XXI
A semana reiniciou-se outra vez…
Do acordar até ao café... Passando pela cigarrada matinal... Culminando com a chegada ao colégio...
Recanto esquecido... Hospício de loucos... Antro de doidos varridos... Resíduos de uma lavagem atroz da sociedade... Segregadora e vil... Num depositário socialmente correcto para todos aqueles que julgam ter o dom de seleccionar e desmembrar…
Pedro olhou-os e observou-os com atenção... Desde a porta de entrada…
Outros olhos pareciam visualizar a coisa... Contemplando o quadro de imagens... Coloridas e sonoras... Onde o movimento apagava o tempo... Num reflexo profundo de eternidade plena... E pura...
Nas conversas sem sentido... Pareceu ver calorosas abordagens impolutas... De carinho e carecendo de atenção... Num revitalizar de auto estima... Ou enlevar de afeição...
Ramos afiava o lápis... Para não variar... Samuel coçava a cabeça... Olhando Pedro de esguelha... Bebé parecia ver algo na parede... Junto ao velho quadro preto... Enquanto Carrapito ajudava Filipe a preparar as coisas... Sem o professor ver... Passeando a mão imunda de saliva... Do caderno para a boca… Da boca para o caderno…
Subitamente... Sentiu um beijo molhado no braço... Ao voltar-se… Bebé já fugia em direcção à sua mesa... Rindo e correndo a grandes passadas…
Impávida e quase completamente alheia... Cristina perguntou:
- Para que foi isso? Rum... Rum...
- Cala-te! – Ordenou Bebé... Num sussurro mais alto... Enquanto preparava a mesa... Organizando paulatinamente os lápis... As canetas e a régua... Também lá estava um boneco... Devidamente sentado... Um ken da barbie…
O novo professor agarrou nele e olhou-o... Bebé colocou-se ao seu lado apoiando-se no braço...
- Sim senhora! – Exclamou Pedro... – Um boneco todo giro!
A aluna concordou... Apontando para as calças... Sapatos pretos… Blusa vermelha e para o penteado armado….
O professor perguntou qual era o nome do boneco...
- Pedro! – Disse... Tartameleando baixinho...
O docente sorriu e a aluna também…
Ainda houve tempo para mais um abraço e um beijo… Posteriormente… Recuperou o boneco hirto e estático... E sentou-se no seu lugar... Penteando-o docemente...
- Então... O que foi Bebé?... Rum... Rum... – Questionou Cristina... Arrastando a voz... – Que se passa?... Ai! Ai!
Bebé mandou calar a colega de imediato... Chamando-a ainda… De parva... Porém... Como falava baixo demais... Quase ninguém ouviu…
Para disfarçar... Pedro repetiu os “ais” de Cristina... Acompanhado pelos alunos…
Rapidamente... A sala transformou-se num auditório…
De régua na mão... Ou melhor... De batuta... Pedro orientou aqueles músicos numa ária monumental... Fazendo sinais de silêncio… Onde teriam de fazer uma pausa e calar-se... Aumentando e diminuindo a altitude do som... Numa orquestra de “ais” repetidos insistentemente...
Numa sinfonia de loucos… Pedro gesticulava-se expressivamente... Como um maestro endiabrado que sabia o que fazia... Violinos e violoncelos... Celebravam num agrupamento instrumental de música erudita... Cordas... Madeiras... Metais... Percussão e teclas… Numa orquestra de câmara.... Desalinhada e sem rumo... Guerra de fagotes... Oboés e flautas... Harpas e trompetes desconexos e descompostos... Cravos... Pianos e órgãos... Vincados por caixas... Tímpanos e triângulos... Mediados por um enorme contrabaixo... Que assaltado pelo trombone... Foge da flauta e do sentido... Grito grave da tuba... De desalento e de emoção…
O maestro avisa que vai acabar... Carrapito prepara-se para bater os pratos... Atenta... Bebé insiste no violino... Pedro faz o sinal do fim... Todos param... À excepção de Filipe... Que continua com um enorme e estóico “ai”...
