parecida e vestida...

- Bom dia! – Cumprimentou... Observando Pedro com atenção... – É o novo professor? – Perguntou... Enquanto abria o enorme portão verde...

- Sim... – Respondeu timidamente… Pensando para consigo… “Afinal... Apenas venho para uma entrevista de trabalho”... Mas enfim... Dispôs-se a alinhar...

- Faça favor... – Disse... Convidando-o a entrar naquele domicílio... – A directora está à sua espera! – Adiantou...

A mulher trazia um vestido azul claro e comprido... Combinação perfeita para com os seus olhos... Sapatos e brincos... Um ar muito fresco e animado para uma quarentona com muito bom aspecto...

- Pouse aqui a mala! – Sugeriu... Apontando com o dedo para um pequeno escritório que se encontrava à esquerda... – Escusa de andar carregado! – Acrescentou sorrindo...

Pedro agradeceu e sorriu também... Correspondendo àquela forma educada e bem disposta de receber...

Os olhos da senhora rejubilavam e ao mesmo tempo admiravam Pedro em todo o seu conjunto...

Estranha recepção... Ou melhor… Diferente… Afinal… Tanta importância e apreço...

- Venha comigo! – Aconselhou... Guiando-o na direcção de umas escadas...

Pelo caminho cruzaram-se com outra funcionária da escola... Trajada de bata e de avental... Talvez trabalhasse na cozinha...

- Este é o novo professor! – Informou... Apontando para Pedro e tocando-lhe no braço... Revelando alguns sinais de consolo...

A empregada do colégio... Talvez da mesma idade... Contudo... Com menos apresentação... Esboçou um sorriso consonante com o da sua colega... O professor cumprimentou-a e continuou o seu caminho... Seguindo a dita senhora...

As escadas largas eram compostas por dois lances... O primeiro mais curto do que o segundo... Na curva... Pedro olhou para baixo e constatou que a funcionária com quem se haviam cruzado... Chamara uma outra colega que agora o espreitava também...

Ao reparar na situação...A mulher que o acompanhava gracejou:

- Estas mulheres... Parece que nunca viram um homem! – Sorriu... – Só cá trabalham mulheres! Quando nos aparece um... Sabe como é! – Disse... Integrando-se no rol de curiosas... – Já agora... Como se chama? – Questionou... Descontinuando a marcha até ao primeiro andar...

- Pedro!

- Eu sou a Maria da Luz! Mas toda a gente me chama Luz!

- Bom dia! – Interrompeu uma voz feminina... Aproximando-se de Luz com curiosidade... De olhos arregalados e invasivos... Como que procurando arrancar alguma informação acerca daquela presença ali...

Imediatamente... Luz agarrou-o pelo braço e levou-o dali... Gritando:
- Mas vocês... Este é o novo professor!

A cabeça de Pedro estava um pouco confusa... Afinal... Para quem ia apenas para uma entrevista de emprego... Já estava dado como sendo o novo professor...

De braço dado... Cada vez mais próxima e íntima... Luz punha-se à vontade... Informando-o acerca das colegas... Das suas conversas e vontades...

- Isto é preciso muito cuidado com esta gente! – Avisava...

Pedro olhou para trás e contemplou o rosto da rapariga... Talvez trintona... Bastante magra e de cabelo aos caracóis... Atenta ao seu traseiro...

Luz levou-o para mais umas escadas... Muito mais apertadas e íngremes...

À medida que subiam... O pouco espaço apertava-os cada vez mais… Um de encontro ao outro... Até que esta largou Pedro e colocou-se à sua frente... Emanando todo o seu perfume agradável...

Na diferença de dois degraus... Pedro observou o seu rabo... Majestoso e azulado... Com uma cueca alaranjada por dentro...

Pelo caminho... Luz ia falando acerca do colégio e das colegas... Da amizade e camaradagem que ali se viviam... Das crianças e dos jovens... Enfim... Ele parecia demonstrar atenção... Porém... Não dava muito crédito ao facto de já ser um funcionário da casa... Teria de falar primeiro com quem mandava... Depois se veria... Na sua vida já tinha sofrido demasiados dissabores para se deixar ir em conversas...

No cimo existia uma pequena varanda interior que dava acesso a duas portas... Luz agarrou-o de novo e segredou ao seu ouvido:

- É aqui que está a directora...

