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educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LIX

A ideia de uma semana aberta não partiu do professor... Porém... E após algumas reuniões de funcionários... Foi unânime a sua realização...

De uma forma geral... E colocando de lado algumas divergências... Todos sabiam que o posto de trabalho estava em risco e que era urgente a sua defesa...

Como tal... Mobilizaram-se alguns pais...

Martinha... Júlia e Pedro explicaram-lhes o sucedido... Colocando-os ao corrente da situação... Nomeadamente... As causas que a nova portaria poderia acarretar... Enfim... A maioria não entenderam... Contudo saltaram com sugestões e disponibilizaram-se a ajudar... Com trabalho... Divulgação e outras coisas que fossem necessárias...

Para o professor e talvez para os restantes colegas... Foi um grande exemplo de mobilização e de participação social...

Durante uma semana... Realizaram-se exposições por toda a escola... Fotografias de actividades e alguns trabalhos realizados... Assim como alguma sensibilização para a deficiência e para as suas problemáticas...

Convidaram-se individualidades... Presidente da câmara municipal... Presidente da junta de freguesia... Associações locais e entidades parceiras... Como empresas que já colaboravam com a escola...

Relativamente à direcção regional... O professor teve o cuidado de falar e convidar pessoalmente a doutora Rosa... A tal... Que se armava sempre em sábia... Alguém de inteligência e capacidades superiores... Muito acima da fasquia básica e normal dos restantes seres...

Ainda assim respondeu-lhe ao telefone:

- Olhe... Não sei se vai dar. Tenho muito trabalho!...

Pedro sorriu em jeito depreciativo... Mas insistiu...

A verdade é que acabou por vir... Levando consigo mais duas colegas... Todas elas com cargos de estaque dentro daquele órgão público...

A organização da exposição... Teve o apoio e a cooperação de todos... E a grande maioria trabalhou mais horas que o habitual... Sem sequer reclamar... Pois... Urgia o tempo...

Durante uma semana... Pessoas ilustres e normais... Visitaram o espaço com prazer... Alunos como Carlos... Patrícia  e Samuel... Serviram de guias e mostraram a sua escola... Todavia... Pedro e outros funcionários estavam por perto e também ajudaram a completar com mais informações...

A receptividade e aceitação foram reciprocas... Os visitantes tiveram oportunidade de percorrer as salas e todos os locais de intervenção... No intuito de perceber e conhecer o seu funcionamento...

Houve muita afectividade em relação aos alunos... Muito espanto em relação ao desembaraço de alguns... Houve quem vertesse lágrimas e se sensibilizasse para os problemas com que estes se debatiam diariamente...

Doutora Rosa entrou na sala de estimulação global I e disse:

- Olá bom dia! Como estão? – Naturalmente... Ruben soltou um dos seus grunhidos... Os restantes mantiveram-se alheados como sempre... – Gostam desta escola? – Insistiu... Enfim... Nessa altura... Os olhares de Telma e do professor encontraram-se... Desfrutando do ridículo da situação...

Enquanto isso... Miguel circulava por ali... Apoiando-se na parede...

Singelamente... E por verificar que ninguém lhe passava cartão... Despediu-se com um aceno... Que ninguém viu e saiu dali... Dizendo para Pedro:

- Coitadinhos!... É natural que não me liguem!...

A verdade é que... Com tanta teoria de conceitos e de portarias... Desconhecia a realidade de um aluno multideficiente... Imenso de problemas sensorias e cognitivos... Comunicação e cognição... Ainda assim... Pavoneava-se e auto elegia-se... Sem qualquer vergonha ou pudor...

Na sexta feira... Último dia do certame realizou-se um grande arraial na escola... Começou às seis e foi pela noite dentro... Alguns pais colaboraram na montagem e preparação da festa...

Dividiram-se alunos e funcionários por estações... Ou zonas... A portaria... Com um local para compra de senhas... Uma quermesse... Uma zona de bar com esplanada e uma espécie de palco que não era palco...

Dona Filó fez uma feijoada... Que por acaso estava soberba... Bela e preta trataram dos petiscos... Chouriço assado... Orelha... Tiras de choco... E muito mais... Dora e Irene trataram da sangria e dos caracóis... E as mães apareceram com mais coisas... Designadamente bolos e doces...

A psicóloga e a terapeuta da fala organizaram uma peça de teatro... Ou melhor... Duas... Uma com falas... Onde canalizaram os alunos mais hábeis... E outra com o auxilio de Telma e Martinha... Com alunos mais limitados... Das salas de estimulação global...

Elisa e Saudade também colaboraram e prepararam uma canção... Foi uma surpresa para todos... O professor apreciou a acção e passou a respeitá-las mais...

Pedro mobilizou nos seus novos amigos músicos e ensaiaram algumas canções... Também lá estavam os originais “Ar do mar” e “À procura do sol”...

Carlos tocou baixo e Virgílio bateria... Matias perdeu muito tempo para que o conseguissem... Mas o objectivo foi alcançado...

Samuel improvisou com a flauta e Bebé tocou ferrinhos... Cristina dançava cadenciada e mecânica... Enquanto Ronaldo tocava congas... Teófilo e Roberto cantaram... O calado e o desbocado... Foi um assombro...

Ao longe... Na pequena multidão que delirava... Sónia observava Pedro a tocar guitarra... Gritando:

- Popêee!...

No final... Houve espaço para um baile de concertina... Um rapaz da comunidade que Luz convidara a participar de forma gratuita...

Por falar em Luz... Esta... Estava divina...

Oscilando o corpo ao ritmo da música... De sandálias reluzentes e vestido nutante... Seduzindo Pedro e cruzando com ele olhares de desejo e loucura...

Por outro lado... Leontina estava brutal... Saltos altos pontiagudos e vestido apertado ao corpo... Desafiou Pedro para dançar... Confidenciando-lhe que já tinha bebido um pouco... Nessa altura... O professor puxou-a para si... Sentindo o seu peito farto no seu... E o roçar das suas ancas gingonas na sua pélvis...

Ao longe... Luz dançava elegante e sensual... Contudo... De olhar estranho...

Mais tarde também foi buscar o professor para dançar... Pedro sentiu o seu olhar... Perdido e deveras incomodado... Uma queimação invadiu-lhe o peito ao sentir o odor da sua boca... Mas conseguiu segurar-se...

No final... Dona Filó despediu-se de todos com um poema... Depois com uma frase... Qualquer coisa tipo... “O impossível é quase sempre o que nunca se tentou..”...

Ao despedir-se... Doutora Rosa... Que representava a direcção regional... Ainda disse:

- É de facto uma situação complicada... Mas...  Vamos ver... Desejo-vos boa sorte! – E saiu... Transportando com ela a sua pose burlesca e envergando no rosto... O seu sorriso naturalmente desmaiado...

Quanto a Luz... Acabou por beijá-la mais tarde... Quando... Por entre a confusão do final da festa... Se cruzaram num corredor escuro e sem ninguém... Perto de uma das casas de banho...

Olharam-se e pararam frente a frente... Estáticos e espectantes... Ela... Num movimento subtil de disfarce... Sorriu e avançou... Preparando-se para seguir e sair dali...

Nesse instante... Pedro agarrou-a com força... Tomando-a para si...

Um gemido abafado pelos lábios do professor... Ecoou baixinho... No arfar das respirações... As mãos percorriam os corpos com muita energia... Apagando o tempo que havia de desejo e gastando-o imensamente e com pressa... Nos corpos que se encostavam com a força e a presença de quem queria demais...

Já na casa de banho... De costas voltadas para Pedro... Que a possuía com vontade... Entregou-se silenciosamente... Mordendo-lhe a mão... Que se encontrava na sua boca e impedia a saída de gemidos maiores...

Eram tantos os fluídos quentes que saíam de si... Na magia do orgasmo que os toldou... Ele... Acariciando-se... Luz... Apoiada no lavatório... Exausta e de cuecas a meio das pernas...

Quando Pedro procurou de novo os seus lábios... Esta... Ainda pareceu corresponder... Ou melhor... Evidenciou querer... A verdade é que se afastou e desapareceu dali... Dizendo que havia sido um erro...

Depois dessa noite... Ficou de baixa algumas semanas... Alegando doença... Quando voltou... Fugiu sempre aos encantos e tentativas do professor... Não lhe dando sequer hipóteses de qualquer contacto... A verdade é que... Nunca mais o encarou como dantes...

Com o tempo... Pedro deixou de insistir...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LVIII

A notícia caiu no colégio como uma bomba... A saída de uma portaria colocava em causa o funcionamento daquele estabelecimento de ensino...

O corte de grande parte do financiamento... Lançaria aqueles alunos e respectivas famílias para uma situação desconfortável...

Afinal... Ali... O tratamento era quase doméstico e personalizado... Todos eram ademais  especiais para circular num mundo absorto e assustador... Onde se grita por socorro e se clama por protecção...

Nos dias que se seguiram... E semanas... O ambiente esteve de cortar à faca... Os funcionários choravam pelos corredores e os que não o faziam... Apresentavam rostos pesadíssimos e extraordinariamente carregados...

Durante tempos... Viveram-se momentos de incerteza e de instabilidade...

Dona Filó falou a Pedro e a Júlia... As lágrimas caíam-lhe dos olhos sem controle... Num cenário triste... Desmesurado... Lancinante e doloroso....

Aquela personalidade que sempre os habituara... Segura e forte... Parecia agora desfeita... De sonhos... De ambição e de vontade...

Pedro... Naquele tempo... Jovem e sonhador... Saiu com ideias... Medidas de excepção... Encenações mirabolantes de combate... Enfim... Estratégias vãs... Que mais tarde se  verificaram infrutíferas...

Curiosamente e com o tempo... O jovem professor converteu-se à ideia de que estes alunos deveriam funcionar em plena inclusão e integração na escola pública... Com os devidos apoios e estruturas... Recursos... Isto é... No mesmo local que os alunos... Habitualmente denominados de normais... Na mesma escola e espaço... Ainda que... Beneficiando de medidas próprias... Conteúdos... Objectivos... Orientados e prescritivos... Tendo em conta... As suas limitações... Necessidades e capacidades...

De um modo geral... Pedro acreditou sempre... Na invasão da sociedade... Quebrando paredes e ultrapassando muros... Obstáculos que no fundo.. Jamais deveriam existir...

Se estes alunos e os outros... Fossem criados desde pequenos juntos... Desenvolvendo a tolerância... A solidariedade e o respeito pela diferença... Viveriam desde crianças e jovens... A partilhar os recreios... Os refeitórios... Ginásios e salas de aula... Unitários e amigos...

Os mais limitados evoluiriam com os mais desenvoltos... E isso... Pedro conseguiu constatar no próprio colégio... O que faria se fosse numa escola do ensino regular...

Pedro lembrou-se de mandar para a direcção regional... Ministério da educação e câmara municipal... Um pacote... Ou melhor... Um embrulho decorado pelos alunos... Dizendo no exterior: “Não nos deixem fechar!”...

Este... Era composto de excertos de actividades e algum historial da escola... Como... Jornais... Obras de arte... Investigações e trabalhos... Assim como... O espelho da relação com a comunidade... E mais... Muito mais... Divulgando o estabelecimento e promovendo no exterior a sua importância para aqueles alunos...

Com isto... Julgava ele... Sensibilizar consciências e ganhar espaço como centro de referência... Enfim... O ministério da educação nunca chegou a dar resposta...

Para além esta inciativa... Endereçaram-se convites a estas entidades e outras... Para que visitassem a escola numa espécie de semana aberta...

De imediato... Marcaram-se datas e planificaram-se actividades...

A ideia era salvar o colégio... Lutar até às últimas consequências por aquela instituição... Tão indispensável e fundamental para os alunos... Já de si... Ostracizados e distantes de todos... Demasiado capital para os pais... Sozinhos desde sempre nessa batalha e cada vez mais desventurados... Necessário para os funcionários... Que dali comiam e davam a comer aos seus...  

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LVII

Haviam passado alguns meses... Desde que o professor chegara à nova escola...

A sensação do desconhecido... Habitual nos professores que circulam de escola em escola... Terra em terra... Em busca de apenas experiência e tempo de serviço... Por vezes... Tão mais insignificante que trabalho e rendimento...

Ainda assim... Mesmo com todas as contrariedades... O balanço era mais do que positivo... Desde o primeiro dia...

Pedro gostava do seu trabalho... Ao contrário da maioria das outras crianças... Que desejavam ser futebolistas ou estrelas da televisão... A verdade é que... Desde criança que queria ser professor...

Era a primeira vez que trabalhava com alunos destes... Deficientes ou diferentes... Com todos os nomes que habitualmente lhes dão... Estavam de facto a ensinar Pedro e a fazê-lo ver uma realidade que até ali desconhecia...

Quantas vezes os olhou e reflectiu... Que estranho mundo era aquele... Tão à parte dos demais... Vítimas uma exclusão plena... Porém... Dentro da sociedade... Que os expulsa e procura extinguir... Para lá das mentes amorfas e caducas... Que os ignoram e lamentam... Sempre com dó e clemência...

Tanto que perdiam por ser assim... Anos e anos a fio... A explorar conteúdos básicos... Deformados e completamente desajustados das exigências da vida e até das suas...

Regressões abruptas que se verificavam... A falta de estímulo e simplesmente... Um imenso e sempre presente desacreditar...

Sem direito ao convívio com os demais... Sem a possibilidade de ler e escrever... Contar e calcular... Escondidos e indesejados... Crianças eternas sem direito a um beijo... Ao namoro ou ao sexo...

Prisioneiros da estagnação... Vencidos pela resignação... Deixavam-se ficar... Repetitivos... Estereotipados... Gagos e com tiques... Paranóicos... Dementes e alucinados...  Atrasados e pouco ou nada evoluídos... Abandonados e depositados... A braços com a loucura... Ao sabor de quem apareça e modifique um pouco a sua condição...

Já Pedro... Aparentemente normal... Era às vezes tratado como tal... Eternamente jovem e inexperiente... Numa corrida em busca de trabalho... Tendo sempre de provar e mostrar as suas capacidades... Sempre olhado como incapaz... Ou... Contestatário... Por lutar pelos seus direitos... Enfim... Era cansativo...

Todos os anos era uma batalha conseguir trabalho... Algumas horas ou experiência... Que agradavam ao estado e pouco serviam a quem executava o serviço...

É certo que se ganhavam correspondências e afectividades... Histórias de amor e laços de amizade... Porém... Faltava sempre a estabilidade... Um trabalho certo... No mesmo local... Uma casa sua... Vida familiar... Filhos e tudo isso...

Face a esta situação negra... O professor viu sempre esta realidade muito distante e longínqua... Nunca chegando a acreditar nela...

Quantos casos conhecia... De colegas solitários... Eternamente sós... Com o único desígnio da escola... Sem filhos ou respectivas caras metades...

Por vezes... Dava consigo a pensar na rapidez com que o tempo passava... Sem ganhos exacerbados... Ou qualquer espécie de estatuto ou consistência...

No fundo... Percebia que poderia ficar no colégio por muito mais tempo... Pois... Sentia que gostavam do seu trabalho... Todavia... Sabia que o seu objectivo era trabalhar no ensino público... Onde teria outras regalias e maior segurança profissional...