Os aplausos apregoaram no ar... De emoção… De adrenalina… E são os próprios músicos... Que eufóricos com o seu desempenho... Batem as palmas numa ode ao dever cumprido... Num misto de loucura e de entusiasmo...
Inesperadamente... Pedro sente o calor de umas mãos... Que lhe cerram os olhos... Conhecendo o cheiro a perfume abusado... O professor... Agarra as mãos com ternura... E diz:
- Com estas mãos macias... Hum... Quem será?
Os alunos gritaram pelo nome... Todavia... Pedro pareceu não os querer ouvir... Optando por cheirar parte delas...
- Que perfume tão bom! – Declarou...
Nisto… Desceu suavemente as suas mãos... Deixando que estas tocassem nos lábios... E voltou-se para trás…
Leontina sorria... De lábios carnudos... Rosto claro e grande... Demasiadamente bem desenhado... Enfim… Uma mulher perfeita... Para a idade que carregava... Ainda que... Não parecesse de facto…
O professor segurou nas suas mãos e afastou-a de si... Contemplando-a com malandrice...
- Estás linda! – Afirmou... Beijando-a nas duas faces... Num cumprimento delicioso e deveras demorado...
Os alunos contemplaram a situação... Soltando palavras de observação e de incentivo... Animados... Pareciam assistir a mais um capítulo de uma novela da quatro... Mais quente e interessante...
Leontina agradeceu e efectuou um esboço enorme que lhe atravessou a face... Os seus olhos riscaram-se e realçaram a sua beleza... Deu duas voltas sedutoras de braços abertos... A saia clara rodou... Num entremostrar de prazer... Oculto e proibido... Peito vasto e pontiagudo... Apertado na blusa de alças... Bem à vista… Bem aceso…
Afastou-se... Enviando-lhe um beijo à distância...
- A Leontina é casada! – Informou Samuel... Olhando-o... Como que avisando...
O professor sorriu...
Às seis da tarde seria a reunião... Ainda houve tempo para mais um café e um cigarro...
A maior parte dos funcionários estava no café... À excepção de Leontina que ainda fazia a distribuição dos alunos pelas suas casas... Ou perto delas...
- O que será que ela nos quer! – Desabafou Elisa... Referindo-se a Dona Filó... Num desabafo de enjoo... Enquanto se preparava para beber a sua meia de leite clarinha...
- Até parece que nunca foste a uma reunião geral! – Exclamou Luz... Apoiada na mesa... Bafejando o seu cigarro... E olhando-a com surpresa... Apontando-lhe os seus olhos dilúcidos...
- Deve ter a ver com o plano de actividades... – Sugeriu Júlia... Pronunciando as palavras ao jeito do norte... Olhando para Pedro... Como que esperando por uma confirmação...
O professor acrescentou ainda... Que para além do plano de actividades... Estariam outras coisas em cima da mesa... Como… O projecto educativo... A rotação dos recursos espaciais e humanos... Enfim... Subitamente... Entrou-se numa conversa de desagrado... Onde cada uma delas começou a sugerir problemas e situações... Impossibilitando e inviabilizando todo o processo...
Luz tocou com a perna em Pedro... Avisando-o da situação contestatária que ali se vivia…
Esta estava sentada num sofá de parede... Bem ao lado do professor que estava numa cadeira…
Luz... Sempre imponente... De vestido azul claro... Quase sem cor... Cabelos louros e brincos a condizer... Sandália discreta nos pés morenos do sol… Cheiro perfumado que atentava a um encosto e a uma aproximação…
Ao longe... Bela e Preta... Pareciam comentar o que viam... Prudentemente e sem levantar ondas…
Luz fitou-as... Sorrindo de um jeito repressivo...
Carla e Martinha pareciam conversar acerca de outro assunto... Qualquer coisa relacionada com alguém que conheciam em comum...