Aquele segredo... Tão suave e baixo... Arrepiou-o... Luz percebeu e sorriu... Bateu à porta e gritou:

- Dona Filó!

- Entra Luz! – Respondeu uma voz rouca... Mais velha do que a que batera à porta... Todavia... Percebia-se alguma sensualidade na sua fala...

Luz colocou a cabeça dentro da sala e informou:

- Trago aqui o novo professor!

Após algum silêncio momentâneo... A porta abriu-se... E Luz entrou... Fazendo sinal para que Pedro fizesse o mesmo... Com um sorriso marcado pelos seus lindos olhos verdes... Ou seriam azuis?

- Bom dia senhor professor! – Saudou uma senhora que rapidamente se ergueu para o vir cumprimentar... Estendendo-lhe a mão...

Estatura baixa... Elegância magra... A mulher de cabelos castanhos pelas orelhas... Lisos e amadeixados por cores amareladas... Vestia de branco... Calça e blusa veraneante... Sandálias a condizer... Colar de retalhos tribal que lhe caía sobre o peito reduzido... De uma pele morena... Investia... Com um sorriso afável e olhos penetrantes... Uma jovialidade aparente... Bem distante da sua proximidade dos sessenta...

- Sente-se por favor... – Convidou... Reinstalando-se de novo na sua grande secretária... – Esta senhora é a doutora Júlia... A psicóloga do nosso colégio! – Apresentou... Apontando o dedo para uma rapariga... Que se encontrava sentada numa outra secretária... Em frente a um computador... Talvez da idade de Pedro...

Cumprimentou-se à distância com uma expressão facial...

A directora da escola observava Pedro olhos nos olhos... Como que... Avaliando a sua qualidade... Ou melhor... As suas capacidades...

Luz sentou-se ao lado da directora... Apoiando os cotovelos na mesa e as mãos na sua face... Aguardando...

Por seu lado... A psicóloga... Que já se havia levantado... Sentou-se do lado esquerdo de Dona Filó...

- Então... Senhor professor... – Iniciou a mesma... – De onde vem?

Pedro respondeu prontamente que vinha da margem sul do Tejo... E Luz interrompeu de imediato... Para informar que também tinha família lá por esses lados...

A directora torceu o nariz... Face à distância a que se encontrava da sua terra natal... Pedro percebeu-o e acrescentou:

- É um pouco longe... Mas já estou habituado! Afinal... Tenho andado de terra em terra!

- Eu sou alentejana! – Afirmou Luz... – E a doutora é de Viseu!

- Bem... – Interrompeu a directora... – Mas é sempre desagradável sair de casa! Eu tenho filhos e sei bem o que isso é!

A psicóloga olhava-o sem sorrisos... Já a directora e Luz pareciam bem mais afáveis...

- Ora... Senhor professor... – Iniciou a directora... Colocando os óculos procurando o seu nome no meu currículo vitae...

- Pedro! – Adiantou Luz... Olhando para o docente com cumplicidade...

- Professor Pedro... Quais são então as suas habilitações?

- Sou licenciado em ensino... – Respondeu Pedro... – Na área da educação física.

- Quantos anos tem de experiência? – Atalhou Júlia... Expondo a sua pronúncia do norte do país...

- Nos últimos quatro anos leccionei educação física em escolas do ministério da educação. – Informou Pedro... Olhando a psicóloga... Uma moça nova... Cabelos louros... Pele muito branca e deslavada... E de poucos sorrisos...

- Já deu aulas ao primeiro ciclo? – Interrogou a Dona Filó...

- Não... Ainda não! – Respondeu Pedro... Esfregando as mãos nas pernas... Disfarçando as manchas que ficaram da queda do autocarro... Intermediando o seu nervosismo com a coerência do seu discurso...

- Mas tem habilitação? – Contrapôs a mesma...

- Sim! Tenho!

O curso superior que Pedro concluíra... Era uma licenciatura em educação física... Porém... O mesmo conferia-lhe habilitação para a docência no primeiro ciclo do ensino básico...

Não fazia parte das suas ambições dar aulas na primária... Mas a instabilidade profissional das colocações do ministério da educação... E a precariedade do sistema nacional... Aliados à falta de dinheiro e tudo mais... Faziam-no arriscar...