Prematuramente... Já sofria por antecipação... Sabia que lhe ia custar... Deixar aqueles novos alunos... Quase filhos protegidos... Os seus colegas... Alguns amigos... Ou com gestos semelhantes à amizade... Perder o encanto dos olhares de Luz... Ou o ânimo do corpo de Leontina... Para onde iria o seu trabalho?... Os seus projectos e a sua continuidade?... Como seria a entrega dos que se seguiriam a si?... Tudo questões e mágoas que pareciam invadir Pedro cada dia mais... Com maior intensidade...

Os progressos eram notórios... Contudo... Havia uma necessidade constante de estímulo e de continuidade...

Era demais agradável... Apreciar a desenvoltura com que os alunos envolvidos nas áreas vocacionais se entregavam às actividades... Mais adultos e responsáveis... Ou o constante pedir de trabalhos de casa de alguns... Que não passavam de pequenas tarefas ocupacionais... Enfim... A preocupação com a higiene... O crescimento... Desenvolvimento e a maturação... A comunicação e a interacção social... A beleza das acções... Menos ameninadas... Tal como... As parcas e pouco notórias evoluções dos alunos multideficientes da sala de estimulação global I...

No gosto que dava... Franquear as limitações de Sarita... Disfarçadas pela sua vontade... Sempre ajudando o professor nos exercícios de deslocamentos e equilíbrios... A liderança e segurança de Patrícia... A aproximação de Ilda e de Angela... Ainda que... Nem sempre boa e correcta... Mas tentada...

A participação de Zé nas aulas de psicomotricidade... Nem sempre efectiva... Mas mais frequente... A amizade e o carinho entre colegas... E sobretudo o aumento da tolerância e da solidariedade... Eram afinal... Todos diferentes e limitados... Crianças... Jovens e adultos... Todos eles com capacidades... Com vontade e necessidades... Alunos e funcionários...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LVI

Na sala de estimulação global I... Telma mudava a fralda a Bento... Enorme e desconjuntado... Com um cheirete daqueles... Enfim... Pedro teceu um comentário à expressão de desconforto da colega... Que gaguejando lhe disse:

- Isto não é para todos!... Nem se aprende na escola!

A partir daqui... Iniciou-se uma conversa em que se trocaram galhardetes de relativos a sexos... A tarefas... Obrigações e funções... Por ali... Apareceram Martinha e Júlia... Que se meteram na conversa...

Cada um deles... Tentava convencer os restantes... Ou quem sabe... Até a si... Acerca das suas capacidades.. Da sua formação e encargos que tinham...

Chegaram por fim à conclusão... Que todos os trabalhos eram importantes e fundamentais... Cada um deles era uma arte que tinha muitos componentes e atribuições...

De uma forma geral... E para a grande maioria das pessoas... Todos se acham especiais e insubstituíveis... Contudo... Cada pessoa é um ser... Cada ser pode ser funcional e importante... E poderá melhorar se aprender com humildade...

Começou por brincadeira... A ideia de uma troca de funções no colégio... Todavia... Pedro levou a ideia a peito e comunicou-a a dona Filó... Que lhe perguntou de imediato:

- Mas vocês vão trocar de funções? – Ao que o professor corrigiu:

- Nós!... Nós todos vamos trocar de funções...

A princípio... A directora não se sentiu muito à vontade em participar no projecto... Que apenas teria a duração de um dia... Alegando que perderia liderança junto das funcionárias... Porém... O professor tranquilizou-a... Informando que ainda se tornaria mais respeitada e próxima por aderir...

Como sempre... Houve quem se opusesse... Mas... Embrenhadas na maioria... Acabaram por assentir... E talvez tenham sido essas as que mais beneficiaram da coisa... Isto é... Saudade foi para o lugar da directora... Imunda de vaidade... E a educadora Elisa ficou no lugar de Luz... Ou seja... Sentada à secretária como no fundo gostava...

As colocações desse dia foram aleatórias... Cada profissional retirou um papelinho às cegas... Com a função correspondente...

Dona Filó fez as carrinhas... Ocupando o lugar de Leontina... Que nesse dia foi fazer de professora na sala da escolaridade... Bela foi a psicóloga... Situação que fez rir toda a gente e a ela também... Chegando até a dizer em jeito de brincadeira... Que daria alta a todos...

Preta foi para o lugar de Carla... Esta foi para as oficinas com Telma... Irene foi para a cozinha com Luz... E parece que se entenderam muito bem...

Martinha ficou com Pedro na sala de estimulação global I... Júlia foi para o lugar de Elisa e Dora ficou como educadora social...

Esta experiência teve um cariz interessante... Na medida em que... Passou a dar-se maior valor às funções desempenhadas por todos os colegas... Coisa que até em tão... Talvez não acontecesse...

Foi uma animação e não se cumpriram os lugares e funções na plenitude... Isto porque... Se foi percebendo a especificidade e arte de cada trabalho e função em particular... Foi importante para que todos entendessem que o trabalho de todos faz falta e que apenas junto e articulado... Funcionará de facto com sucesso e eficácia...

Fizeram-se experiências e imitações... Em suma... Levou-se aquele dia de trabalho com maior espontaneidade... Alguns alunos facilitaram o trabalho... Outros comparavam-no ao do profissional de origem... Como Samuel... Com rigor e exigência... Dizendo:

- O professor Pedro não faz assim!

Os mais velhos queixaram-se da comida salgada... Mas até nem estava... Enfim... Foi mais um pretexto para a brincadeira... E essencialmente para a comunicação e interacção social...

Com os alunos da sala de estimulação global II foi mais complicado... Sónia e Zé... Não chegaram a aceitar quem lhes havia calhando... A primeira protestando e o segundo escapando...

Nas outras salas... Ilda mandava vir... Teófilo estava confuso e Cristina repetia:

- Que é isto Cristina?... Rum... Rum... Que é isto Cristina?... Rum... Rum...

Nesse dia altamente rico... Sobretudo para os profissionais aconteceu maior empatia entre os colegas... Partilha de saber... Formação prática... Novas sensações e emoções...

A Pedro e Martinha... Calharam Miguel que não parava sossegado... Ruben e Salvador que tomaram banho... Bento e Rafael que se sujaram e tiveram de mudar as fraldas por duas vezes... Houve até quem fizesse fotografias do professor nessa tarefa... Mas este... Não deu parte fraca... E tentou desempenhar a sua provisória função o melhor que sabia... Com paciência... Humildade e dedicação...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LV

No terraço das tais águas furtadas... Pedro digere o jantar...

Abraçado à guitarra... Encena uma profunda divagação... Nos olhos doces de Luz... No cheiro quente de Leontina... Duas preciosidades bem portuguesas... Para lá dos quarenta... Que deambulam e apregoam aos sete ventos... Qualidades ocultas à grande maioria dos outros seres...

Nas mãos ardentes de Leontina... A sensação intermitente de que se pode ser maior... Na sua roupa apertada sob um andar elevado e desengonçado... A excelência da produção de braço dado com a simplicidade maravilhosa de Luz... Que na sua magia descontraída... Arrebata e assola... Olhar profundo e intenso... Lábios prazerosos e provocadores... 

No ar ecoa uma melodia galerna... Um saxofone que invade aquele fim de dia... Com o assombro de um sopro...

Alguém por perto... Tenta domesticar um instrumento... O professor aproxima-se com a cadeira do muro do terraço e percebe que vem de uma casa que se encontra ao mesmo nível... Mas não vê ninguém...

Resolve por isso entrar na melodia e procura os acordes que o permitam... Encadeando os sons da sua guitarra... Ou melhor... Da escola... A verdade é que andava sempre consigo... Ou quase sempre... Como companhia... E que bem lhe fazia...

Entra na canção... Elevando a altura do toque... Um concerto para Luz e Leontina... Encerra os olhos e deixa-se ir... Ao longe... Um rapaz sai... Manobrando o saxofone... Contemplando Pedro... E entrando na brincadeira... Aproxima-se no seu muro e ficam muito perto... Improvisam e fazem um final...

- Tocas bem! – Exclamou o professor...

- Não te lembras de mim? – Questionou... Olhando-o como se o conhecesse...

Nesse momento... O professor pareceu reconhecer o rapaz que o ajudara à saída da camioneta...

- Saída turbulenta!... – Comentou sorrindo...

Pedro soltou um gargalhada... A partir daí... Encetaram uma conversa agradável... Pedro contou-lhe que trabalhava num colégio de deficientes... Que vivia ali e falou-lhe um pouco acerca da sua experiência...

Por seu lado... Matias... Era esse o seu nome... Tocava num trio que circulava em dois ou três bares da zona...

- Temos um contrabaixo e um percussionista... – Informou... - Para além de mim... Claro!

O músico afirmava que não se ganhava muito... Dava para pagar a renda e ainda assim... Tinham de fazer outros trabalhos... Mas faziam o que queriam e gostavam...

Convidou Pedro para aparecer num ensaio... Apenas para se divertirem um pouco... Este acedeu ao convite...

Encontraram-se todos na casa de Matias... Afinal... Moravam todos juntos... Pedro ficou abismado com o material de que dispunham... Bateria... Guitarra eléctrica... Vários instrumentos de sopro... Enfim... Pedro entendeu-se bem com a guitarra eléctrica e Matias mostrou uma enorme versatilidade com todos os instrumentos... Nomeadamente com os de sopro...

Passaram a encontrar-se todos com frequência... De uma forma descontraída... Improvisavam por cima de temas bem conhecidos... De um jeito animado e alegre... A música crescia e parecia evoluir...

Quando teve oportunidade... Pedro convidou-os a ir à escola... Falou com dona Filó... Que autorizou...

Fizeram várias experiências... Desde um pequeno concerto... Em que Pedro também participou...

Os alunos deliraram... Ao perceberem que as canções conhecidas eram adulteradas... Com uma base apenas instrumental... Sentiam que as reconheciam... Entravam no ritmo... Dançavam e batiam o pé... As reacções eram as mais diferentes possíveis...

Salvador ria e arrastava-se no chão... Assim como Rubem... Que batia as palmas com violência e emitia ruídos... Talvez menos... Porque com o barulho da música... Não eram audíveis...

Miguel passeava-se... Seguindo a mão... Estranhando o ambiente... Mas... Parecendo ignorar a melodia... Bento e Rafael... Achavam o ambiente estranho e diferente... Mas as manifestações não eram muito óbvias...

Estranhamente... Zé observava o grupo... Com zelo e atenção... Contemplando com admiração e sossego... Era óbvia a tranquilidade que a música lhe transmitia...

Hélio batia os pulsos e arreganhava os dentes... Abalado com a confusão... Tatiana segurava Andreia... Instigando-a a dançar... De um jeito mórbido... Num sacudir temporário de movimentos pouco cadenciados e crus...

Andreia... Com movimentos espásticos... Batia as palmas a três tempos... Mas... Fora de tom... Os clones abanavam os corpos... Descoordenados e hirtos... Em movimentos de ombros... Da esquerda para a direita... Como se fosse esta... A única parte do corpo com mobilidade...

Abraçados... Carlos... Mário e Bruninho... João e Luís... Acompanhavam o espectáculo... Como se assistissem a um concerto de rua... Por outro lado... Patrícia e Rosa observavam-nos com malícia... Bem como Angela... Atenta e misteriosa... Ana estava a um canto... silenciosa e pouco motivada para a actividade...

Dora... Irene e Júlia... Encorajavam Fábio e Raquel... Que dançavam agarradíssimos e apaixonados... Como sempre...

Martinha acompanhava Cristina... Ramos e Carrapito... Que a imitavam de uma forma básica... Dois passos para um lado e dois passos para o outro...

Filipe dançava com o enorme lápis amarelo... Como se fosse um maestro... Ao seu lado... Maura e Sarita... Movimentavam-se com prazer... Ainda que com uma demarcação muito própria...

Teófilo era espicaçado por Luz e Carla... Mas estava muito renitente... Virgílio estava atrás dos músicos... Como se fizesse parte deles... Afinal... Tinha ajudado a montar e carregar o material...

Bebé e Ilda estavam bem na frente dos músicos... Inventando movimentos completamente fora da canção... Com jovialidade e emoção... Soltando-se em plena liberdade... Também lá estavam Cláudia e Ronaldo... Este último... Completamente excitado e fora de si... Manobrando uma guitarra virtual e imaginária...

Próximo de Pedro... Aparecia Sónia... Chegando a beijá-lo... Não percebendo que por vezes não lhe podia dar tanta atenção... Por causa do instrumento... Arrancada de lá à força... Por Bela... Chorando e gritando desaforadamente:

- Popêeeee!...

De uma forma geral... Alunos e funcionários desfrutaram do momento... Cantando e dançando... Aplaudindo e soltando para fora de si... Todas as suas limitações... Necessidades... Capacidades e frustrações...

Para além disto... Pedro ainda organizou algumas sessões... No contexto da sala da música... Em que convidou Matias e os seus colegas... Para uma abordagem mais pormenorizada ao instrumento... Com situações de experimentação e de acompanhamento... Chegaram a fazer-se algumas simulações... Onde os alunos... De uma forma ensaiada e coordenada... Reconhecendo e aprendendo regras... Respeitando pausas e momentos... Introduzindo inovações e acrescentos... Acompanhavam as canções... Enchendo-as de cor... Paixão e emoção... 

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LIV

No café... À conversa com Luz e Júlia... Acerca das futilidades da vida... Em que tudo vale e muito pouco conta...

Luz soltava a sua gargalhada leve... Enquanto bafejava o seu cigarro daquela forma alada e doce... Emanando para fora um aroma inebriante... Contemplando Pedro em profundidade...

- Bom dia! – Exclamou Cláudia... Sorrindo sem dentes...

O grupo cumprimentou-a em coro...

- O que fazes por cá? – Indagou Júlia...

A aluna contou que estava a fazer um recado a Bela... E dirigiu-se ao balcão para receber um pequeno embrulho...

Em silêncio... O professor observava o seu desembaraço e educação... Fundamentais para a sua inserção comunitária... Afinal... Tudo resultado de um esforço que parecia começar a surtir efeito...

Cláudia despediu-se e seguiu para o colégio... Naquele momento... E em torno daquela mesa... A conversa mudou de rumo...

Júlia falava acerca da expressividade da aluna... Luz referia a sua educação e disponibilidade para a realização das tarefas... Todavia... Todos concordaram que o seu sorriso estava demasiado pobre... Cláudia não tinha na boca quase dente algum...

- E o mesmo se passa com a Patrícia! – Acrescentou Luz...

É verdade que as mudanças no que se refere à higiene dos alunos tinham sido imensas... Havia uma preocupação em tomar banho após a actividade física... Condição essencial para a saúde... Assim como... Os mais desfavorecidos... Que quase diariamente se lavavam à chegada... Tal não era o estado em que chegavam... Ou no fim do trabalho das oficinas...

A verdade é que passou a haver uma preocupação pelo cumprimento de certas normas...