- Era bom que se resolvesse a situação da sala! – Afirmou Telma... Um pouco a medo...
- Qual situação? – Perguntou Luz...
Telma já não conseguiu terminar... Gaguejando palavras perdidas e sem sentido...
- E a dos almoços! – Disse Saudade... Elevando o tom da sua voz... Como que afirmando uma posição de seriedade e de afirmação...
- Qual situação? – Repetiu Luz... De cigarro na mão... Olhando para Pedro… De forma que este a visse...
Entretanto... Irene e Dora... Também entraram na conversa... Expondo a falta de material... Os atrasos das carrinhas... A falta de capacidades dos alunos para realizar determinado tipo de tarefas… Em suma… Gerou-se uma troca de palavras... Divididas entre três ou quatro mesas... Daquele estreito café... Onde Preta e Bela ainda lançavam achas de longe... Completamente alheadas do que ali se passava... Alternadas com os gritos estéricos da educadora Elisa... O gaguejo de Telma e a falta de nível de Saudade..
Júlia explicava a Irene e a Dora alguns dos pormenores que tinham ficado estabelecidos para as oficinas desde o final do ano lectivo passado... Martinha e a terapeuta da fala... Comentavam a situação…
Distante... Bela já arremessava palavrões em crescendo... Luz olhava Pedro com cumplicidade... Bafejando o seu cigarro com doçura e prazer... Cerrando parte dos olhos e ajeitando os lábios de um modo sensual... Até que disse para todos:
- Daqui a pouco... Na reunião! Quero ver o que dizem!
Imediatamente... O silêncio instalou-se... Ninguém disse mais nada e nem sequer mudaram de assunto... Pedro constatou o silêncio com estranheza...
- O que vocês querem sei eu! – Gritou Bela ao longe... Fazendo um gesto grosseiro com o braço e mordendo a língua... Completamente desalterada...
Elisa olhou-a com raiva... Sem dizer uma palavra...
Aos poucos... As pessoas foram-se levantando e saindo em direcção ao colégio...
Já na reunião… Dona Filó estava sentada na grande mesa do escritório… Olhando uns papeis… Enquanto os funcionários se iam instalando desorganizadamente… Revelando alguma impaciência…
- Vamos lá meninas! – Disse a directora… - Sempre a mesma coisa!
Luz fez um sinal a Pedro… Que ainda se encontrava de pé… Para que se sentasse na mesa principal… Ao lado de Dona Filó…
- Como está senhor professor? – Cumprimentou a directora… Olhando-o por cima dos óculos e esboçando um sorriso simpático…
Pedro sorriu também e efectuou um gesto assertório e consonante com a sua saudação...
A directora deu início à reunião… Retirando os óculos e olhando em redor... Evocando o prestígio da escola e a sua missão... Atender as crianças diferentes com a máxima qualidade possível... Trabalhando em equipa no sentido de superar as dificuldades e os obstáculos que sempre aparecem…
Algumas das colegas de Pedro sopravam… Como que expressando repúdio pela conversa… Assim como… Algum desmazelo e falta de educação...
Dona Filó percebeu-o… Contudo… Prosseguiu o discurso com classe... Sem se deixar intimidar pelos olhares e segredinhos… Acrescentando:
- Gostaria que o nosso director pedagógico falasse um pouco acerca do que delineou para este ano lectivo… Sei que tem andado a trabalhar nisso… Não se importa professor Pedro? – Disse…Convidando-o a falar perante as colegas de trabalho... Olhando-o com confiança e admiração...