- Quer trabalhar connosco? – Inquiriu a directora... Com um sorriso nos lábios...

- Quero!

A mesma sorriu e posteriormente falou um pouco acerca do colégio:

- Esta escola é um estabelecimento privado que atende alunos com necessidades educativas especiais... Desde há dez anos a esta parte...

Pedro estremeceu só de ouvir... Não fazia ideia... Nem tinha qualquer experiência no trabalho com deficientes... Ainda assim... Pensou… Que talvez lhe exigissem menos do que exigiriam se fossem alunos ditos normais... E para mais... Pedro precisava mesmo de trabalhar...

- Já trabalhou com este tipo de alunos? – Questionou a psicóloga... Com um ar agreste e de poucos amigos...

Pedro tinha de responder qualquer coisa... Nem que fosse mentira... Afinal... Ele precisava do dinheiro:

- Tive... Tive uma pequena experiência com este tipo de alunos durante o curso! Que gostei bastante e que foi enriquecedora para a minha formação profissional e pessoal.

A Dona Filó sorriu e perguntou:

- O que achou de trabalhar com esses miúdos?

- Foi uma experiência gira! – Exclamou Pedro... Com pouca certeza do que dizia...

A directora sorriu de novo...

- Diz aqui no seu currículo que tem experiência em desportos de combate... – Assegurou a psicóloga... Articulando palavras com uma sonoridade nortenha...

Pedro só se recordava de uma pequena acção de formação acerca de desportos de combate que fizera num dos últimos anos... Mas mesmo assim... Respondeu afirmativamente...

- É que sabe... Temos aqui alunos complicados! – Avisou... – Talvez lhes fizesse bem umas aulas de judo ou de karaté!

- Penso que sim! – Correspondeu Pedro... Demonstrando disponibilidade...

Luz estava embevecida com a conversa... Os seus olhos rejubilavam durante a conversação... A directora... Mais recatada... Mantinha-se numa posição mais observadora...

Durante alguns momentos trocaram-se palavras e frases acerca da educação... Falou-se da especificidade daquelas crianças... No trabalho árduo e na recompensa do mesmo... Exaltou-se a paixão e o carinho com que funcionários e alunos partilhavam... Nas dificuldades da sua integração na sociedade... Enfim... Para isso Pedro também tinha conversa que impressionasse...

- Ora bem... Vamos lá então... – Abreviou a directora... – O senhor professor deve ter mais do que fazer! – Exclamou a mesma... Talvez… No sentido de elevar a aura de Pedro… Menosprezando a sua própria importância e a da instituição... – Tenho para lhe oferecer um horário de vinte cinco horas... Para trabalhar com este tipo de alunos.

As suas palavras fluíam de uma forma lenta… Suave e pausada... Continuou:

- No período da manhã... O professor dará aulas de escolaridade… Depois do almoço faremos pequenos grupos para educação física e psicomotricidade... Já agora... Tem conhecimentos de psicomotricidade? – Questionou... Levantando os olhos do papel onde estava discriminado o horário...

Pedro engoliu em seco e objectou:

- Tive essa cadeira no curso! – Contudo... Dentro da sua cabeça cogitou: “Tenho de investigar um pouco acerca desta área”...

- Ainda bem! É uma área muito importante para o desenvolvimento destas crianças e jovens!

Luz continuava a contemplar o desempenho de Pedro com admiração... Já Júlia… Parecia bem mais convencida que há pouco... Dona Filó avançava:

- Quanto tempo de serviço tem?

Pedro tinha leccionado ao longo de quatro anos lectivos... Porém... Com a quantidade de horários incompletos... Na realidade nem chegavam a dois...

Depois de apresentar a situação... A directora explicou que tinha para ele o cargo de director pedagógico do estabelecimento de ensino... Pedro não sabia o que isso era... Todavia... Dona Filó explicou-lhe que não iria dar muito trabalho... E que as três ajudariam no que fosse necessário...

- O problema é que a legislação obriga-nos a ter alguém com dois anos de serviço completos! – Advertiu... – No mínimo!

- Pois... – Disse Pedro... – Só se fizermos as contas!

O ar um pouco mais descontraído... Do que há pouco... Deste novo candidato ao emprego... Contagiava as restantes pessoas que compunham aquele quadro pseudo aplicado... Que em seguida se desfizeram num sorriso...