A educadora social controlava a situação... Mas não era a única... Pedro fez questão... Que este fosse um desígnio e um objectivo de todos... Isto é... Andarem penteados e de cabelos aparados... Mais asseados... Chegaram a fazer-se algumas experiências com uma máquina de cortar cabelo... Onde alguns alunos foram cobaias de outros...

Chegou a convidar-se uma cabeleireira amiga de Leontina... Para fazer alguns cortes e penteados aos alunos... Alguns até foram maquilhados... O resultado foi de facto surpreendente...

Havia um maior controle com a roupa... Alguma era lavada na escola... Por Angela... Cláudia e Patrícia... E outros alunos... Sempre com a supervisão de Bela...

Fez-se recolha de roupa... Uma espécie de banco... Onde esta era seleccionada por tamanhos e tipos... Conservada e posteriormente arrumada...

Geralmente servia sempre para alguém... Pois... A maioria das famílias apresentavam fracos recursos económicos...

Pedro fazia questão que todos andassem apresentáveis e às vezes obrigava os alunos a deitar a sua própria roupa fora sem pedir autorização aos pais... Afinal... O que queriam eles saber do assunto... Se deixavam que os filhos andassem rotos e sujos...

O trabalho académico das salas de escolaridade e de estimulação global... Articulado com Martinha e Júlia... E com a colaboração de todos... Fortificou e desenvolveu esta grande finalidade...

Foi pedido aos encarregados de educação auxilio para a compra de escovas de dentes... Aos restantes... Que não tinham posses ou interesse... A escola tratou de garantir esses materiais...

Era sagrado... Lavar a seguir às refeições... Ou até à chegada... Alguns... Gostavam tanto que os lavavam várias vezes ao dia...  Talvez por acharem novidade... 

- Vais gastar os dentes! – Avisava Samuel... Sempre sério... Face à frequência com que Ramos usava a escova de dentes...

As assembleias de pais dirigidas por Pedro e Júlia... Foram fundamentais para fazer esta ponte entre a escola e casa... Os pais eram poucos e quase sempre os mesmos... Mas com estes até se conseguiu fazer alguma coisa... Falava-se da higiene... Da medicação... Da importância da alimentação e da actividade física...

Chegaram a fazer-se autênticas acções de formação acerca das mais variadas temáticas... Com suporte a vídeos e outras recomendações... Todas importantes ao desenvolvimento e incremento da qualidade de vida dos alunos...

Discutiu-se a intervenção... Enquanto pais e técnicos... Debateram-se estratégias e partilharam-se experiências...

Chegaram inclusive a convidar uma enfermeira para responder a perguntas... E foi daí que nasceu a ideia de arranjar uns dentes para Patrícia e Cláudia...

A enfermeira realizou algumas diligencias em parceria com a escola junto da segurança social... Que se mostraram essenciais... Para que beneficiassem de uma intervenção ao nível da saúde oral...

Por serem oriundas de famílias carenciadas e por serem demasiado novas... Sem sorriso e com pouca auto estima... Conseguiram uma placa... Que lhes mudou o rosto completamente...

A partir daí... Passaram a rir de boca aberta... Sem colocar a mão para a tapar... Como de costume... Para esconder a escuridão e o mau hálito que emanavam...

Tornaram-se mais seguras e mais bonitas... Mais fortes e ainda mais comunicadoras...

O mais espantoso... É que a própria comunicação melhorou... Ou seja... Alguns dos problemas ao nível da fala e linguagem melhoraram e deixaram de se notar tanto...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LIII

As áreas vocacionais corriam de feição... Os alunos experimentavam-nas e iam evidenciando vocações... De uma forma quase expontânea... Trabalhavam a responsabilidade e o empenho...

As áreas vocacionais estavam integradas no currículo dos alunos... Como sendo a primeira fase de transição entre a escola e a vida activa...

De uma forma desartificiosa... Os alunos beneficiavam de um conjunto de áreas... No sentido desenvolver competências... Para posteriormente auxiliar na escolha de uma formação adequada às suas motivações e capacidades...

Conheciam... Analisavam e descobriam... De forma teórica e prática... Faziam de conta e inventavam... Diferentes escolhas em distintos contextos profissionais... Desenvolviam gostos e desgostos... Conheciam hábitos e rotinas próprias de ofícios... Geralmente trancados e vedados a este tipo de alunos...

A rotação pelas diferentes áreas... Permitia que professor e técnicos conseguissem selecciona-los... Para que... A médio prazo... Os integrassem numa formação mais específica... Através da avaliação frequente e sistemática das prestações individuais e da facilidade ou dificuldade em atingir os objectivos...

O professor acreditava numa inclusão plena... Ainda que soubesse ser difícil... Face à conjuntura do mundo e ao embaraço que representa para as pessoas...

Por essa razão... Não havia sido à toa... A escolha do tema do projecto educativo... Formação pessoal e preparação para a vida activa...

Este deve conter pressupostos... Metas e objectivos... A fim de... Proporcionar a aquisição dos conteúdos básicos que permitam o prosseguimento de estudos... Ou a inserção em esquemas de formação profissional... Para que tenham oportunidade de vivenciar situações reais de trabalho... Facilitar a sua aprendizagem e o aperfeiçoamento de métodos e instrumentos de trabalho... Valorizando sempre a vertente prática do exercício... Labor ou função... Tal como a comunicação... As relações interpessoais e a cooperação...

Quem sabe se um dia... No futuro... Haverá espaço para que todos os seres humanos sejam e vivam felizes e livremente realizados... Independentemente do seu engenho ou das suas dificuldades...

No colégio... As actividades desenvolvidas foram imensas... Desde as vendas de bolos confeccionados na culinária... Produção de chás... Compotas e licores... À venda de produtos agrícolas e consequente integração na comunidade envolvente... Quer fosse na parte da limpeza... Na reparação e manutenção... Ou na jardinagem...

Enfim... Todas... Áreas vocacionais internas dispostas a capacitar e ocupar os alunos... Para mais tarde os inserir numa área vocacional de carácter externo... Onde tivessem a oportunidade de se especializar num determinado ofício... Ou pelo menos... Tentar...

Pedro confiava nos alunos e na sociedade... Para este... As escolas deveriam funcionar como unidades de produção... Dispostas a gerar produtos... Dominando a fabricação... O embalamento e a conservação... Assim como... O embelezamento ou decoração... Para posteriormente os vender a quem quisesse experimentar artefactos de criação própria...

Dominando estratégias de divulgação e de mercado... Realizando acções de puro comércio... Dentro e fora da escola... Para colegas e funcionários... Pais e membros da comunidade... Em feiras e mercados... Dispostos a crescer e sobretudo... Dar-se a conhecer... Para quem sabe... Um dia... Avançar... Evoluir e apostar numa criação mais específica de um determinado produto... Para por fim... Se tornarem fornecedores...

Num processo organizado e encadeado... Onde todos desempenham uma respectiva função... Para desenvolver uma acção organizada do início ao fim... Mostrando à sociedade em geral... As suas reais capacidades de gerir um negócio... Ainda que... Com supervisão...

Na sociedade globalizada de hoje... Onde todos se pisam e atropelam... Os desafios são enormes e imensos...

É de extrema importância capacitar os alunos para os desafios do futuro... Aliando o desenvolvimento das estruturas académicas... Comunicativas e sensorias... A cognição... Autonomia e motricidade global... Ao alimentar de uma maior proximidade entre a escola e a comunidade... Na participação social e na troca de saberes...

Estimulando a cooperação de todos... Na resolução de dificuldades e na transposição de barreiras... Numa acção participativa... No ser social e cidadão... Pleno de direitos... Consciente e cumpridor de deveres... Livre e criador...

Igualdade de oportunidades... Para colmatar as desigualdades existentes... Num serpentear de ideias e vocações... Interesses e desaprovações... Para lá do imaginário corriqueiro e banal... A realidade nua e crua... De um ser que apenas quer ser...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LII

A sala da música… Era um local privilegiado… Um espaço de liberdade e de criação… Com o tempo e respeitando os grupos… Começaram a realizar-se algumas composições… Básicas e muito simples… E claro... Consoante o público alvo…

Por vezes misturavam-se alguns alunos mais velhos e capazes… Para dar maior brilho às prestações… Assim como… Motivação para os restantes…

Seguindo uma ideia antiga dos alunos… Começaram a fazer-se algumas gravações…

Com um velho gravador… Pedro registou numa cassete todos os trabalhos…

O lado A começava com “ar do mar”… Teófilo na voz… Virgílio e Mário nas congas… Isto é… Latas…

Carlos nos coros… Luís nas maracas… Roberto nos ferrinhos…

O som carregado do blues… Fez com que repetissem o último verso… À medida que a canção avançava… As coisas pareciam correr bem melhor… Mas o professor ficou com a primeira gravação…

Seguidamente… A sala de estimulação global II… Participou com uma música instrumental…

Pedro pediu ajuda a Carlos e Patrícia… Para coordenarem os alunos... Enquanto este tocava guitarra… Um ritmo constante e duro… Do princípio ao fim…

Os mais velhos distribuíram os instrumentos e os alunos foram atrás… Congas e tamborins… Ferrinhos e caixas… Paus de chuva e adufes… Castanholas e guizos… Enfim… Sónia sacudia umas maracas e batia num tamborim… Com pouca sequência e atenção… Andreia tocava ferrinhos com o apoio de Patrícia… Tatiana congas e os clones pauzinhos ou clavas… Estes três últimos tiveram uma prestação relativamente cadenciada…

Por outro lado... Hélio sacudia um guizo e Zé circulava com um pau de chuva que apenas manobrava… Quando queria… Porém… Sempre num tempo adequado…

O resultado final não foi mau de todo… Isto porque… O professor marcava um ritmo certo… Que Carlos e Patrícia facilmente entenderam… E que… Os restantes apenas tiveram de preencher…

Os alunos chamaram-lhe a “oficina”… Pois os sons… Pareciam martelos e ferramentas a bater…

- Posso tocar pífaro? – Perguntou timidamente Samuel… Segurando uma flauta de bisel que trouxera de casa…

- Sabes tocar? – Indagou o professor…

O aluno respondeu afirmativamente com a cabeça e começou a soprar a flauta… Ele não sabia… Mas tentava... Tinha vontade e muito estilo…

Nesse momento… Alguém toca o braço de Pedro… Era Fábio… Sorridente… Sempre demasiado branco… Com um semblante gravativo… Disse qualquer coisa imperceptível… Mas… Ergueu a mão e mostrou-lhe uma harmónica… Pedro sorriu e convidou-o a tocar… Fábio tocou com tanta energia que até batia o pé…

O docente mandou chamar Carlos e Teófilo… Patrícia e Cláudia…

- Chamem também o Ramos! – Pediu…

Na sala… Deu um instrumento de percussão a cada um… Menos a Teófilo… Que segundo ele… Só conseguia fazer uma coisa de cada vez… Depois explicou a sua ideia…

Pedro tocaria um arranjo tradicional na guitarra… Os restantes faziam a percussão… Samuel e Fábio tocariam livremente…

O docente recomendou-lhes que entrassem na música e seguissem… Sem limites… Teófilo lia umas frases que Pedro escreveu à pressão… Pausadamente… Repetindo-as sempre que o professor fizesse sinal… Palavras acerca do mundo e da vida… De um modo espaçado…

Os restantes alunos tinham funções bem definidas… À excepção dos alunos que tocavam os instrumentos de Sopro… Para além de tocar… Tinham coisas para ir dizendo… Esporadicamente e amiudadamente… Dizeres tipo: “Ai a minha vida”… Ou… “Querida mãezinha”… “Ai… Ai…”… Enfim… A ideia era preencher o ritmo dado pelas cordas com um pouco de palavras… Desencontradas e aparentemente vãs… Todavia… Encadeadas e estruturadas com sentido…

Pedro chamou-lhe… “Palavras ao vento”…

O lado A terminou com um poema colectivo… Que o professor realizou com os alunos na escolaridade… Onde cada uma sugeria uma frase que teria obrigatoriamente de dar continuidade à anterior… Não ficou mau...

Lido por Ilda... Acompanhada de um suporte musical desartificioso… Ficou interessante…

O lado B começou com a canção… “Uma vida por um dia”…

Carlos… Cristina e Carrapito… Filipe e Bebé… Teófilo… Angela e Ilda… Alinhados… Cantaram por cima da guitarra de Pedro…

Primeiro ensaiaram… Duas vezes… O professor explicou-lhe o posicionamento da boca… Não queria gritos nem ninguém fora de tom… O resultado ficou muito além do esperado… 

Posteriormente… O docente decidiu realizar uma coisa diferente… Apelar à participação da sala de estimulação global I… Levou-os para a sala da música… Com a ajuda de Carlos… João e Patrícia…

Miguel circulava no chão… Com dois guizos presos nos pulsos… João vigiava-o… Para que este não se magoasse… Salvador brincava com um reco-reco… Arrancando-lhe sons e emitindo vocalizações…

Patrícia e Carlos… Ocupavam-se Rafael e Bento… Cada um com uma pandeireta… Que era sacudida com auxílio…

No chão… Ruben batia palmas com violência… Ao mesmo tempo que explorava uma enorme conga e um tamborim…

O professor começou a dedilhar a guitarra… Uma melodia simples e suave…

Teófilo entra em cena para ler umas palavras coloridas … Um conjunto de frases organizadas pelos alunos na sala de escolaridade… Palavras que se misturam com os sons que ecoam pela sala… Dos instrumentos… Das vocalizações… Por entre gritos e risos de contentamento de Salvador… Exteriorizam-se estampidos de Ruben...  Alternando batidas com palmas e clamores… Nos sorrisos afáveis e puros de Bento e Rafael… Claro... Para além da indiferença de Miguel… Que apenas se deslocava produzindo pouco som…

- Posso cantar um fado? – Questionou Roberto… - Posso?