Subitamente… Todas aquelas mulheres o fixaram… Avaliando o seu estado de espírito… Nervoso e algo inseguro…
O professor engoliu em seco e avançou…
- Fui incumbido de fazer alguns documentos que servirão de suporte e de apoio às actividades lectivas deste colégio… Como tal… Debrucei-me primeiramente no projecto educativo… Um documento que visa delinear metas e objectivos principais para esta escola e consequentemente para os seus alunos… - De queixo erguido… O professor contemplava as colegas de ponta a ponta… Assim como Luz e a directora… Esta última… Agitando a cabeça… Como que embevecida pelas suas palavras… - De qualquer forma… - Continuou… - Tive a oportunidade e o prazer de estar com todos os alunos… Analisei as suas maiores dificuldades… Assim como… As suas maiores necessidades… Realizei fichas diagnosticas e tenho estado a aplicar baterias de testes… No sentido de os conhecer melhor para os poder enquadrar nos grupos de trabalho… Para além disto… Conhecê-los um pouco… Significou ter bases para melhor definir os propósitos do projecto… - As colegas continuaram a olhá-lo com atenção... Pedro sentiu-se mais seguro e persistiu:
- O projecto está feito… E prende-se com a formação pessoal dos alunos… Ao nível académico… Motor e sócio afectivo… Desenvolvendo a autonomia pessoal e social e promovendo a auto estima… No sentido de uma transição para a vida activa consertada e eficaz.
Em silêncio… Colegas e directora escutavam-no atentas…
- Escolhi como tema do projecto educativo... “Formação pessoal e transição para a vida activa”… Todavia… Gostaria de deixar um pouco à vossa consideração…
- Parece-me um bom tema! – Concordou Dona Filó… De sorriso feito… - Fico contente de o ouvir falar assim… Compenetrado e profundamente inteirado dos problemas destes nossos jovens alunos!
Algumas das colegas abanaram positivamente a cabeça…
Leontina e Luz entremostraram um grande sorriso… Como se fizessem parte daquele pequeno sucesso… Pedro sentiu-se ainda mais forte... E avançou:
- Relativamente ao plano de actividades... E como já disse anteriormente... Penso que seria pertinente prepararmos estes alunos para o futuro!... Desta forma... Poderíamos estruturar actividades de carácter vocacional!
- De carácter quê? – Perguntou Dora... Boquiaberta e estranhamente surpresa...
O professor efectuou um pequeno compasso de espera e prosseguiu com a sua argumentação:
- Isto é... A ideia seria conseguirmos criar pequenos grupos de alunos... Onde estes desenvolveriam actividades pré profissionais... Formativas e sensibilizadoras... No sentido de conhecer aptidões e sondar vocações nos alunos… Através do ensino de novas competências relacionadas com uma actividade profissional.
- Deixa ver se eu percebi! – Interrompeu Martinha... Elevando a voz... – Fazer formação aqui no colégio?
Pedro efectuou um gesto parcialmente consonante com a pergunta...
- Mas... Não temos recursos! – Exclamou Saudade... Aparentemente indignada...
- E como se faz? – Questionou Elisa... A educadora... Atalhando a conversa...
- Deixa-o explicar! – Gritou Luz... Colocando ordem na sala...
O professor respirou fundo e olhou Dona Filó... Que permanecia tranquila e atenta ao seu discurso... Transmitindo-lhe apoio...
- A minha ideia seria aproveitar as sextas-feiras. Pelo menos no começo... E posteriormente estender a outros dias...
- Mas como? – Interrompeu de novo a educadora... Nervosa e num tom descontinuado e pouco ordeiro... – Estes miúdos são especiais!
- Posso continuar? – Pediu Pedro... Subindo a voz e olhando-a de frente...
Elisa pareceu amedrontar-se e recolheu-se... Assim como algumas colegas que estavam por perto... Luz e Leontina pareceram gostar da atitude... E a directora manteve o mesmo sorriso brando...
- Tive oportunidade de conhecer os alunos... Contactei com todos e já inventariei algumas das suas dificuldades… Para além disso... Reconheço neles algumas capacidades que podem e devem ser estimuladas! – Pedro realizou uma pequena pausa para contemplar os presentes de ponta a ponta... - Especiais somos todos!... E diferentes também!