“Oxalá batessem certo! As contas!”... Pensava Luz para si... Pedro sabia bem que não...

Depois de recorrerem à cópia do registo biográfico... Efectuaram as contas... Duzentos e sete dias... Mais duzentos e setenta e nove... Sessenta e seis dias com cento e dezassete...

- Um total de seiscentos e sessenta e nove dias de serviço! – Informou Júlia... Com certeza e convicção...

- Então dá! – Exclamou Luz... Abrindo os braços e afastando-os do seu rosto... Talvez sabendo que não... Ou… No sentido de dar alguma força à contratação...

Pedro abanou a cabeça e lembrou:

- São trezentos e sessenta e cinco dias vezes dois.

- Correspondente a dois anos completos! – Disse Luz... Acamando de novo as mãos na sua face... Como se estivesse em consonância com o assunto tratado...

Dona Filó... Continuava a olhar para o papel... Mordendo suavemente o lábio...

- Mas falta pouco? – Perguntou Júlia...

- Sessenta e um dias! – Afirmou a directora...

- Dois meses! – Gritou Luz... Em desolação...

Pedro abanou a cabeça... Desalentado pela falta de sorte... E por momentos... Naquele escritório... O silêncio imperou... Como se todos estivessem preocupados com a situação...

- Como soube deste colégio? – Interrogou a directora... Mudando de assunto...

Pedro informou que era uma prática comum... Sempre que mandava propostas de trabalho para qualquer instituição... Ia à lista telefónica e tirava moradas para posterior envio...

- Bem... O lugar é seu!– Atalhou Dona Filó...

Pedro rejubilou por dentro... Num arrepio de fulgor e de iluminação...

Contudo... Havia algo mais a tratar:

- Faz-me um contrato de trabalho?

- Este ano não! – Respondeu prontamente... – Talvez para o ano que vem! Tem recibos verdes?...

Pedro não queria trabalhar com recibos verdes... As regalias eram outras... Não havia décimo terceiro... Nem subsídio de férias... Enfim... Nem segurança... Quando não servisse podiam correr com ele...

Mas mesmo assim contrapôs:

- Terei de ver com sindicato... Porque não sei se dará para fazer contagem do tempo de serviço...

- É sindicalizado? – Perguntou a directora... Franzindo o sobrolho...

- Desde o início da minha carreira!

Dona Filó recostou-se para trás e arrumou os papéis... De braços esticados... Apoiou-se na mesa e refraseou:

- Então ficamos assim! Veja lá isso no seu sindicato e depois falamos! O lugar é seu de qualquer forma!

Pedro sorriu e comprometeu-se a verificar a situação... Porém... Queria ter ainda mais certezas e acrescentou:

- Quando me quer cá?

Dona Filó explicou-lhe que as aulas teriam início dentro de três semanas... Contudo... O trabalho de preparação do ano lectivo teria início dia um de Setembro... Ou seja... Dentro de poucos dias... Pedro predispôs-se a voltar no dia seguinte... Com a resposta do sindicato...

Em seguida... A directora sugeriu que Luz e Júlia o acompanhassem numa visita guiada pelo estabelecimento de ensino... Mesmo sem alunos... Pedro teria oportunidade de conhecer alguns dos cantos à casa...

António Pedro Santos

(Continua)...

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

I

Depois de receber o telefonema... Meteu-se ao caminho... Em direcção à costa...

Seria aí… Que iria para mais uma das inúmeras entrevistas de trabalho...

Uma colecção que Pedro conservava com tristeza na sua curta memória profissional... Um caminhar alternado... De escola em escola... De empresa em empresa... Associações e afins... Na verdade… Tudo servia... Desde que fosse no seu ramo... O ensino...

Ao chegar à cidade costeira... Ainda à entrada… O cheiro a mar e a peixe recordaram-lhe os seus tempos de estudante... Num outro burgo ainda mais principal... Uma capital de distrito com um rio que também desembocava no mar... Onde histórias de amor infrutíferas o deixaram nostálgico...

Dos amáveis laços de camaradagem... Guardava muito poucos... Porém... Prezava com apreço os ínfimos que ainda restavam...