O professor sorriu… Mas ainda assim… Pediu-lhe que cantasse…

Rapidamente percebeu que era inventado à pressão… Porém… E face àquele desarranjo… Compreendeu que fluía com alguma estrutura e alma… Apanhou uns acordes simples e começaram gravar… Com uma base quadrada na guitarra e o embalo congénito do fado…

Era verdade que Roberto não sabia cantar… Mas percebia-se que já tinha escutado o fado… Uma vez que apresentava postura e pose de fadista… Bem como… Algum balanço…

Na última canção… Pedro escreveu uma espécie de hino da escola… Onde se cantavam palavras de amizade… Trabalho e dedicação… Tolerância e saudade… Afinal… As frases eram elementares e a canção tinha uma toada elementar…

Sem guitarra… Pedro organizou um grande coro… Com Rosa… Angela e Ilda… Cláudia… Ronaldo e Samuel… Ramos… Bebé e Roberto… Luís… Virgílio e Teófilo… Bruninho e Patrícia… Mário… Raquel e Sarita… Maura… Filipe… Carrapito… Carlos e Cristina… João e Ana… Ainda que silenciosa… Esteve presente e agrupada no coro… Sorrindo… Como que assistindo… Ainda que… Sem mostrar os dentes…

A canção tinha poucos versos e um refrão… Primeiro começavam as raparigas… A seguir os rapazes… No final… Juntavam as vozes de ambos os sexos… Todavia… Aconteceram algumas confusões antes da gravação… Ramos e Filipe… Pareciam esquecer-se e confundir a sua vez… Raquel também apresentou dificuldades… Enfim… O grupo era grande demais para a sala e o professor teve alguns problemas…

No término da coisa… O efeito foi o desejado… Uma harmonia de vozes perfiladas para o mesmo objectivo… Uma canção… Um poema musicado  com três acordes acerca da sua escola…

O professor nunca os viu cantar nenhuma outra canção com tanto expressividade e força… Por várias razões… Eram os seus amigos… A sua escola e as suas vontades… Serem iguais aos restantes… Unidos e fortes… Para além das suas competências… Da sua escassez e de todos os seus constrangimentos…

Mais tarde… No centro de recursos… Com a ajuda de Luz… Dora e Irene… Concebeu-se uma capa e fizeram-se cópias da cassete… Depois... Colocaram-se à venda por um preço muito barato e simbólico… A maioria dos alunos compraram de recordação…

Pedro teve a ideia de mandar um exemplar para a direcção regional… Que não chegou sequer a dar resposta… Outro para a junta de freguesia… Câmara municipal e biblioteca… Quem sabe... Se não entenderiam as reais capacidades daqueles alunos desvirtuados e eternamente estigmatizados...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LI

Nos intervalos… Os alunos distribuíam-se pelo recreio… Um espaço pouco amplo… Contudo… Comprido…

No hall principal do primeiro piso… Havia uma zona maior… Coberta… Que dava acesso a algumas salas… Nomeadamente as de estimulação global... Alguns gabinetes e acesso… Através das escadas… Para o ginásio e sala da direcção… Uma espécie de polivalente…

Aí… Juntavam-se alunos… Haviam alguns bancos… mesas e cadeiras… Para conversar e conviver… Alguns ouviam música… Outros dançavam… Enfim… O local era agradável e tinha sido muito valorizado… Desde que se realizaram as obras de embelezamento na escola…

Nesse local... Dora… Irene e os alunos… Tinham pintado nas paredes… Uma espécie de pátio… Com portas e janelas… Vasos e flores…

Pedro contemplava o espaço...

Maura dançava com Sarita… Raquel com Fábio.. Sempre colados… Luís e Roberto experimentam passos de dança mais modernos… Alguma coisa que talvez tenham visto na televisão…

- Parece uma discoteca! – Exclamou Carlos… Aparecendo por trás de si… - Se tivesse luzes… Bolas de espelhos e colunas… - Enquanto isso… Acompanhava as suas palavras com movimentos cadenciados… Ao som da música…

Subitamente… Sónia abalroa Pedro… Abraçando-o e soltando-o de imediato… Olhando-o à distância com admiração… Como se tivesse sido um acidente…

Leontina e Saudade… Circulavam pelo recreio… Vigiando os alunos…

O professor estudava a área ao pormenor…

Relativamente à iluminação… Constatou que tinha uma luz maior central e mais quatro pequenas em cada canto… A sala era ampla e apenas tinha uma porta de acesso… Isto é… Com luz natural… Fácil de fechar e de escurecer…

- Anda Andreia! – Ordenou Saudade… - Puxando a aluna de perto de Pedro… Que este nem sequer tinha dado conta… Mas… Já estava agarrada ao seu braço… O professor fez-lhe uma festinha…

- Anda comigo! - Ordenou Pedro… - Traz o Luís… O Roberto e o Virgílio… O João e o Mário!

- A onde? – Indagou Carlos…

- Vamos à minha sala!... – Afirmou… Dirigindo-se para lá… - Temos trabalho a fazer!

- Popêeee! – Gritou Sónia… Ao vê-lo partir… Evidenciando algum desespero… Num choro abusado… Rouco e demasiado sonoro…

Andreia… Pendurada em Saudade… Batia as palmas das mãos… De uma forma dura e mecânica… De sorriso armado… Emitia sons agudos… Pequenos gemidos de alegria e de contentamento…

Ao lado uma da outra… Com sentimentos e expressões diferentes… Uma a chorar… Outra a sorrir… Por motivos iguais… Enfim... Tão diferentes manifestações de sensações… Emoções e vivências…

Alegria... Tristeza e raiva... Medo... Ou afectos basicamente puros e primários...  Vultos de comunicação...

Pedro explicou aos alunos que iriam transformar aquela sala numa discoteca… Uma notícia que caiu em grande…

Rapidamente começaram a aparecer sugestões… A maioria dispendiosas e fora de alcance… Mas o professor sabia bem o que fazer…

Com Dora e Irene… Decoraram o chão da sala com reflectores… Reaproveitados de vários tipos de materiais… Como coletes… Triângulos… A maioria agrupados num enorme rectângulo… Que era a pista de dança…

As quatro lâmpadas que estavam nos cantos foram cobertas com plástico colorido… Que dava um efeito muito bom… Ao longo da sala… E para não desperdiçar a pintura das paredes… Colocaram-se umas luzes no chão… Que permitiam ver partes da pintura… No lado contrário… E em cima… Umas luzes de natal suspensas… Atravessavam a parede…

Dora… Ainda conseguiu aproveitar um espelho partido… Que os alunos fizeram em pedaços e posteriormente colaram numa câmara de ar de uma bola… Suspensa ao centro… Girava e reflectia… Luzes… Cor e muito ambiente…

Para além disto… Distribuíram-se quatro colunas de som… Três suspensas e uma no chão… A um canto…

Quando terminaram... Parecia um espaço de diversão nocturna… Algumas mesas e cadeiras… Bancos e música… Carlos ainda teve a ideia de colocar uns leds que piscavam… Muito pequeninos e fracos…

Os alunos desfrutaram do local e os funcionários também…

Pedro dançava com quase todas as alunas da escola…

No escuro das emoções… As luzes alteadas… Alteravam os corpos e as mentes para lá de si mesmas… Passos de dança inovadores e jamais tentados… Inundavam a pista com a coragem de outrora…

Filipe dançava com Maura… Cristina com Bebé… Carlos com Sarita… A um canto… Os clones moviam-se de uma forma mecanizada… Fábio apertado por Raquel… Desfrutava do momento… Carrapito e Samuel estavam mais tímidos… Mas desejosos de começar…

Ramos pedia a Patrícia para dançar… Mas esta fugia-lhe… Luís e Roberto… Inventavam… E deixavam que o corpo se expressasse… Hélio batia as palmas das mãos assustado e Zé… Contemplava o espaço à distância… Completamente abismado…

Virgílio estava na porta com Mário… Como se fossem seguranças… Rosa e Cláudia estavam por perto… Mas estes não pareciam estar a fim de dançar… Ao contrário… Ramos levava mais uma nega… Angela dançava com Ronaldo e Ilda assistia com João… Que tinha de a ouvir...

- Não danças Teófilo? – Questionou o professor…

- Tenho de dançar?... Tenho de dançar? – Replicou… Eu não sei!... Eu não sei! – Exclamou de braço erguido…

O professor sorriu e levou-o ao centro… Entregou-o nos braços de Cristina… Que afinal fazia sempre… Dois passos para a esquerda e dois para a direita…

Teófilo… Segurando-a à distância e olhando para o chão… Acertou o passo… Afinal… O facto de ser tão metódico e prático… Conferia-lhe essa possibilidade…

Pedro ficou a dançar com bebé… Que sorria encantada… Com o seu boneco na mão…

- Com licença Bebé… Quero ver se este professor sabe dançar! – Disse Luz… Entrepondo-se entre os dois…

O professor sorriu e sem que esta esperasse… Puxou-a para si e dominou-a… Rodopiando pelo espaço com suavidade… De um modo agradável e fácil…

Luz seguia-o com leveza… Olhos nos olhos… Pedro perdia-se na profundidade dos seus olhos azuis… No calor das suas mãos e na firmeza das suas curvas… O docente conseguia sentir o cheiro dos seus cabelos…

Os alunos saudavam-nos e aplaudiam… O docente sentiu-se à vontade e ainda a encostou mais a si… O seu corpo estava quente e da sua boca emanava uma fragrância deleitável… Pedro sentia a sua anca e desejava-a…

Luz escapuliu-se e ele ficou só… Mas não foi por muito tempo… Pois… Rapidamente chegou Cláudia… Ainda que… Atrapalhada e com alguma vergonha… Quis dançar com o professor…

Luz já dançava com João… Como se lhe estivesse a dar lições… E nem sequer encarava Pedro com o olhar… Mas este procurava-a…

- Agora sou eu! – Afirmou Leontina… Agarrando o professor e dançando… Demasiadamente… Todavia… Agradavelmente perfumada… Encostou-se a Pedro sem pudor… Este ainda a tomou mais para si… A sua temperatura estava quente e as suas mãos ansiosas… Os seus seios esborrachavam-se no peito do docente… Enormes e apetitosos… Rodaram… Riscando a pista de um lado ao outro…

- Mais devagar!... – Pedia… Enquanto se apoiava no ombro de Pedro… Mas este… Tencionava ter prazer… Por isso rodava-a e aumentava a agilidade…

Virando-a e apertando-a para si… Trazendo-a e expulsando-a… Num gesto de grande intimidade… Leontina chegou a gritar…

Ao longe… Luz assistia… Carrancuda…

A canção termina e Pedro empurra Leontina.. Para que caia no seu braço esquerdo… Amparando-lhe as costas… De cabelos caídos… A sua colega fecha os olhos e apresenta o corpo descoordenado… Pedro aproxima-se quando esta abre os olhos e cria-se um clima… Por momentos… Pedro saiu dali e apeteceu-lhe beijá-la nos lábios… Imensamente carnudos… Leontina pressente-o…

Contudo… O enorme barulho dos alunos… Que assistiam à situação... Como se fosse um espectáculo… Acorda-os…

O professor ergue a colega e fazem ambos uma vénia à multidão… Que aplaude… Os olhos de Luz espetam-se nos corpos dos dois como facas… Imediatamente... Desaparece dali...

António Pedro Santos

(Continua)...

 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

L

Uma vez… Na sala de escolaridade… Pedro levou um gravador e colocou música de fundo…

A banda sonora… Era sublime para contar uma história… Para explicar qualquer situação e auxiliar a concentração dos alunos… Pareciam bem mais dispostos para a aprendizagem…

A música facilita a aprendizagem... Funciona como um referencial... Pois ajuda os alunos a relaciona-la com o conteúdo abordado...

Ramos afiava o lápis… Batendo o pé… Samuel perdera a expressão carrancuda e escrevia… Carrapito… Não tinha a mão na boca… E os sons de Cristina eram mais baixos e pouco frequentes…

Bebé parecia querer dançar… Ainda que sentada… E Filipe gesticulava o seu enorme lápis amarelo… Como se fosse um maestro…

De súbito… Uma nova canção… Uma versão de Bach… Dos Jethro Tull… Bourée...

Uma maviosa flauta invade a sala… O professor aumenta o som da canção… Permitindo que os alunos se levantem… Cada um tem o seu instrumento… Cada um faz a sua dança… Os corpos divagam pelo espaço… Livres e criadores… Sem preconceitos ou prisões…

O professor começa a bailar… Realizando passos de ballet… De dança contemporânea… Posições… Expressões… Tudo arcaico e completamente autodidacta…

Os alunos seguem-no… Gesticulando… Cada um à sua maneira… Com o seu jeito e modo… Sem qualquer preparo…

Os instrumentos aumentam e a música agiganta-se… Os alunos e professor… Exprimem-se com liberdade e confiança…

Ramos... Marreco e quase hirto… Faz umas piruetas de afia na mão… Roda o pescoço e abre os braços… Filipe cai violentamente… Para posições artísticas… Rebolando… Apoiando-se nos ombros e mãos… Até faz flexões…

De mão na boca.. Carrapito movimenta a outra… Para cima e para baixo… Chutando uma perna e outra… Para a frente e para trás... Quando encara o professor… Foge com o olhar… Mas continua e retira a mão da boca e mexe-a também…

Cristina dança quadrada… De pernas abertas… Dois passos para um lado… Dois passos para o outro… De vez em quando levanta os braços e parece sorrir… Bebé imita uma bailarina… Rodopiando sobre si… Levantando o joelho… Esticando a perna... De mão dada com o seu boneco… O seu parceiro Pedro…

Samuel assalta o espaço… Pulando e tentando sempre saltar mais alto… Sem grande arranjo... Compenetrado nos seus movimentos ásperos…

A música evolui e está quase a terminar… Nessa altura… Os alunos estão a dar o máximo… Diversificando as suas acções e levando ao limite a sua representação… Pois sentiram o fim… Sem que este lhes fosse comunicado...

No final… Ficaram estáticos.. Em posições absolutamente encenadas… À excepção de Cristina… Que continuou a marcar passo e que apenas parou… Quando se apercebeu dos colegas…

O professor bateu palmas e disse-lhes que tinham muito jeito para a coisa…

Mais tarde nas sessões de psicomotricidade… Colocou esta actividade em prática…

Sem muito conhecimento… Começou a ensaiar um bailado com esta canção… Dirigido ao grupo de psicomotricidade constituído por Sónia… Os dois clones… Tatiana e Andreia... Hélio e Zé...

No início… Deixou que estes estivessem à vontade… Depois… Baixou as luzes e começou a ensaia-los… Corrigindo-os…

Tatiana balançava o tronco… Para cima e para baixo... Sacudindo a sua cabeça… De um modo espástico...  Amplificando a coisa... Sempre que a música se agravava…

Os clones.. De braços armados e mãos encarquilhadas… Pareciam guizos a tremer…

Hélio batia os pulsos e por vezes parava por algum tempo… Andreia arrastava-se… Expressando-se pouco e por pouco tempo…

Tatiana ajudava-a e convidava-a a bater palmas…

O quadro era giro… Os solistas eram Sónia e Zé… Ela porque… Realmente brilhava... Saltando e rodando o corpo… Espojando-se no chão… E ele porque apenas atravessava o espaço correndo… De microfone na mão… Parando por vezes… Como se estivesse a cantar…

Com o grupo seguinte… Experimentou outra canção… Song for Europe… Dos Roxy Music…

Uma canção lenta… Intensa e que aumenta com o tempo…

Cristina continuava com a sua passada… Cadenciada e disforme...

Mas aqui o professor Fez as coisas de uma outra forma… Combinando movimentos de braços entre Maura e Sara… Sempre iguais…

Raquel e Cristina… Com as pernas.. Alternadas… Bebé e Ilda rodopiavam com os braços ao alto… Como se fossem duas bailarinas…

Ana e Angela… Nas pontas e de costas para o professor… Realizavam agitações corporais cadenciadas…

Posteriormente... Trocavam… Experimentando as posições dos colegas...

O resultado era uma encenação intensa… Onde as energias se concentravam num único propósito...

Não foi fácil trabalhar Ana… Afinal era demasiado tímida… Nem Raquel ou Angela… Mas todas se esforçaram.. Umas mais que outras...

Com o treino frequente… Conseguiram melhorar… Ser mais eficazes… Espontâneas e naturais… Aliviando com a pureza de um acesso à arte… As suas limitações…

António Pedro Santos

(Continua)...