- Todos diferentes... Todos iguais! – Brincou Irene... Repetindo um slogan publicitário de uma campanha humanitária...
Todos riram... Óptimo para quebrar o gelo...
- Mas o que podem fazer estes alunos senhor professor? – Indagou Dona Filó... Revelando curiosidade e interesse...
- Era isso que eu ia explicar... Se concordarem... Esboçarei um plano de acção que contemple áreas vocacionais internas e externas… Ou seja... Umas dinamizadas na escola... Outras fora desta.
Júlia preparou-se para falar... Mas... Pedro parou-a com um gesto da mão... E acrescentou:
- Nas áreas vocacionais internas... Poderíamos colocar alunos a auxiliar no refeitório... Na portaria... Nas fotocópias... A ajudar na limpeza deste espaço... A reconstruir e reparar materiais... Podemos aproveitar a cerâmica e a pintura como áreas vocacionais também! – Disse... Olhando para as colegas das oficinas... Irene e Dora...
- Como? – Interpelou Irene surpresa e talvez pouco satisfeita por Pedro se estar a meter na sua área...
Gerou-se um burburinho... Onde todos participaram desconjuntadamente... O professor olhou em redor e não falou...
- Meninas! Deixem ouvir o senhor professor! – Ordenou Dona Filó... Cerrando os olhos e ascendendo a voz…
Toda a gente se calou...
- Já comecei a elaborar um pequeno currículo para cada área vocacional... Algo que contemple os objectivos gerais e específicos... Assim como os recursos e os alunos implicados.
- Mas... Serão todos? – Interrogou Telma... Gaguejando...
- O objectivo seria colocar o maior número possível de alunos! É claro que não poderão ser todos! – Confessou... - Contudo... Deveremos escolher os mais capazes e até quem sabe... Fazer com que estes beneficiem de duas ou mais áreas vocacionais… Para que possamos conhecer as suas preferências... Isto é... Descobrir aquelas em que eles têm mais jeito e as que mais gostam.
- E as que são fora? – Inquiriu Júlia... Com algumas dúvidas...
Pedro torceu o nariz e fechou um dos olhos... Todavia... Destacou:
- Teremos de procurar empresas privadas e instituições locais… Como... A câmara municipal... A junta de freguesia... Centro de emprego e outros... Realizar com eles protocolos de cooperação e de colaboração.
- Falar é fácil! – Embargou Elisa... – Mas...
- Posso acabar?
Luz e Leontina sorriram de novo... Enquanto o professor olhou de frente a educadora...
- Estes parceiros... Receberiam alunos... Uma ou duas vezes por semana… Uma manhã ou uma tarde... Ou apenas algumas horas... Para desenvolverem actividades de formação em contexto de trabalho!... Procurando áreas de interesse... Dentro das capacidades destes... Para integrarem uma formação pré profissionalizante!
O murmurinho reinstalou-se... Todavia... Pairavam algumas ideias no ar…
Embevecidas... Luz e Leontina olhavam-no com afeição... Por seu lado… Dona Filó abanava continuamente a cabeça... Parecendo concordar com a situação...
- Tens alguma ideia para seleccionar as actividades consoante o aluno? – Indagou Júlia... Revelando alguma curiosidade...
- Tinha ideia de proporcionar aos alunos mais que uma área vocacional… Desta forma... Teriam a oportunidade de experimentar... E nós de os sondar e de os conhecer… – Pedro reflectiu e parou um pouco... – Posteriormente... E de acordo com os protocolos que estabelecêssemos... Elaboraríamos uma área vocacional externa à medida das necessidades... Capacidades e interesses de cada aluno.
- Isto a falar... – Meteu-se Elisa... – Na prática não é bem assim! – Vociferou... Desenhando um sorriso de certeza... Como quem aprecia a desgraça dos outros... Enfim... Um hino ao conformismo e à oposição constante...