Ao mesmo tempo... Recordava com mágoa o seu percurso académico... Um dos mais novos do curso… Dos primeiros a entrar... Bastante interventivo e ligado ao movimento associativo... Contudo... Distante das capas e das tradições naturais de um estudante comum... Enfim... Uma vítima das suas próprias acções contestatárias... Irreverentes e primárias… Como se quer para a altura…

Actividades à esquerda... Ainda que... Distantes de qualquer partido...

Operações que mudaram mentalidades num pequeno meio... Ou melhor... Agitaram-nas sem piedade... Face à insolência e descuido da maioria dos seus colegas... Numa falta de solidariedade a olhos vistos...

Estava a suar... Extenuado e cheio de sede... Contemplou a paisagem que se apresentava à sua frente...

Na sua cabeça... Disparavam imagens e emitiam-se conversas... Repetições passadas da vida de estudante... Beijos e segredos ao ouvido... Vozes doces e fragrâncias que ainda hoje o incendiavam... De velhas namoradas... Ou de mulheres que com ele se haviam cruzado... Histórias antigas de escolas... Onde tinha assumido pequenos horários... De muito trabalho e de grande precariedade... No riso dos colegas... Agora professores... Nos problemas dos mesmos... Que ao pé dos seus... Pareciam simples dissabores... Enfim... Cada um às suas...

Mas… Na verdade e naquele momento... O dinheiro contado que trazia... Parecia ser um problema de maior gravidade...

Procurou dar ao rosto uma imagem segura... Lembrou-se das palavras dos seus pais... Da família... Dos professores do curso... Dos colegas... E de todos aqueles que ainda hoje insistiam em tratá-lo como se fosse uma criança... Ou melhor… Um professor inexperiente... Mancebo na profissão e no saber... Mesmo depois de uma vida inteira a ouvir e a aprender... Com a gana... A vontade e a idade de todos aqueles... Que noutro e até no seu tempo... Foram figuras ímpares e de destaque na sociedade...

“Quem pensa você que é?”... Recordava melindrado… A eterna questão de um dos seus professores mais fascistas e castradores... “Não vê que se enterra?”... Avisava... Olhando-o com atenção...

“Não se esqueça que já nasci depois do 25 de Abril!”... Lembrava Pedro... Seguro dos seus ideais de liberdade…

O professor engolia em seco... Todavia... Sabia que no final lhe faria a folha... Sem dó e sem qualquer clemência... Com todo o prazer do mundo... Que um mandante preenche de poder... Um carcereiro... Somente para matar... Como se a vida alheia nada valesse...

Quando o autocarro parou... Pedro quis descer com a mala ao mesmo tempo que olhava a vista... Contudo... Desequilibrou-se e estatelou-se no chão da paragem da camioneta...

Um pé colocado em falso que o atraiçoou e deixou cair... A mala abriu-se...

Uma risada ecoou no ar...

Amável... Uma senhora de idade aprontou-se em ajudá-lo...

- Magoou-se? – Perguntou a mesma… Uma voz doce de um rosto enrugado pelo passar do tempo... Que o fez rememorar a sua avó quando o adormecia... Há muitos anos atrás... Um olhar meigo e preocupado... Como o dela... Que o tempo apagava aos poucos da sua memória... Cada vez mais pequena... Pelo passar de tanto tempo da sua morte...

- Obrigado! – Agradeceu Pedro... Sentando-se no chão...

- Aqui está a tua mala! – Exclamou um jovem que a trouxe... – Abriu-se! – Informou...

Pedro agradeceu e levantou-se... Sacudindo a sua roupa... Uma das melhores que tinha na sua económica colecção de trapos... 

- Olha... Até trouxe as cuequinhas! – Gritou um homem de dentro do autocarro... O condutor sorriu e perguntou:

- Está bem?

- Um pouco sujo! – Respondeu Pedro… Com alguma vergonha...

A senhora agarrou-o pelo braço e disse:

- Sente-se aqui no banco! Descanse um pouco... Tem a certeza que está bem?

- Está tudo bem! – Afirmou Pedro...

Todavia... O calor misturado com o odor pestilento do óleo da camioneta... Fizeram-no vacilar um pouco... Pareceu sentir-se tonto e revirou os olhos...

- Ajudem-me! – Gritou a senhora...

Os poucos segundos que apagou... Transportaram-no para o conforto da cama que deixara no seu quarto... À distância da casa dos seus pais...