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLIX

O chupetas futebol clube… Não era mais do que uma assembleia de alunos… Nela discutiam-se vontades e desejos… Argumentavam-se situações e definiam-se objectivos… Era um órgão decisor que projectava e implementava actividades...

Um conjunto de representantes de um grupo... Com poder de deliberação... Enfim... A tal democracia participativa... Associativismo... Neste caso dentro da escola...

Realizaram-se imensas iniciativas ao longo do ano lectivo... Todas organizadas pelos elementos da direcção do clube... Dirigidas a todos...

Fizeram-se caminhadas à sexta feira… Pela cidade e em locais mais campestres… Com subidas e descidas… E percursos mais ou menos sinuosos…

Uma actividade física fácil de ser praticada e acessível a todos... Ajuda a manter a forma física... Melhora a auto estima... Previne e controla a hipertensão... As diabetes e a obesidade... É excelente para a saúde mental...

Organizaram-se jogos de futebol… Que decorriam de uma forma completamente anárquica… Muitos deles… Desconheciam sequer qual era a sua baliza … Ou melhor... Qual era a que tinham de defender e a que tinham de atacar...

Ronaldo era perito em marcar golo na própria baliza e comemorava-o efusivamente… Com o mesmo entusiasmo... Como se fosse de forma correcta...

Carlos… Luís e Roberto… Pareciam estar num nível diferente… Pois possuíam uma maior coordenação motora e conheciam a grande maioria das regras... João era um grande sarrafeiro e Bruninho amuava sempre que perdia… Escondendo o rosto por entre os braços...

Os restantes… Saltavam e corriam atrás dos colegas… Um pouco perdidos e ao acaso... Talvez atrás do barulho... Da bola e da confusão...

Zé entrava e saia do campo quando queria… Na verdade… Pedro não se ralava com isso… Pois o seu objectivo principal era que fizessem algum exercício físico…

Existem várias razões para a inactividade nos deficientes... Como por exemplo... A falta de hábitos de prática regular de actividade física... Carência de oportunidades de prática e de meios... Inexistência de programas adaptados às suas necessidades... Enfim... Até a quebra de apoios financeiros e de profissionais habilitados...

De um modo geral... Procuravam-se elevar as capacidades e habilidades motoras... A autonomia e a segurança... A independência pessoal e social... Com o propósito de incutir hábitos de vida saudável... Assim como... Conhecer novas realidades e adquirir novas competências... Demonstrando atitudes de interesse... Respeito e participação...

Outra das actividades que revelou interesse por parte dos alunos... Foi um torneio de desportos de combate… Isto porque… Era uma mistura de judo e luta greco romana… karaté e improviso... Aprendido na rua ou na televisão...

Carlos desempenhou as funções de árbitro… Os colchões compunham-se no centro do ginásio… O público estava separado por trás de uma fita de balizamento…

Realizaram-se vários combates… Alguns bastante engraçados… Como o de Cristina e Bebé… Esta última atacava a colega sem piedade… Pelo contrário... Cristina ria e fugia… Perguntando... Completamente alheada:

- Que é isso Bebé?... Rum… Rum… Que é isso Bebé?... Rum… Rum…

- Anda cá!... Sua parva! – Chamava Bebé… Cercando-a…

- Então Cristina? – Perguntava para si própria… Em busca de resposta ou reacção... - Então?... Rum… Rum…

Também aconteceram lutas interessantes… Como a de João e Mário… Patrícia e Cláudia… Enfim… Muito mais renhidas e equilibradas...

Roberto lesionou-se logo… Era enorme… Contudo… Apresentava sempre imensa fragilidade… Face a qualquer investida mais fraca deixava-se cair ou magoava-se… Era muito fingido… O que ajudava ao espectáculo...

Luís destacou-se de longe nos mais velhos… E Filipe também… Nos mais novos... Este último… Muito pouco flexível… Mas sempre muito interessado e participativo nas actividades desportivas…

Carlos… O árbitro… Tinha instruções para que todos se cumprimentassem… No início e no final… Com uma saudação… Uma forma de promover o respeito... A cordialidade e o desportivismo...

Noutro dia… Combinaram um torneio de jogos tradicionais… Com estações dispersas por todos os espaços da escola… Com malha… Corrida de sacos… Petanca… Cabra cega e macaca… Lencinho da botica... Jogo do eixo e do galo… E muitos mais…

Estes jogos... Directamente ligados às raízes populares... Associando a história... A sociologia e a etnografia... A psicologia e à própria pedagogia... Transmitidos de geração para geração... De velhos para novos... Com variantes e adaptações... Num convívio saudável... Em que descontraidamente se joga...

As crianças e os jovens daquela escola divertiram-se e os funcionários também …

Para os alunos mais limitados… Pedro criou com os alunos mais velhos… Um local acolchoado no exterior… Para que explorassem os materiais e brincassem livremente…

Realizou-se um dia de ginástica… Com um percurso gímnico adequado e estruturado… Para que os alunos circulassem… Com colchões… Espaldar… Banco sueco e outros obstáculos…

Neste... efectuaram enrolamentos… Rotações e deslocamentos… Equilíbrios… Saltaram e treparam… Gatinharam e rastejaram… Em suma... Experimentava-se a ginástica… Numa fase puramente inicial… Os mais velhos ajudavam… Tentava-se que todos participassem sempre…

No final de cada actividade… Havia uma cerimónia protocolar... Carregada de palmas e alegria... Com a entrega de um diploma de participação para cada um… Assinado pelo presidente do clube... Que era o Carlos… Por Pedro… Que era o professor de educação física… E por dona Filó… A responsável pelo colégio…

Uma das grandes preocupações deste projecto… Era que todos participassem… Mesmo os alunos mais condicionados… Para eles concebiam-se actividades adaptadas e parecidas… Com ajuda… Ao colo ou em apoio… Outras vezes apenas sentados nas cadeiras de rodas… Pois... O objectivo também era o convívio e a interacção social… A exploração do meio… Os cheiros e os sons… Os estímulos visuais… As conversas e os toques…

A verdade é que a cumplicidade e o respeito por estes crescia… Assim como a intimidade… Nascendo uma maior empatia… Sempre que escutavam o seu nome…

Por outro lado… E para a grande maioria… Havia um trabalho de sensibilização e de conquista para a prática desportiva…

A prática desportiva melhora a qualidade de vida... Quando se pratica alguma actividade de carácter desportivo... As crianças e jovens expressam os seus sentimentos... Valores... Assim como a forma de sentir e entender o mundo...

Deste modo... É imperioso que se conheçam as regras... Que se demonstre empenho e uma boa conduta... Tendo em conta os padrões éticos... Morais sociais...

Um dia foram à piscina municipal… Pedro deu a aula numa piscina de vinte cinco metros sem pé… Isto é… Profunda…

O professor contactou a câmara municipal que lhe emprestou duas pistas para trabalhar naquele dia…

Para além disto… Conseguiu convencer algumas das suas colegas a ajudar… A educadora social Martinha… Júlia… Dora e Irene… Vestiram o fato de banho e foram para dentro de água com ele…

O professor armou os mais afoitos… Como Luís… Filipe… Mário… João… Patrícia e Cláudia… Com chouriços… Os restantes… Com maiores dificuldades... Foram com coletes e cintos de hidroginástica…

Fizeram saltos… Cavalinhos… Deslocaram-se de barriga para baixo e ao contrário… Numa espécie de forma de nadar... Enfim... A capacidade do indivíduo dominar a água... Deslocando-se de forma independente e segura sob e sobre a água... Utilizando toda sua capacidade funcional e respeitando suas limitações.. Num movimento de liberdade... Sem qualquer apoio...

A prática de actividades aquáticas propiciam... Neste tipo de alunos... Uma maior resistência por parte do organismo face às mudanças de temperatura... Evitando por isso algumas doenças...

A frequência deste tipo de actividade contribui para o fortalecimento dos músculos... Aumento do equilíbrio e relaxamento muscular... Assim como... Para a diminuição de espasmos e aumento da amplitude dos movimentos corporais... Ajuda na melhoria da postura... Alívio de dores e das tensões do foro psicológico... Entre outras coisas...

Houve que experimentasse o deslocamento sem qualquer alicerce… Foi uma aquisição importante… Ainda assim… Alguns tiveram grandes dificuldades em largar o conforto da parede… Como Bruninho e Ramos… O primeiro abraçou-se a Pedro com tanta força… Que o fez beber alguma água… E Ramos arrancou-lhe parte dos pelos do peito… Mas... A ideia era que todos os experimentassem…

Ainda houve algum tempo no final… Para que o professor entrasse com os alunos da sala de estimulação global I… Com uma fralda à prova de água…

Com a ajuda de algumas colegas... Movimentou-os... Realizou flexão e extensão dos membros... Rotação das articulações… No fundo.. Conheceu com eles… Uma realidade que também desconhecia... A magia da água... Isto é... Um meio estranho que posteriormente os liberta e arranca um sorriso...

A água era de facto um meio surpreendente… Independentemente das suas limitações... Pois... Enaltece e faz sobressair as suas capacidades...

Dentro dela... Executam movimentos impossíveis de realizar fora de água...

Ruben entrou aos gritos… Auto agredindo-se… Com o tempo… A temperatura de todo aquele meio estranho… Acalmou-o e quase que adormeceu… Bento e Rafael… Realizaram movimentos… Habitualmente difíceis… Sem qualquer expressão de incómodo ou dor… Miguel parecia querer nadar.. Efectuando movimentos desconjuntados… Já… Salvador… Parecia um peixe… Chapinando e rindo… Completamente louco e feliz…

Por mais do que uma vez...  Fizeram algumas actividades relacionadas com o atletismo... Como lançamentos... Saltos e corridas... Até um corta-mato de curta distância…

Neste... Obrigaram os alunos a correr… Sobretudo os mais obesos e presos… Ilda teve uma belíssima prestação… Assim como… Filipe… Raquel e Teófilo… Arranjaram-se dorsais com o número na frente e uma enorme fita de meta… Que Irene e Dora Seguraram… Muitos dos alunos cortaram-na mais do que uma vez… De braços jogados ao ar de contentamento… Afinal... Também entendiam o significado da vitória...

Não fosse a corrida... Também ela... Uma forma de expressão... Imensa de técnica e de estratégia... Em percursos mais ou menos sinuosos...

A finalidade destas actividades... Era sensibilizar os alunos para a prática desportiva… Uma vez que... A maioria deles não tinha hábitos de vida saudável… Muitos eram obesos… Pouco flexíveis e colocados à margem por todos por terem dificuldades… Se perdiam sempre… Acabavam por desmoralizar-se e desistir… Muitos criavam estigmas e recusavam o desporto… Pequenas cicatrizes que perduravam e máscaras cerradas que teimavam em sair...

Aos poucos… Com as aulas de educação física… As sessões de psicomotricidade e as actividades do clube... Aquela escola passou a ser mais saudável… Os hábitos eram outros… Muitos dos alunos andavam vestidos diariamente de fato de treino… E percebiam que podiam ser mais fortes... Mais hábeis e mais esbeltos…

A par do exercício físico e dos seus benefícios... Implementaram-se na escola... Toda uma série de estratégias... Com vista a elevar as capacidades e habilidades motoras dos alunos... Assim como... A sua higiene e apresentação...

No que diz respeito à alimentação... Fizeram-se novas ementas e tiveram-se em conta os pressupostos para uma alimentação equilibrada... Ou seja... Ingerir energia na forma de proteínas... Hidratos de carbono... Lipídios e vitaminas... Fibras e água... Cozinhá-los adequadamente e distribuí-los convenientemente ao longo do dia...

Os deficientes... São um grupo de risco... No que se refere à saúde mental... Estando mais susceptíveis ao aparecimento de doenças... Como a depressão e a ansiedade... A falta de motivação e outras coisas...

A prática do exercício físico... A par com uma boa higiene e uma alimentação equilibrada... Contribuem para uma melhoria efectiva da saúde mental... Pois amplifica a capacidade de resistir às exigências da rotina diária e controla os níveis de ansiedade... Combate as depressões... Eleva a auto estima e ajuda na construção de uma identidade pessoal... Própria... Resiliente e saudável...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLVIII

O natal havia chegado… Ou melhor… Aproximava-se… Era tempo de rever a família e regressar a casa…

Uma data santa e cristã...  Comemorada por quase todos... Até ateus...  Que eufóricos se tornam vitimas de uma sociedade de consumo e trocam presentes... Aumentando a economia nacional de uma forma desenfreada e absurda...

Naquele colégio… E na maioria das escolas do país… Os alunos andavam encantados… Isto porque… Ainda que… Limitados… Também eram conquistados pela estratégia das grandes superfícies para a quadra natalícia…

Uma sociedade de consumo... Onde a oferta se torna maior do que a procura... Com auxilio da publicidade... Que dá e oferece... Engana e deturpa... Padrões de vida e consciências... Mecanicamente guiadas para ilusões diminutas... A bem da banca e da finança... 

Pedro… Com Martinha... Luz e Júlia… E até com a ajuda de Leontina… Conseguiram arranjar alguns presentes para os alunos… Coisas muito simples… Porém… Bastante significativas…

O comércio tradicional contribuiu… Com canetas… Blocos e porta chaves… Alguns brinquedos… Livros usados… Enfim… Tudo se arranjou… Adquiriram-se sacos decorados e guardaram-se… Para posteriormente distribuir pelas crianças e jovens…

Ao mesmo tempo… Pediram aos alunos para trazerem de casa alguns géneros alimentícios… Com esses… Fizeram um enorme cabaz de natal… Ou melhor... Um caixote de natal...

Compraram-se blocos de rifas que os mais velhos preencheram… Mais tarde… Realizaram-se arruadas e vendas… Ramos destacou-se… Pois era demasiado absorvente e conseguia ter sucesso…

As oficinas conceberam cartazes e convites para a festa… Que se distribuíram pelos discentes… Para que trouxessem os pais… Assim como… Por algumas entidades parceiras… Junta de freguesia e empresas que recebiam os alunos das áreas vocacionais externas…

A festa de final de período foi um sucesso…

Bela e Preta… Recorreram à ajuda de alguns alunos para fazer os doces e os bolos… Bem como… Irene e Dora… Que decoraram o refeitório com motivos natalícios…

Houve uma peça de teatro… Organizada por Júlia… E um coro que cantou uma canção de natal… Ensaiada pelo professor…

Luz convidou um senhor que tocava acordeon para abrilhantar a festa… Teófilo e Cláudia foram os apresentadores de serviço… Se bem que… Martinha estava na retaguarda…

No final… Ramos disse uma quadra… Qualquer coisa de amor de mãe… Menino jesus e anjinhos… Pela sua dificuldade e voz nasalada… Teve maior impacto... Houve quem se emocionasse… A sua mãe chorou…

- Está na hora! – Segredou Leontina… Batendo no ombro de Pedro…

- De quê? – Perguntou surpreso…

- Vem comigo! – Ordenou…

Seguiram ambos por uma porta lateral… Que dava para a cozinha… Pedro seguiu-a…

Ao chegar… Já lá estavam Telma e Carla…

- Tens de ser tu… - Gaguejou Telma… Segurando um fato de pai natal…

- Espero que te sirva! – Disse Carla…

Pedro nunca tinha feito de pai natal… Mas sorriu e acatou a ideia…

Colocaram umas almofadas para que este parecesse mais gordo e uma barba muito branca e grande… Uns óculos escuros tapavam os seus olhos… Ao mesmo tempo… Escutava a multidão a clamar:

- Pai natal!