- Que grupos propunha? Senhor professor... – Questionou a directora... Revelando interesse pelo assunto...
O docente sorriu e acrescentou... Guiando-se pelas folhas de papel que trazia:
- Ao invés de falar de grupos... Pelo menos para já... Preferia falar de áreas vocacionais. Assim sendo... Teríamos… A culinária e o refeitório... A portaria... O escritório... A limpeza dos espaços... A reparação e manutenção dos mesmos... A cerâmica e a pintura... E porque não a carpintaria? – Perguntou… Irene e Dora pareceram concordar… - Entre outros… Tudo isto depende do que possamos dar e da contribuição de todos os recursos humanos desta instituição.
- Quem controla as actividades? – Interrompeu Elisa... Elevando a voz em destempero total... - Quem as promove?... Quem as regula? Quem é o responsável?
Pedro olhou-a… Exausto das suas tentativas de embargo... E contemplou-a por momentos... Elisa pareceu tremer por dentro... O professor modificou a feição e argumentou:
- Farei um currículo próprio para cada uma delas… Poderei ficar com essa responsabilidade… De supervisão... Apoio e avaliação do processo… Contudo... Gostaria de contar com uma ajuda mais directa da vossa parte.
Na sua maioria... As colegas manifestaram-se afirmativamente... Mostrando interesse em colaborar…
Júlia... Carla e Martinha... Começaram a conversar entre si... Partilhando ao mesmo tempo com os restantes algumas ideias de implementação do projecto... Irene... Dora e Telma... Também falavam…
Saudade e Elisa pareciam ser as únicas a apresentar e mencionar as dificuldades... Se bem que a primeira... Mudava de posição aos poucos... Levada por Luz que as tentava dissuadir à força…
- Mas... Que grupos propunha? – Insistiu Dona Filó...
- Primeiramente… Gostaria de formar um grupo ligado à limpeza do espaço! - As colegas pareceram admirar-se… Mas… Deixaram-no continuar: - A Maura e a Raquel… A Angela e a Sarita… A Ilda e a Ana… - Disse recorrendo a uma cábula… - Em grupos de dois… Inicialmente às sextas-feiras… Limpariam o pátio… A sala de convívio e algumas salas.
- Crianças a limpar salas? – Interrompeu Elisa atónita…
- Não são crianças! – Exclamou Pedro…
- Está bem… Mas ainda assim… São deficientes!
- Somos todos! – Respondeu…
As colegas riram e gerou-se mais um estardalhaço que parecia querer desviar a conversa… Dona Filó pediu que se calassem e que escutassem o professor…
- Não as quero na minha sala! – Exclamou Júlia… - Tenho lá coisas bastante importantes!
- Na minha também não! – Disse Elisa… Olhando para Telma… Procurando apoio… - E quem é que as ajuda? – Insistiu…
- Não faz mal! – Falou Pedro… - Há muito para fazer… Limpam a minha sala… O ginásio… A sala de convívio e o pátio!... Não há problema!
Elisa calou-se… E o docente continuou:
- Falarei com Bela para as supervisionar ao início! Tenho a certeza de que nos ajudará!
Pedro já tinha falado previamente com Bela acerca do assunto… Sabia que estava à vontade…
- Depois tenho uma proposta de grupo… - Avançou… Olhando de novo para o papel… - Que auxiliará no refeitório… Na preparação dos lanches da manhã e da tarde… A servir os pratos ao almoço… Ajudar na limpeza das mesas e do chão do refeitório… Entre outros…
As colegas olharam-no…
- Também já falei com a cozinheira! – Disse… Mirando Elisa com um ar de gozo…
Luz e Leontina… E até Dona Filó sorriram… Nitidamente se percebia que a educadora estava do contra... Numa posição de insistentemente crítica... Porém... Pouco sustentada e talvez estúpida...
- Por fim... Tenho ideia de colocar a Rosa a ajudar numa sala!
- Isto é o cúmulo! – Interrompeu Saudade... Nervosíssima...