Pedro estava deitado no banco da paragem do autocarro... Ao acordar... Uma frescura aliviava-lhe a quentura que sentia... A senhora de idade passava-lhe um lenço húmido na testa... No ambiente... O cheiro a livro fechado que a mesma exalava...

- Já está melhor? – Perguntou a mesma... Ladeada pelo jovem que trouxera a sua mala...

- Queres que chame o 112? – Questionou o rapaz... Já agarrado ao telemóvel...

- Nada disso!... – Respondeu Pedro... – Já estou bem! – Exclamou... Levantando-se e pegando na sua mala de mão...

A senhora amparou-o pelo braço e olhou-o nos olhos... Como que... Comprovando o seu estado de saúde plena...

- Tem a certeza de que está bem? – Insistiu... Contemplando-o bem fundo...

Pedro parou por uns instantes... Siderado naquele olhar... Meigo... Atento e preocupado... Uma raridade nos nossos dias... Uma ignóbil parte da vida... De um coração maior que o mundo... Que ali estava para auxiliar um semelhante... Com a ternura que se tem para com um amigo ou familiar...

Jamais esqueceria aquele olhar... Uma alma caridosa de uma humanidade maior...

- Esteja descansada. – Garantiu Pedro... – Está tudo bem... Obrigado aos dois!

- Já está melhorzito? – Gozou o homem de há pouco...

- Cale-se homem! – Gritou a velhota... – Nem veio ajudar! Será que não tem mais nada para fazer?

- Meta-se na sua vida mulher! – Retorquiu o homem... Já de pé num jeito ameaçador... Ainda assim… Dentro do autocarro...

Pedro olhou para cima e vociferou:

- Estás a falar com a tua mãe?

Ao constatar o ar irado de Pedro... O homem sentou-se... Efectuando um gesto de desdém com o braço...

O motorista fechou a porta e seguiu viagem... Encerrando a discussão com um sorriso no rosto...

Parado à beira da estrada... De semblante cansado... Visualizou o afastar de todos os que ali se encontravam... Do jovem que lhe guardara a mala religiosamente... E da senhora idosa que o havia tratado com benevolência e compaixão...

Jamais os esqueceria...

Com o olhar pesado... Restava agora... Dar de novo ao rosto… Uma imagem segura…

Por uns momentos… Fixou-se na contiguidade arquitetónica... Divagando por instantes… Nos paradoxos da vida e da conjuntura temporal... Paradigmas atrozes de uma sociedade feita à base de betão... Que aos poucos consumia as consciências amiudadas das gentes que naquela cidade habitavam...

António Pedro Santos

(Continua) ...

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

Introdução

A magia era contagiante... E isso reflectia-se nos olhares daqueles jovens... Que inebriados com o momento... Desfrutavam dele com emoção... Afinal... Era provavelmente a primeira vez que se afastavam dos seus pais e famílias... Somente acompanhados de colegas e alguns adultos...

Acampavam num parque... Onde a solidariedade e a participação nas tarefas eram essenciais...

Aqueles alunos nunca tinham acampado e a grande maioria... Raramente ia à praia ou tinha sequer um momento de lazer com as suas famílias... Inclusivamente... Para os funcionários da escola... Foi uma excelente experiência... O convivo e a partilha... Aproximaram-nos mais... A todos...

Pedro descobriu... Que até para os seus colegas... O campismo era uma novidade... Tirando o professor... Dora e Irene... E talvez Júlia... Os restantes... Nunca o tinham feito...

Enfim... É no fundo um momento diferente... Onde se dorme no chão com poucas mordomias... A higiene e as necessidades são feitas num balneário comum... Separado por sexos... A comida é partilhada e não existem tecnologias como... Computadores ou televisões... Ao mesmo tempo... Os alunos são mais fortes... Mais próximos e iguais... As diferenças notam-se... Mas... São mais difíceis de ver... Todos têm funções definidas e procuram cumpri-las...

Pedro contempla aquele cenário e sorri... Com uma sensação de dever cumprido... Ou melhor... Quase... Até porque... O ideal de perfeição requer ainda mais trabalho e empenho... Maiores condições e recursos... Ainda assim... Face às adversidades e contradições... O professor está satisfeito com os resultados... E sorri de novo...