Lá foi… Com um grande saco do lixo às costas… Sem muito jeito para representar… Acabou por se esmerar…

Assim que viram chegar o pai natal… A maioria dos alunos ficaram doidos e completamente excitados… Até os mais velhos…

Alguns pais e funcionários da escola… Tiveram de segurar alguns dos jovens… Como Andreia… Fábio… Tatiana… E mais…

Sónia gritava… Chorando:

- Popê!... – A verdade… É que aos olhos de Pedro… Parecia ser a única que o havia reconhecido…

Zé afastou-se para a entrada do refeitório… E Hélio batia os pulsos um no outro… De olhar desviado e estático… Talvez assustados com o momento… Cheio de ruído e confusão…

Saudade e Júlia… Fizeram um esforço para que estes se aproximassem…

O professor alterou a voz e chamou-os a todos… Um por um… Havia um saco de presentes para cada um… Decorados nas oficinas e montados com a ajuda de todos… Depois… Ainda houve distribuição de lembranças pelos pais… Um conjunto de trabalhos que os alunos tinham realizado nas salas…

Ao professor… Sensibilizou o facto de a maioria dos alunos desfrutarem do momento com muito prazer… Afinal era natal… Estavam com os amigos e a maioria até tinha consigo a família… Bebé… Cristina e Filipe… Bruninho… Sarita e Maura… Estavam encantadíssimos com o ambiente…

Por outro lado… Os pais dos clones não foram… Nem os de Mário e Ana… Nem havia ninguém da família de Sónia ou de Virgílio… Era triste… Mas… Quem sabe se não seria melhor assim… Sempre estavam mais à vontade e talvez não apanhassem vergonhas…

Para a maioria  dos alunos… Aquele momento foi muito importante…

- Onde foi o professor Pedro? – Perguntou Ronaldo…

- Deve estar por aí!... – Respondeu dona Filó… Trocando com Pedro um sorriso…

Ali perto… Presa por alguém… Sónia gritava pelo seu nome:

- Popê!... Popê!... Popê!...

Samuel olhou sempre para o pai natal com um ar desconfiado… Zé beijou-o na testa quando recebeu o seu presente… Que o professor teve de lhe levar pessoalmente… Nesse momento teve a certeza de que este o reconheceu… E sem querer… Deixou que os seus olhos se molhassem...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLVII

Na sala da música… Pedro realizou várias experiências…

Na oficina construíram-se alguns instrumentos musicais… Que foram utilizados em algumas actividades… Por vezes… Pedro tocava uma canção conhecida… Para que os alunos o acompanhassem… Aos poucos… Introduziu as suas… “Uma vida por um dia” e “Ar do mar”…

Os que já sabiam ler… Dispunham de um papel com a letra… E curiosamente… Alguns que não sabiam… Ou simplesmente… Não sabiam tão bem… Também gostavam de o ter… Talvez fosse uma questão de estilo ou estatuto...

Um dia… Apanhou Cristina com a sua folha de cabeça para baixo… Enfim… Ela apanhava parte da letra no ar… Mas mantinha a pose…

A maioria ia pelo ouvido… Pelo som da guitarra... Ou... Pela voz dos colegas e professor…

Teófilo estava num canto da sala… Olhando pasmo apara a folha de papel… Os restantes deliravam por entre a sequência de sons… Mais ou menos encadeados… Uns faziam playback… Outros… Elevavam a voz no refrão… Ou em alguma outra parte já adquirida por estes…

Teófilo contemplava a folha com estranheza… porém... Parecia tentar ler…

No final… Pedro pediu-lhe que ficasse… Para conversar:

- Professor! Professor! Eu tenho de lanchar! Eu tenho de lanchar! – Repetiu preocupado… A papaguear…

O docente explicou-lhe que seria por muito pouco tempo… E pediu-lhe que se sentasse à sua frente e lesse a folha em voz alta…

Teófilo lia razoavelmente bem e a sua voz era grave… Bastante marcada e agradável…

Posteriormente… Segurou a guitarra e solicitou que o acompanhasse…

- Eu não sei cantar! Eu não sei cantar! – Repetia… Erguendo o braço… Para dar mais ênfase ao seu argumento.... - Eu não sei cantar! Eu não sei cantar!

- Teófilo!... – Exclamou o professor… Elevando a voz… - Atenção! - E seguiu... Iniciando a canção... Devagar: - Pergunto… Se a minha vida vai mudar… - Ordenando-lhe com os olhos para que entrasse na canção e no tom…

- Estou certo! – Cantou Teófilo… De uma forma dura e demasiado quadrada…

O professor parou a música e recomendou-lhe que se soltasse e desse algum balanço à voz…

- Faz como eu… - Recomendou… Recomeçando de novo em Mi maior… - Pergunto

Teófilo entrava na canção… Com maior melodia… Olhando o docente… Como que… Aguardando o seu feedback… Pedro realizou um sinal afirmativo com a cabeça…

- Pergunto… Se a minha vida vai mudar… - Cantaram em coro…

- Es… Estou certo!... - Atalhou o aluno… Precipitadamente…

Pedro ia corrigindo o seu desempenho… Aos poucos e com paciência… As coisas iam correndo relativamente bem…

Na porta da sala… Zé observava-os… Sem se manifestar… Apreciando de um modo especial… O que ali se passava…

Não fazia qualquer ruído como era habitual… Apenas observando com admiração…

No início… O professor ignorou-o… Prosseguindo… Mas… Com o tempo… Fez-lhe sinal para que entrasse… Silenciosamente… Foi-se aproximando dos dois… Rodopiando e expressando-se com o corpo… Num esbracejar… Com o microfone na mão… Sempre com zelo e cuidado... Apreciando o momento de um jeito profundo… Cuidadoso e especial…

- Já posso ir lanchar? – Perguntou… Erguendo a mão… - Eu tenho de lanchar! Eu preciso! Eu preciso!

- Já vais Teófilo!... Vamos terminar a canção.!...

Zé deambulava pelo espaço… Abismado e muito compenetrado em toda aquela sonoridade… Como se fosse uma obra prima… Ou... Uma peça de arte feita à mão... Como algo que aspira à perfeição... Beleza e elegância...

- Muito bom Teófilo! – Acervou o professor… - Agora já sabes cantar! Estás de parabéns!...

- Já sei? – Questionou curioso… - Acha? Acha? Acha?

- Sabes e sempre soubeste! Só não tinhas experimentado!

- Acha? Acha?

- Toda a gente sabe cantar! – Exclamou o professor… Uns mais do que os outros… Há que prestar atenção à letra… Ensaiar… Sobretudo ensaiar! – Assegurou o docente…

- Ensaiar! Ensaiar! – Reiterou… Apanhando apenas a última palavra da frase… Aliás… Como era habitual…

Subitamente ergueu-se e interrogou:

- Já posso ir lanchar? É que eu preciso! Preciso! – Disse… Erguendo de novo a mão…

O professor sorriu e deixou-o ir…

O aluno saiu e Zé ficou por ali… Pedro não disse nada e continuou a tocar a guitarra sem lhe dar muita importância…

O professor fechava os olhos e entregava-se à música e à magia dos sons…

Zé aproximou-se e começou a olhá-lo de perto… Como se fosse uma peça de museu… Sem lhe tocar… Contudo… Muito próximo… Procurando o contacto dos olhos do professor… Que por sua vez... Tentava fugir deste… Aliás.. Como o aluno habitualmente fazia…

Subitamente… Pedro parou num acorde… Em que arranhou as cordas mais forte… Num varrer seco… Os olhos dos dois encontraram-se por momentos… Zé focou-o intensamente e beijou-o na testa… Ou melhor… Tocou-lhe com os lábios… Dispersando posteriormente para fora da sala… Como sempre...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLVI

No dia de ir à direcção regional... Pedro e dona Filó meteram-se à estrada na viatura desta…

O seu automóvel era um utilitário básico e normal… Sem grandes requintes ou tecnologia de ponta…

Combinaram no café às quatro da tarde… Tinham hora marcada a partir das seis… Teriam de se despachar…

Embora a direcção regional funcionasse das nove às cinco… A situação destes também era considerada excepcional… Afinal… A tal senhora prontificara-se a recebê-los após o término das actividades lectivas…

- Tem tudo consigo professor? – Perguntou dona Filó… Assim que entrou no carro…

- Penso que sim! – Exclamou… - Ora… - Disse verificando… - Tenho aqui o projecto educativo… Regimento interno e plano de actividades… Sim! Está tudo! – Afirmou seguro…

Ao longo da viagem… Dona Filó alertou Pedro acerca da pessoa com quem iriam estar… A responsável pelo departamento de educação especial… Uma tal de Rosa…

Parece que… Tinha por hábito problematizar a maioria das situações que menos interessavam… Criando problemas… Onde simplesmente não existiam razões para alarme… Debruçando-se sobre conjunturas que pouco ou nada contribuíam para o desenvolvimento… Segurança e bem estar das crianças e jovens… Como tanto apregoava… Afinal… Estava afastada do ensino… Isto é… Do terreno de intervenção… Há muitíssimo tempo…

Segundo diziam… Tinha leccionado apenas dois anos em toda a sua carreira.. E diz-se que havia sido um desastre… Enfim… Situação algo aberrante… Porém… Super comum na nossa vida educativa e até social…

Ainda assim… Falava com classe… Como se dominasse a prática e a intervenção…

Não passava de mais um caso comum e demasiado banal da nossa sociedade… Pessoas distintas em distintos cargos… Ganhando bolor e bicho de tanto tempo… Falando com conhecimento de causa… Sem sequer dominar a razão… O entendimento e tão pouco a arrogância… Dominando tudo e todos.. Ou tentando… Sem que no fundo conheçam coisa alguma da realidade em que se vive…

- Mas sabe… Eu até a levo bem! – Acrescentou sorrindo… - No fundo… Ela não passa de uma senhora importante… Ou armada em… - Nisto... Fez uma pausa… Enquanto meteu a mudança… - Se nós formos inteligentes… Demonstrar-mos classe… Temo-la na mão!

- Mas… Qual é a função dela em relação a nós? – Inquiriu o professor... Entremostrando alguma curiosidade e preocupação…

Dona Filó explicou-lhe… Que por fazerem parte de um estabelecimento de ensino particular e cooperativo… Tutelado pela direcção regional… Que inicialmente lhes concedeu uma autorização de funcionamento provisória e posteriormente definitiva… Obrigava a inspecções frequentes… Auditorias… Entre outras coisas... Como envio permanente de mapas e documentos...

Mais tarde... O professor descobriu... Que aos estabelecimentos de ensino particular  de ensino especial... Eram exigidos alguns requisitos de funcionamento... Como possuir uma de autorização de funcionamento... Ter instalações  adequadas  às  exigências  da acção educativa... Cumprir o contrato colectivo de trabalho... Possuir um director pedagógico e uma equipa multidisciplinar... Assim como... Desempenhar todo um  conjunto de actividades e acções ao nível da concepção de documentos de prestação de contas...

Também aprendeu que a direcção regional... Supervisionava a atribuição de subsídios àquele tipo de colégios... Fossem de frequência... De transporte ou de alimentação...

No caminho… Combinaram estratégias… Conversas que poderiam acontecer… Respostas possíveis e até as mais indicadas… Enfim... Dona Filó preparava-o para possíveis questões…

O transito do final do dia… Começava a cansar os corpos… Que entediados e amargurados… Fluíam para além das suas possibilidades sãs… A bem da economia… Sustentada e monopolizada…

O edifício era velho… Cinzento… Carrancudo e frio… Com segurança privada à porta…

Por dentro… Uma parvidade de corredores… Onde circulava gente bem engalanada… Como se fossem comerciais… Deambulavam… Cheirosos e altivos…

Mais tarde.. Pedro soube que a maioria eram professores…

Salas e mais salas… Mulheres graciosamente elegantes… Como dona Filó… Enfim… Vestidos… Muitos aromas e gravatas…

A directora… Mais habituada ao ambiente e ao funcionamento da coisa… Dirigiu-se prontamente ao gabinete da doutora Rosa… A responsável pela educação especial do distrito…

Ao entrarem… Apareceu uma senhora na casa dos quarenta anos de idade… Contudo.. Aparentava ser mais velha… Bem decorada… Como todos… Charmosa e demasiado aprumada… Nariz apontando o tecto e rosto importante…

Desferiu beijos e elogios rasgados a dona Filó… Aos quais... Correspondeu em pleno… Afinal… Era demasiado experiente para se deixar ficar para trás… Dizendo banalidades do género… “Olá como está?”… Ou… “Está na mesma!”… Ou ainda… “O tempo não passa por si!”… Enfim… Uma troca de galhardetes habitual… Todavia hipócrita e completamente artificial…

- Doutora Rosa!... Este é o nosso director pedagógico… O professor Pedro!

A colega… Sim… Porque ela também era professora… Ainda que… Tivesse há muito tempo ausente naquele cargo… Olhou o docente com frieza e algum desdém…

O professor sentiu a sua importância… Contudo.. Ignorou… Porque quando esta lhe estendeu o braço para o normal aperto de mão… Pedro inclinou-se e deu-lhe dois beijos na face…

Dona Filó… Que se encontrava por trás desta… Piscou um dos olhos e sorriu…

Pelo contrário… Rosa... Ou melhor… Doutora Rosa… Como parecia gostar de ser tratada… Quase mudou de cor… Com tamanho atrevimento… Mas recompôs-se…

Convidou-os a sentar numa mesa propícia a reuniões… Redonda e maior do que as outras…

Pedro contemplava o espaço… Os quadros na parede… As cadeiras bem diferentes das escolas… O cheiro a higiene e o ar condicionado… Era este afinal o estado das coisas… Ordenados chorudos para alguns funcionários públicos… Bem diferentes daqueles que diariamente são castigados com cortes e trabalho… Bons carros… Motoristas e cartões dourados… Não fosse esta uma republica de bananas… Ou... País à beira mar sentado... Cada vez mais decrépito e perdido…

Sentada à cabeceira… Começou por explicar os propósitos do governo para a educação especial… O perfil dos docentes e das equipas de intervenção… A falta de empenho e o deixa andar de alguns deles… O corte de verbas… Gastos e despesas… A carência de recursos… Associada à inexistência de professores especializados e devidamente habilitados para trabalhar com aquela população escolar… Enfim… Sempre a bater na tecla do empenho... Dedicação e rigor… Segundo ela... Há muito perdidos e esquecidos por esta nova geração de profissionais da educação… 

Para Pedro... Uma conversa politicamente reaccionária... De alguém que não tem moral nem escrúpulos... Que se agarrou a um tacho e lá ficou… De quem nada sabe da vida... Porque vive e passa muito bem… Mas... Que sugere e exige formas de estar e de andar…

A conversa centrou-se.. Sobretudo… Na importância dos papeis… Ou seja… Documentos logísticos… Imperiosos e demasiado importantes para o funcionamento das escolas e colégios de educação especial…

Pedro já estava enjoado daquela retórica… Obsoleta… Tanto saber… Ou melhor.. Pseudo saber… Recitando portarias… Despachos e decretos lei… Gabando-se do seu passado… Glorioso e curandeiro… Evocando louvores pessoais… Estratégias e vivências… Melhores que as de todos… Quase únicas...