- Ela não pode fazer o que fazemos! – Exclamou Telma revoltada...
Elisa abanava a cabeça... De olhos cerrados... Completamente incrédula com a situação…
Descrente estava o professor... Com a atitude das suas colegas... Mas mesmo assim avançou:
- Obviamente que não fará o que vocês fazem! Nem é essa a ideia... – Justificou... – A responsabilidade será para quem lá está!... Estamos a falar de pequenos trabalhos… Nomeadamente... Brincar com os alunos... Ajudá-los e colaborar na sua educação…
- Na sua educação? – Interrogou Elisa possessa... – Deficientes a cuidar de outros!
- Como trabalhas na educação especial sem acreditar no que fazes? – Inquiriu Pedro elevando a voz...
Elisa tentou falar... Mas o professor não deixou e insistiu:
– Se não acreditas nestes miúdos... Estarás apenas a ocupá-los ou a entretê-los... Isto não deve ser um depositário! Deve ser uma escola! – Argumentou... Fazendo com que fosse o único senhor da palavra naquela sala... – Proporcionar um ensino de qualidade... Que envolva transmissão e aquisição de competências! Centrado no aluno e na sua inclusão social!
- Concordo plenamente! – Afirmou Dona Filó... Com bastante tranquilidade... – E devo dizer-lhe que estou muito satisfeita com o seu projecto! – Acrescentou… Desenhando um sorriso leve...
- Mas ainda há mais... – Avisou...
As restantes pessoas... Pareciam agora mais consonantes face à intervenção abonatória da directora...
- O que tens mais? – Perguntou Martinha curiosa...
O professor sugeriu que o Teófilo passasse a realizar algum trabalho informático... Uma vez que possuía alguma motivação e jeito... Trabalhos básicos... Como... A ementa do refeitório... Listas de alunos... Tabelas... Isto é... Uma ajuda útil para a escola... Numa área vocacional orientada por Luz... Que assim que escutou o seu nome... Sorriu deliciada...
- Desculpa interromper! – Disse Carla... – Mas não estou a perceber uma coisa!
- Ora diz!
- Os alunos em questão passam a ter só isto?
- Não! Claro que não! – Esclareceu... – Os alunos continuarão a beneficiar da área académica... Das terapias... Da psicologia e terapia da fala... Da psicomotricidade e das oficinas…
- Como é isso das oficinas? – Perguntou Irene... Revelando algumas dúvidas...
Pedro sorriu e continuou:
- A ideia de área vocacional é de eles terem oportunidade de experimentar várias... Como a pintura... A cerâmica e a limpeza... Posteriormente e de acordo com a idade é que faremos uma selecção de uma mais especializante… Que quem sabe... Até pode ser alvo de uma certificação… – Disse... Olhando para Dona Filó... Como que sugerindo…
Júlia e Martinha balançaram as cabeças e pareceram exteriorizar alguma concordância…
Seguidamente... Falou do caso do aluno João... Que seria uma óptima ajuda na portaria e na vigilância do espaço... Podendo inclusivamente ser utilizado para pequenos recados no exterior do colégio... Como pagar a água... A luz ou o telefone... Ir aos correios... E mais...
Sugeriu ainda... O Mário para apoiar Leontina nas carrinhas... Acompanhando-a nos percursos de recepção e de entrega dos alunos... Auxiliando-os a subir e a descer da carrinha...
Curiosamente… Leontina pareceu ficar atrapalhada... Quando Pedro mencionou o seu nome e lhe traçou rasgados elogios... Ao contrário... Luz emburrou...
Para a área de reparação e manutenção... Área vocacional que envolveria pequenas restruturações de espaços e de materiais... Pedro escolheu… Carlos... Virgílio... Luís e Roberto…
Explicou ainda às colegas Irene e Dora... Que teria de ter o contributo das duas... Articulando com a carpintaria... Pintura... Cerâmica e todas as actividades realizadas nas oficinas... Elas pareceram concordar...