Ainda assim... Recorda-se como foi difícil preparar aqueles dias de campismo... Convencer pais e colegas... Sim.. Porque os alunos... Esses... Estavam mais que prontos... Embora... Não conhecessem a realidade da coisa...

Naquela reunião em que propôs realizar uma visita de estudo a um parque de campismo local... Ou melhor... Próximo... Pois ficava apenas a cinco ou seis quilómetros de distância do colégio... Muita gente levantou problemas e indignações... A verdade... É que o docente as conseguiu contornar...

A directora... Que esteve sempre com ele... Encorajou-o... Júlia e Martinha... Dora e Irene... E até Carla... Dispuseram-se a ajudar na organização do passeio... Luz... Ofereceu-se para fazer alguns telefonemas e tratar da parte logística... Telma e Leontina colocaram-se à disposição... Bela... Arfava... Elevando o sobrolho... Deserta... Provavelmente para soltar um palavrão... Quanto a preta... Apenas perguntava o que poderia fazer para ajudar...

Como sempre... Elisa e Saudade... Alertavam para os perigos e sobretudo para a enorme responsabilidade de tê-los a cargo...

- Não sentem essa responsabilidade?... – Argumentou Pedro... – Diariamente?...

Todos se calaram...

A directora escutava-o... Com aquele leve sorriso positivo... Que a caracterizava... E Luz mostrava algum orgulho... Pelas suas palavras e poder de argumentação... Leontina piscou-lhe um dos olhos... Bela soltou uma gargalhada seca... E mordeu o lábio... Para não soltar nenhuma obscenidade... Preta olhou-a com desdém... Abanando a cabeça em sinal de negação...

- Mas... Temos dinheiro para isso? – Questionou Elisa... Em busca de qualquer sinal de fraqueza...

Pedro sorriu... E explicou-lhe... A ela e aos restantes... Que este... Era o momento de aplicar o dinheiro que se foi juntando ao longo do ano lectivo... E que Luz... Religiosamente guardara...

Aquele que foi conseguido com a venda de jornais... Bolos e chás... Compotas... Licores... A verdade é que... O próprio professor... Que estruturara a escola e organizara todo o projecto... Atrapalhou-se ao explanar todas as actividades que foram tão produtivas para os alunos e lucrativas para a escola... Mas... Também não era necessário... Afinal... O trabalho estava à vista... Aos olhos de todos...

O professor pediu voluntários para passar duas noites fora...

Conseguiu a terapeuta da fala para uma noite... Pois Carla... Tinha uma consulta no segundo dia... Bem como Júlia e Martinha... Dora e Irene... Já davam seis...

Telma preparou-se para falar... Mas gaguejou... Como sempre... E Saudade antecipou-se... Perguntando:

- E nós?... Não trabalhamos?

Pedro sabia que nem todos os pais autorizariam a ida à visita de estudo... Isto é... Passar as duas noites fora... Numa tenda de campismo...

Até para os adultos estava a parecer complicado...

Contudo... Estava certo que permitiriam que os seus educandos fossem à praia... Assim sendo... Os restantes funcionários iriam ter à praia com os alunos que não poderiam acampar... Ou aqueles com maiores limitações...

Pedro sugeriu que fossem à praia apenas de manhã... Todos concordaram... No fundo... O professor já sabia que nenhum aluno da sala de estimulação global I iria... Assim como... Sarita... Hélio e Zé... Tatiana... Os clones... Sónia e Andreia... Enfim... Estes eram alunos com necessidades maiores que os restantes... Alguns não controlavam os esfíncteres... Outros tinham uma alimentação própria e medicação específica... Para além disto... Revelavam problemas emocionais... Distúrbios e transtornos que poderiam dificultar essa experiência...

Ainda assim... A ida a praia e o convívio com os demais... Poderiam ser um indicador para o futuro... Quiçá amanhã... Quem sabe...

Luz fez contactos com o parque de campismo... Expôs a situação... Jovens deficientes... Oriundos de famílias com poucos recursos financeiros... A ideia era conseguir um desconto...

- A estadia é grátis! – Exclamou Pedro contente... Informando os restantes colega e atribuindo todos os louros ao esforço de Luz... Que com o seu poder persuasivo conseguiu que os alunos beneficiassem da estada... Inteiramente oferecida pelo parque...