Naquela conversação… Ou monólogo fanático... Sobressaia um carácter de circunstância... De uma retrógrada conservadora... Que caminha consoante a maré... De alguém que defende a manutenção de uma condição política e social... Rejeitando qualquer inovação ou mudança...

Doutora Rosa até encerrava os olhos… Falando com emoção e paixão…

Em uma das vezes que o fez… Os olhares de Pedro e de dona Filó cruzaram-se… E esta bocejou… Apontando-lhe o relógio…

Nesse preciso momento… O professor interrompeu-a… Com subtileza e delicadeza… Isto… Se é que existe alguma possibilidade de haver suavidade ou educação quando se interrompe alguém…  A verdade é que se calou… Contudo... Abriu-lhe os olhos… Arregalando-os na sua direcção por tamanha ousadia…

Todavia… O professor não se deixou intimidar… E continuou… Dando início à apresentação dos seus documentos… Num discurso em que alternava os olhos entre a sua directora geral e a doutora Rosa…

Dona Filó… Sorria embevecida com o seu desembaraço e arrojo… Ao contrário… A outra parecia querer falar… Mas Pedro não lhe dava hipótese… Pois havia encetado uma conversa sólida e racional… Fundamentada e baseada na legislação...

As suas palavras misturavam o estatuto do ensino particular e cooperativo com o paralelismo pedagógico... A autonomia e a organização das escolas... Com as necessidades e limitações dos alunos... Os recursos e os tempos lectivos... A paixão do trabalho real... Pela magia dos progressos e capacidades dos discentes... Nas ofertas do colégio... Desde as terapias às salas... Do empenho dos profissionais e do trabalho de equipa... Nas directrizes dos despachos... Decretos e documentos orientadores... Da ideia das áreas vocacionais... Como início... Aos estágios no exterior e à transição para a vida activa...

Enquanto isso… E enquanto falava… O professor ia distribuindo um exemplar à doutora Rosa de cada documento… Ou seja… À medida que os ia apresentando e explicando… Permitindo que esta... Assim como dona Filó… Intermediassem os olhares pelos papeis e os ouvidos pelo discurso de Pedro…

O professor realçou a importância da inclusão dos alunos na sociedade... Começando por uma mudança essencial de atitudes e de mentalidades... Da articulação necessária entre o ministério da educação... Direcções regionais de educação... Escolas e sociedade... No sentido de auxiliar e apoiar todo o processo... Da importância das famílias e comunidade envolvente... Na aceitação da deficiência e de todos os cidadãos portadores de deficiência... Permitindo e contribuindo para uma integração plena...

Arrebatada… Dona Filó escutava-o com atenção… Por outro lado… Rosa parecia fumegar por dentro… Incomodada e importunada…

Embora desempenhasse um cargo daqueles… Aparentava e expressava instabilidade… Imensa de distância… Algum glamour barato… Elegância estranha e de pouco requinte… Enfim… Alguém que escondia o seu ser  por detrás de um lugar elevado… Quem sabe se a sua pequenez… Ou as suas origens… Provavelmente simples e humildes… Talvez a tivessem mudado e transformado…

Para Pedro… Representariam certamente orgulho e respeito… Para Rosa… Vergonha e esquecimento…

Quem sabe se não era isso… Provavelmente chegara de baixo…

Mais tarde… O docente descobriu que se tratava de uma professora do primeiro ciclo do ensino básico… Ou melhor… Professora primária… Do antigo magistério… Havia realizado o curso e trabalhado apenas dois ou três anos com alunos…

A verdade é que se agarrou àquele lugar com unhas e dentes… Pois foi das primeiras pessoas a especializar-se na área da educação especial… Se bem que… Jamais trabalhara nessa esfera… A não ser naquele cargo… Distante e demasiado acima das reais necessidades... Dificuldades e encantos do terreno… Um facto… Aliás… Impressionante… Porém… Comum em tantos campos profissionais…

Pedro terminou a sua exposição e fez uma respiração profunda… Houve um compasso de espera e de silêncio:

- A doutora importa-se que eu vá lá fora fumar um cigarro? – Perguntou dona Filó… Erguendo-se da cadeira…

- Ora essa! – Exclamou Rosa… - Fume aqui mesmo! – E levantou-se para ir buscar um cinzeiro… Praguejando que não era fumadora… Contudo… Compreendia e não se importava nada… 

Dona Filó acedeu à conversa e ao sorriso da doutora e lá ficou…

Naquele tempo fumava-se em quase todos os sítios… Neste tipo de gabinetes… Dependia de quem lá trabalhasse e dos seus hábitos… Porque fundamentalismos… Sempre existiram e existem…

A verdade é que Rosa… Na presença de uma senhora tão singular como dona Filó… Se desfazia e derretia… Face à sua classe e elegância… Afinal… A pose sempre impressionou e impressiona… Quem é demasiado pequeno por dentro… E quem sabe por fora… Na verdade… Talvez seja aqui que se veja o verdadeiro tamanho e importância das pessoas…

Ao professor… Também lhe apetecia fumar um cigarro… Pois… Era demasiada conversa e algum nervosismo… Mas… Achou que não devia… Talvez Rosa não achasse muita graça…

- Sabe colega… - Iniciou… - Estes documentos estão muito aquém do que é necessário!... – Declarou… Encerrando os olhos… Como que desdenhando… - O projecto educativo… Está desfasado da realidade… O regimento está mal estruturado e organizado. – Destacou… Firmando o dedo indicador… - E… O plano de actividades está incompleto!

Pedro engoliu em seco… Invadido por um frio que de imediato se transformou em raiva… Que o tomou e assumiu… Por seu lado… Dona Filó olhava para o chão… Bafejando o cigarro…

- Veja estes documentos! – Convidou… Colocando na mesa alguns exemplares de outros estabelecimentos de ensino… Pedro acedeu ao seu pedido e começou a folheá-los… Enquanto ela falava… Demasiado absorvida nas suas próprias palavras…

O docente deixou de a ouvir e olhou os documentos... Um por um… Na verdade… Não os achava melhores que os seus… Diferentes sim… Pouca conversa… Demasiados bonecos e um belíssimo trabalho de configuração… Pedro não disse uma palavra…

- Oh colega… Não esteja preocupado! – Disse… Confortando-o… Talvez pensando que o tivesse abafado… - Isto resolve-se! – Enquanto isso… Olhava para dona Filó com afeição… - É normal… Que com a sua pouca experiência e idade proceda desta forma!... São novos! Inexperientes!... Estão a aprender! – Acrescentou… Olhando para dona Filó e sorrindo…

A cabeça de Pedro parecia querer explodir… Sempre demasiado jovem… Sem conhecimento… Pouco habilitado… E mais e mais… Que jovem conseguirá a tão desejada e exigida experiência… Se jamais terá a possibilidade de entrar para o mundo laboral?…

Discretamente… Pedro abriu o seu maço de tabaco… E sem que ambas percebessem… Colocou o cigarro na boca… Encerrou os olhos e tranquilamente.. Interrompeu:

- Sabe colega… Subestimar uma geração é desacreditar a sua também! – E nesse momento abriu os olhos... Acrescentando… - Afinal… Foram vocês que nos educaram e formaram…

O fumo já invadia de novo a sala… Os olhos da doutora estavam esbugalhados na direcção do professor… Quem sabe pensando para si… Tanta arrogância e desplante…

Dona Filó piscou-lhe um dos olhos… Pedro sentiu mais força e disse:

- A experiência é importante… Porém.. O empenho e a entrega talvez tenham maior impacto social! – A doutora ia dizer qualquer coisa… Mas Pedro não deixou e continuou… - O projecto educativo não me parece nada desfasado da realidade em que trabalhamos… Há jovens com imensas dificuldades e necessidades que necessitam de ser trabalhados de si para o todo… Em sessões individuais e de grupo… Num caminho concertado para uma evolução cognitiva… Para que adquiram uma maior autonomia pessoal e social… Privilegiando a motricidade… Trabalhando as capacidades e habilidades motoras… O desembaraço e a destreza… De uma forma lúdica… Todavia... Devidamente planificada e pensada… Ou melhor… Fazer com que estes se sintam úteis e incluídos numa sociedade segregadora e vil… Que já de si os descrimina… Pelas suas dificuldades e limitações… E quem sabe… Devido às suas necessidades também… - Pedro fez uma pausa… E continuou… - Uma sociedade… Onde a competição impera em demasia… Abafando todo e qualquer ser… Já de si… Normal… Quanto mais aqueles… Que são intelectualmente desfavorecidos!

- Muito bem! – Exclamou dona Filó… Mas o professor continuou:

- Estes documentos que me apresentou… E que tive o cuidado de analisar… Não me parecem melhores que os nossos!... Repare… - Pedro abriu o regimento e mostrou-o passo a passo… Pedindo-lhe… Que o acompanhasse… - Isto adequa-se perfeitamente ao nosso espaço… O local onde trabalhamos e intervimos com os nossos alunos… Regras de funcionamento… Direitos e deveres… Salas e ofertas curriculares... Terapias… Comparticipações… Etc… Baseado em todos os recursos humanos… Materiais e espaciais de que dispomos.

- Mas sabe… - Interrompeu a doutora… Algo alterada e com a voz mais grave… - Nem todas as pessoas que trabalham nesta área são formadas! E muitas trabalham por trabalhar! Por vezes…

- Tem razão! – Embargou Pedro… - Certamente que esse é um problema com que se deparam a maior parte das profissões! – Clamou… - Muitas pessoas não encontram motivação nos seus trabalhos… Por inúmeras razões… - O docente bafejava o cigarro... Libertando o fumo em direcção ao tecto… - Falta de condições de trabalho… Trabalho precário… Atraso nos vencimentos… Distância de casa… Problemas familiares e muito mais…

Doutora Rosa preparava-se para falar… Completamente apanhada de surpresa com o desembaraço e traquejo do professor… Tamanho atrevimento… Se ela pudesse… Calava-o…

Dona Filó… Assistia… Expondo o seu sorriso leve e acessível…

O professor prosseguiu:

- Contudo… Temos a sorte de ter uma boa equipa… Pessoas que se dedicam e esforçam por inverter a situação dos jovens com quem trabalhamos… - Enfim… Pedro sabia que Elisa era sempre um entrave a quase tudo o que se fazia na escola… Assim como Saudade… Porém… Até Júlia… O pessoal das oficinas e restantes funcionários… Pareciam contagiados pelo novo espírito que o professor trouxera para dentro da instituição… No fundo… Salvo uma ou outra excepção… Todos pareciam conquistados e absorvidos por um objectivo comum…

O docente apagou o cigarro no cinzeiro e prosseguiu:

- Temos um plano de actividades centrado nas capacidades… Dificuldades e necessidades dos alunos… Contemplando efemérides e datas comemorativas… Actividades desportivas… De expressão musical e plástica… E muitas mais… Assim como outras que promovem e estimulam a inserção dos alunos na comunidade… - Enquanto isso… O professor folheava o documento e gesticulava… Acrescentando exemplos… Apontando datas e metas… Projectos e soluções…

- Tudo bem! – Gritou a doutora… De modo a tomar conta da conversa… - E no projecto educativo?... Onde estão as metas? As linhas orientadoras?... Ou seja… As competências?... E. - Pedro interrompeu-a imediatamente… Transportando o comando da conversa para si… Abrindo o documento em questão…

Por seu lado… Doutora Rosa… Afinal… Tão doutora como Pedro… Folheou diversos documentos… Muito bem paginados e cheios de cor… Com citações e pensamentos ociosos… Imagens irreais de personagens fantásticas… Em suma… Enfeites de pouca graça e utilidade... Pelo menos para o docente…

- Repara colega! – Reiniciou Pedro… Tratando-a por “tu”… Era afinal sua colega… Talvez até… Menos professora do que ele… Devido à ausência prolongada e distância da sua real profissão…

Rosa paralisou… Estupefacta com tamanho arrojamento… Esgazeando-lhe os olhos… Dona Filó escondeu o rosto com a mão… Pedro insistiu:

- Metas?... Todas elas estão demasiadamente bem explicadas no nosso projecto educativo… O nosso objectivo principal é a inclusão destes alunos na sociedade… De uma forma concertada e eficaz… Onde possam ser adultos participativos… Relativamente autónomos e integrantes de uma sociedade que os segrega… Assim sendo… Temos a preocupação oferecer algumas áreas vocacionais… De carácter interno e externo… Precisamente para os sondar… Para os preparar para a transição para a vida activa e adulta… Daí o tema que escolhemos: “Formação pessoal e preparação para a vida activa”…

As áreas vocacionais estavam integradas no currículo dos alunos com necessidades educativas especiais como sendo a primeira fase de transição entre a escola e a vida activa... De uma forma espontânea... Os alunos beneficiavam de um conjunto de áreas e de competências que se esperavam ser úteis na escolha de uma formação adequada às suas motivações e capacidades...

- Tudo bem! – Disse perplexa a doutora… Preparando-se… Quem sabe… Para investir… - Como é isso estruturado? Como avaliam… E como organizam?... Como…

- Tivemos a preocupação de elaborar um documento… Que no fundo… Se traduz como um currículo para cada área vocacional… Interna e externa… No sentido de alicerçar a intervenção… - Pedro abriu a sua pasta e retirou um dossiê de folhas e micas… Abriu-o e explicou-o passo a passo a Rosa… Dando exemplos de alunos e especificando objectivos... Competências... Protocolos realizados e actividades...

Doutora Rosa era uma pessoa intragável… Daquelas que… Tal como avisara dona Filó… Estava há muito agarrada ao poder… A verdade é que ficou sem argumentos… Face à conversa e à  intervenção de Pedro… Que a abafou por inteiro…

Com os documentos devidamente preparados e fundamentados… Ainda houve espaço para mostrar fotos de experiências realizadas… Documentos internos produzidos… E expor alguns projectos para um futuro próximo…

O professor assegurou-lhe que as mudanças haviam sido imensas e convidou-a a visitar a instituição… Esta desculpou-se com o trabalho.. Que parecia abundar naquele gabinete… Mas…Face à insistência de dona Filó… A doutora foi incapaz de dizer que não…

No final… E depois de saírem… Dona Filó estava demasiado contente… Chegando a dizer que… Não podia ter feito melhor escolha… Que o professor tinha dignificado os interesses do colégio como ninguém… Confidenciando-lhe que… No fundo… E embora ele tivesse falado no plural... Ela sabia que era tudo obra sua…

O caminho de regresso foi animado e Pedro até trouxe o carro… Manifestando à sua directora que sempre quis ter um automóvel...

António Pedro Santos

(Continua)... 