- E em relação aos outros? O Bruno? O Ronaldo? – Questionou Júlia preocupada...
- Tenho a ideia de integrar esses dois numa espécie de brigada de limpeza no exterior!
- Brigada de quê? – Demandou Dora surpresa...
Pedro sorriu e repetiu a ideia... Adiantando que integraria os dois alunos no grupo mais jovem da escola... Com Filipe... Carrapito... Ramos e Samuel... Cristina... Bebé e Fábio… Sairiam uma vez por semana para a rua... Armados com vassouras... Luvas e sacos do lixo... Para limparem uma determinada área...
- Quem vai com eles? – Indagou Júlia...
- Sim?... Com quem falaste desta vez? – Perguntou Elisa sorrindo em jeito de vitória...
- Poderei ser eu! – Exclamou... Sem qualquer medo ou problemas... Fazendo silenciar os presentes... Que na sua maioria... Apresentavam alguma falta de vontade em sair com os alunos para a rua... Aliás... Não era muito agradável passear na rua com alunos que se babavam... Deficientes com problemas motores... Ou de comunicação…
Infelizmente... Para aquela gente e para a maioria das pessoas... Não ficava muito bem...
- Tens alguma coisa prevista para os alunos da sala da Elisa? – Perguntou Martinha...
O professor revelou que tinha previstas algumas alterações para aquela sala... Porém... Os alunos seriam integrados ao máximo e lentamente nas actividades... Uma incorporação de carácter pontual... Sem a obrigatoriedade ou o rigor dos outros...
Contudo... A maior alteração proposta para esta sala... Começaria pela adulteração do espaço... Isto é... Divisão dos alunos por duas salas... Assim como o próprio nome... Estimulação global I e II... A primeira para albergar os cinco alunos multideficientes... A segunda para atender a Sónia... Os dois clones e a Tatiana... A Andreia e o Hélio... O Zé e o Fábio...
As dúvidas das pessoas centravam-se no espaço... Onde colocariam essa sala...
- E se usassem a sala que está fechada? – Propôs Martinha... Arregalando os olhos...
- Estás doida! – Exclamou a educadora... – Isso dava muito trabalho!
Rapidamente... E de novo... Instalou-se uma algazarra ensurdecedora... Sem chegar a porto que fosse... Nesse momento… Voaram palavras de um lado para o outro... Sem missão aparente... Despenhando-se ao primeiro embate... Sem consciência ou razão...
- Nada se consegue sem trabalho! – Assegurou Pedro... Fazendo calar as hostes... – Proponho modificar e alterar as salas. Criar um espaço na sala I... Com pistas tácteis e estímulos sonoros e visuais...
- Não me consigo desdobrar entre as duas salas!
- Eu sei Elisa! Porém... Poderás programar e orientar as actividades. Auxiliando a Telma!
A educadora preparou-se para falar.... Mas Pedro interrompeu-a de novo... Dizendo que Leontina e a aluna Rosa auxiliariam Telma na sala um... Saudade ajudaria Elisa em tempos cruciais do dia...
Enfim... A partir dali... Pedro enredou um discurso onde enalteceu e valorizou o trabalho de equipa... Em prol do desenvolvimento dos alunos e da sua integração...
Propôs actividades desportivas... Passeios pela comunidade envolvente... Para que os alunos ganhassem autonomia pessoal... Circulando na rua... Atravessando passadeiras... Conhecer sinais de trânsito e andar no passeio... Sugeriu que se visitasse uma cidade mais distante... Utilizando o comboio... Para experimentarem um transporte diferente... Comprando um bilhete... Passeando em diferentes meios... Propôs umas experiências na piscina municipal... Idas à praia e um acampamento... Que gerou muita contestação... Enfim... Pedro teria tempo... Pois... Seria só no final do ano lectivo...
António Pedro Santos
(Continua)...