A sua colega corou com os elogios do professor... E logo um burburinho se instalou na sala... Misturado com as atitudes de espalhafato do costume...

As autorizações fizeram-se e foram assinadas pelos encarregados de educação...

- Mas e as tendas? – Inquiriu Elisa... Em busca... Quem sabe... De algum podre do projecto...

Pedro sorriu... Mas desta vez... Foi Júlia quem falou... Explicando que com dois toldos atados às árvores se faria uma enorme tenda... Os alunos apenas levariam sacos de cama... Os que não tivessem... Levariam um cobertor... Todavia... Pedro acrescentou... Que no dia da partida... Se verificariam os materiais... Previamente solicitados aos pais... Como... Produtos de higiene... Roupas e outras coisas... A fim de providenciar algumas faltas... Não fosse este... Um projecto de partilha e de solidariedade... Visando a vida comunitária e o desenvolvimento de autonomia...

Pedro sorria... Enquanto recordava a reunião... Olhando os alunos a interagir junto às tendas... Aguardando a passagem da digestão para regressarem à praia... Completamente soltos... Livres e puros...

- Professor! – Exclamou Ramos de braços cruzados... Em tronco nu... Com os calções demasiado puxados para cima... – Parecem maluquinhos! – Acrescentou... Batendo com o dedo na testa...

Bebé brincava com uma bola colorida... Atirando-a ao ar... Com Pedro no bolso... Afinal... Sempre inseparável... Completamente descalço e despido da cintura pra cima... De cabelos despenteados... Bem diferentes e mais gastos...

Carlos jogava às cartas com Luís... Roberto e Patrícia... Esta última... Sempre rodeada de Cláudia e Rosa...

Parecia correr bem o jogo... Pelo menos estavam empolgados...

Próximo destes... Carrapito ria de alguma brincadeira de Filipe... Que segurava o seu enorme lápis amarelo... De cara risonha e matreira... Por contágio... Cristina ria também... Dizendo para si própria:

- O que foi Cristina?... Rum... Rum... Ai! Ai! Cristina... Rum... Rum... – Dizia... descompondo-se a si própria e rindo desalmadamente...

Dora e Irene... Contavam anedotas... Quase juntas e ao mesmo tempo... Como se fossem gémeas... Escarnecendo e encenando situações... Com exagero da própria realidade da coisa...

Lá estava Virgílio... Arreganhando os dentes e contraindo o pescoço... Numa estereotipia frequente... Assim como Samuel... Ronaldo e Sarita... Que afinal... Se conseguiu que fosse...

“Ainda bem”... Pensou Pedro para si...

Bem como Ana... Completamente muda... Júlia e Carla... Que gozavam da prestação das colegas... Completamente animadas e dotadas em fazer rir...

Ali perto... Angela e Maura... Contemplavam o professor... Com alguma vergonha... Já... Raquel e Fábio... Bem agarrados e enamorados... Como sempre... Mas por pouco tempo...

João jogava raquetes com Bruninho... Ou melhor... Tentavam...

Religiosamente... João servia a bola... À qual... O colega permanecia imóvel e frustrado...

Com calma... João apanhava a bola e servia de novo... De vez em quando dizia com a voz trémula:

- Então... Bruninho?... Não vês a bola?...

Frustrado... Bruninho baixava a cabeça... Rodando os olhos para cima... Como um animal clamando por piedade...

- Não faz mal! – Dizia João... Deslocando-se para a bola... Apanhando-a do chão e servindo outra vez...

Ramos encarava de novo Pedro... Rodando de novo o dedo na testa...

Um pouco afastado... Estava Teófilo a ler um livro... Ao seu lado... Ilda comunicava com vontade e audácia... Num monólogo que este nem dava importância... Talvez estivesse desligado mesmo... Com a sua capacidade natural de... Simplesmente apagar... Mas... Ilda continuava... Sem se importar... Divagando na conversa... Formulando perguntas e dando as respostas... Gargalhando com prazer...

- Parecem maluquinhos! – Exclamou Ramos... Fanhoso e sorridente... Procurando integrar o mundo dos adultos através da proximidade com Pedro... – Fugiram do hospício!... Loucura!... Loucura!... – Repetiu... Oscilando o dedo na testa... – Loucura!...

António Pedro Santos 

(Continua) ...