 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLV

A maioria dos alunos existentes… Experimentavam uma imensa variedade de medicamentos… Drogas e outras substâncias...

As terapêuticas prescritas pelos médicos… Raramente tinham um carácter curativo… A maioria… Serviam para controlar crises epilépticas… O stress ou ansiedade… A hiperactividade e o funcionamento dos órgãos… Enfim… Todos no sentido de melhorar a concentração e a atenção… Outros para dar apetite ou combater as diabetes… A obesidade e outras complicações...

Alunos como Carrapito… Samuel ou Virgílio… E outros… Tomavam medicamentos para aumentar a capacidade de atenção e a hiperactividade...

Consequentemente… E porque os tomavam… Apresentavam sinais e sintomas que também os prejudicavam... Como a falta de apetite e as dores de cabeça... Os tremores e as mãos húmidas... Taquicardia...  Ou melhor... Frequência cardíaca alta ou irregular... Boca seca... Ansiedade... Entre outros...

Os alunos que tinham crises epilépticas… Tomavam medicação para diminuir as descargas eléctricas cerebrais... As tais... Geradoras das crises... Como Raquel… Angela e Ilda… Ou os mais limitados e com maiores necessidades… Miguel e Rafael… Salvador… Bento e Ruben... Todos da sala de estimulação global I...

Para além de todas as drogas que introduziam nos seus corpos… Tinham consultas regulares para ajustar a medicação... Ou para vigiar os efeitos colaterais...

Os alunos com trissomia… Como Cristina… Bebé… Filipe ou Bruninho… Também tomavam grandes doses de medicação… Todos muito próprios e destinados a colmatar alguma situação específica… Porém de influência semelhante…

Naquela escola havia de tudo um pouco... Várias situações terapêuticas... Fármacos como a atropina... Um alcalóide que funciona como antagonista e que minimiza a acção da acetilcolina... Um neurotransmissor que desempenha um papel importante no sistema nervoso central...

Outros... Tinham como função interromper o quadro convulsivo... Assim como... Auxiliar no tratamento ou atenuação e alguns problemas permanentes... Para... Pelo menos... Melhorar a qualidade de vida... Ainda que... Causassem alucinações e confusão mental... Sonolência... Convulsões… Mal estar geral ou influenciarem o sistema imunológico... 

Para alguns alunos como Zé… O objectivo da terapêutica... Prendia-se com o tratamento de distúrbios comportamentais e de personalidade... De problemas de negativismo e de desinteresse... Indiferença... Impulsividade... Irritabilidade... Agressividade e até problemas psicomotores...

De uma forma geral... No autismo e asperger... Os medicamentos servem para abreviar o impacto causado pelos sintomas como a ansiedade... Hiperactividade... Depressão e todos os que são inerentes aos transtornos obsessivo compulsivos...

Os fármacos eram todos diferentes... De tamanho... De cor e formato... Em comprimido ou xarope... Todavia... Todos faziam bem e mal ao mesmo tempo...

Por exemplo… Para síndromes e problemáticas... Como o x frágil...  Poderão funcionar como estimulantes e inibidores selectivos da recaptação da serotina... Para tratar a depressão... Ou transtornos de ansiedade e de personalidade...

Carrapito conhecia-os pela cor e Samuel pelo tamanho... Associavam-nos facilmente às horas ou ao momento do dia...

Este também era um trabalho quase constante dos técnicos... Orientar e vigiar a ingestão dos medicamentos... Para isso... Faziam-se mapas... Onde se registavam os nomes... Os fármacos... As horas e a toma destes... Fossem para insuficiências vitamínicas… Neuroprotectores ou estabilizantes de humor... Problemas intestinais ou respiratórios...

Pedro foi descobrindo que existiam imensos... Completamente distintos... Às vezes era o mesmo que servia para intervir em situações diferentes... Como os antipsicóticos para tratar a esquizofrenia ou diminuir a agressividade... Os antidepressivos para controlar a ansiedade... Mas também a depressão e os transtornos obsessivo compulsivos...

Enfim... Uma imensidade que não tinha fim... Estimulantes para diminuir os sintomas da hiperatividade e da impulsividade... Neurolépticos para reduzir alguns sintomas do autismo... Ou... Os anti opióides para tranquilizar ou minimizar todos os mencionados anteriormente...

As reacções adversas da medicação... Isto é... Os efeitos após a sua administração... São enormes e prejudiciais à saúde...

A grande maioria dos alunos traziam recomendações que vinham de casa... Centro de saúde ou hospital… Para recordar as dosagens e horários da medicação… Ou até com indicações de novos acertos ou rectificações...

Sempre que se reuniam condições... Promovia-se a autonomia dos discentes... Alguns como Ramos… Samuel… Sara e até mesmo Virgílio ou Teófilo… Conheciam e cumpriam sem problemas essa rotina...

A restante maioria… Contava com o zelo e a atenção da maioria dos funcionários… Como Júlia… Martinha e outros mais...

Por isso... Em cada sala... Existia um mapa com todas os esclarecimentos necessários ao bom funcionamento da administração dos fármacos...

Na sala de estimulação global I e II… Criou-se um caderno de anotações… Um meio de comunicação entre a casa dos alunos e a escola… Com apontamentos e relatórios do dia… Factos importantes... Acontecimentos de relevo e informações acerca da terapêutica realizada...

Nas sessões de Pedro e Júlia... Dirigidas aos pais... Abordava-se quase sempre este assunto... Alguns pais confidenciaram que nem sempre davam a medicação necessária... Uns por apresentarem dificuldades financeiras e outros pela razão de conhecerem os efeitos secundários...

Nessa altura... O professor descobriu que muitos deles procuravam alternativas na medicina natural... Muitas vezes... Por sugestão médica... Argumentando que... Os seus filhos já tomavam demasiadas substâncias nocivas para a saúde... Enfim... Uma forma de corrigir a destruição e o enfraquecimento causados pelo excesso de medicamentos...

António Pedro Santos

(Continua)...

 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLIV

Certa manhã… Dona Filó cruza-se com Pedro à entrada da escola... Ela chegava e ele preparava-se para beber café…

- Professor… Precisamos de falar!

- Já tomou café?... – Replicou… Convidando-a… - Se quiser vir falamos já!

E lá seguiram os dois …

- Como estamos com o projecto educativo?... – Inquiriu curiosa…

- Já tenho o projecto educativo… O plano de actividades e o regimento interno!... – Exclamou… - Tudo pronto e impresso!...

Dona Filó sorriu… Entremostrando alguma satisfação...

- Olá!... – Cumprimentou alegremente Rosa... A aluna que agora desempenhava funções na cozinha do café…

- Olá Rosinha!.. – Correspondeu Dona Filó com carinho…

A rapariga seguiu para as suas tarefas… Vaidosamente fardada…

- Como se estão a dar os alunos? – Perguntou…

O professor respondeu-lhe que estava tudo a funcionar quase em pleno… Com as inovações realizadas ao nível da estimulação global… Falou da sala de escolaridade… Da educação física e da psicomotricidade… Informou-a acerca do funcionamento das áreas vocacionais internas e externas… Assim como... Acerca das terapias…

Pronunciou-se um pouco acerca da sala de formação pessoal e social… Do sucesso da intervenção e consequente reflexo nos alunos… Ressalvou o trabalho do centro de recursos e a importância do centro de estudos para o cumprimento dos desígnios da escola…

- Acho que nunca vi este colégio funcionar tão bem!... – Afirmou… - Sabe… Era necessária uma liderança assim!

Pedro acenou a cabeça e argumentou humildemente… Arrematando que não se tratava de liderança… Mas sim de empenho e de motivação… Partilha e de fazer as coisas com gosto e prazer… Ter brio e paixão pelas tarefas… Agarrar os alunos e provar-lhes que as suas capacidades e vontade poderão ser fundamentais para a sua integração social e desenvolvimento… Aniquilando as suas dificuldades… Necessidades e limitações…

- Na minha opinião… O professor tem uma forma de chegar a estes alunos que eu nunca vi em nenhum profissional que por aqui passou…

Pedro expressou algum embaraço…

- Mas olhe… Não fique vermelho! - Continuou… - Eu queria falar consigo porque temos de ir à direcção regional mostrar toda essa documentação!…

Dona Filó explicou que era um procedimento habitual… Uma vez que se tratava de uma escola tutelada pelo Ministério da Educação… Tinham de prestar contas… Mostrar documentos… Expor projectos e debater estratégias de intervenção… Em suma… Justificar os subsídios que recebiam do estado…

As direcções regionais de educação desempenham funções de administração descentralizada... Directamente ligadas ao ministério da educação... Orientando... Coordenando e acompanhando as escolas da sua zona pedagógica...

Dona Filó alertou ainda… Para a existência de uma coordenadora de educação especial...

Na sua opinião... Era demasiado baixa e retrógrada… Antiquada e mal formada… Há muito afastada da prática lectiva… Contudo… De uma exigência tacanha e ridícula…

O professor garantiu-lhe que não haviam motivos para preocupações… Informando-a que levariam os documentos necessários e alguns dossiês individuais… Para que pudessem ter a percepção de todo o trabalho logístico realizado… Tal como… Alguns boletins… A fundamentação das áreas vocacionais… Protocolos estabelecidos… Algumas fotos e publicações realizadas… Entre outras coisas…

Dona Filó pareceu mais descansada e confidenciou-lhe que já se aborrecia da presunção daquela gente… Sobretudo daquela mulher… Que segundo ela… Tinha muita teoria e pouquíssimo terreno…

Para a directora do colégio... Eles escorraçavam os alunos do ensino regular… Queriam ver-se livres deles... Com a desculpa de lhes dar uma resposta mais individualizada... Todavia… Opinavam e metiam-se em tudo… Sem tão pouco querer saber acerca das suas aquisições e evoluções...

Nada justos e pouquíssimo inclusivos... Enfim... Politiquices... Como gostava de repetir...

- Eles de vez em quando têm de fazer alguma coisa!... – Assegurou… – Naturalmente… Depois pegam em tudo… Até no que não interessa!...

- Sobretudo no que menos interessa! – Gracejou Pedro…

- Afinal… Há que justificar o seu lugar e a sua posição!... – Confirmou… Encerrando os olhos conformada…

Não fossem estas pessoas... Essencialmente teóricas... Influenciando a sociedade... Por estarem em cargos de decisão ou governamentais... Enfim... Uns há que almejam esses cargos tanto por eleição... Outros por indicação... Hereditariedade... Cunha ou fraude... Tudo vale e tudo é permitido...

Por isso... Os políticos e a maioria das funções que resultam de nomeação... São pouco credibilizadas e respeitadas... Afinal... São imensos e visíveis em demasia... A corrupção e o compadrio... Os desvios de dinheiro e sobretudo de carácter...

O profissionalismo que se toma e encarna... Longe da ideia democrática da rotatividade... Assim como... A necessidade de andar e evoluir... Jamais esquecendo o verdadeiro terreno...

Nas portas que se abrem e no respeito que se tem... Das palmadinhas nas costas aos presentes chorudos... A bem do povo... Do país e da economia nacional... Passando o poder de pais para filhos e de padrinhos para afilhados... Sem qualquer vergonha ou pudor...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLIII

Zé era um aluno difícil... Autista e completamente isolado dos restantes... Alheava-se e colocava-se sempre à parte... Aparentemente por opção...

Revelava problemas graves de comportamento e limitações acentuadas ao nível da comunicação... Que o impossibilitavam de ser... Pelo menos como os colegas... Que facilmente... Interagiam entre si de um modo natural...

Nas sessões de psicomotricidade o aluno ficava distante... Estacionado nos colchões... A maioria das vezes deitado... Interagindo somente consigo próprio... Divagando no seu mundo privado e peculiar... Só seu e provavelmente fantástico...

Com o tempo... Foi erguendo a cabeça e levantando o queixo... Centrado no grupo que estava em actividade... Observando os colegas em acção...

Pedro convidava-o sempre a participar e chegou a ir buscá-lo... E este... Acompanhava-o... Contudo... Rapidamente largava a mão do professor e regressava ao seu lugar... Sem qualquer razão aparente... Afagando com carinho o docente... Sempre na testa...

Também experimentou mandar alguns dos seus colegas... Como Filipe ou Carrapito... No sentido de o desafiar para a aula... Mas nada resultou...

Com o passar do tempo... E sem pressões... Foi aparecendo junto do grupo... Gradualmente e aos poucos... Aproximando-se cada vez mais... Pesquisando e examinando os exercícios...

Talvez sentisse mais vontade... Ou segurança...

Pedro percebeu... Mas não lhe ligou... Continuando a dirigir-se ao grupo... Ignorando inteiramente a sua presença...

Começou por analisar o momento... Posteriormente... Começou a realizar alguns exercícios... Duas vezes mais tarde que os outros... Isto é... Se os seus colegas estavam a rastejar... Ele ainda saltava a pés juntos... Actividade que já tinha sido realizada mais atrás... Se os colegas pontapeavam bolas... O Zé ainda trepava o espaldar... E que bem trepava... Seguro... Parecendo contudo... Descuidado...

Fisicamente... Era um aluno bem desenvolvido para a sua idade... Um pouco anafado... Todavia arrojado nos exercícios de carácter motor...

Possuía uma expressividade facial e gestual... Impares e fora do comum... Sobretudo quando se concentrava no seu pequeno mundo... Anónimo e extraordinário...

Em muitas ocasiões... O professor olhava-o e pensava... Que talvez o seu mundo não fosse tão limitado assim... Nem tão pequeno... Era provavelmente muito rico e tentador... Até porque... O aluno adorava música e vivia-a com particularidade e com alma... Ainda que... À sua maneira...

Ficava siderado sempre que o professor tocava guitarra... Ou quando ligava o rádio...

A verdade... É que... Nem sempre dançava ou cantava... Porém... Quando o fazia era como se sentisse uma verdadeira liberdade... Um desprender de correntes... Pesadas e fortes... Num arrombar de grades... Que de grossas e ferrugentas... Possibilitavam um ganho imenso de contacto... Com a realidade exterior...

Era soberbo apreciar e desfrutar do seu olhar... Tranquilo... Diferente e satisfeito...

Mais tarde... O professor aprendeu que o seu entendimento do mundo... Não era tão desigual dos restantes humanos... Ainda assim... A sua expressividade e comunicação... Comprometiam a relação com os outros... Impedindo também a sua progressão cognitiva... Motora e sócio afectiva...

Nas sessões de música... Ou musicoterapia... Começou a misturar-se... Levantando-se do chão e gesticulando na confusão dos colegas... Só para si... Com prazer... Encadeado no ritmo com alegria... Realizando vocalizações quase todas imperceptíveis...

Aos poucos a sua relação com o professor melhorou... Zé aproximava-se... Procurando simplesmente estar perto do que estava a acontecer...

Quando fugia da sua sala de referência... Iam chamar o professor para o ir buscar... Inicialmente não queria e ignorava-o por completo... Com o tempo... O docente começou a cantar... Em outras vezes... Simulava um saxofone... Um trompete... Ou uma guitarra...

Nessas ocasiões... O aluno transfigurava o seu rosto e seguia-o com prazer...

Zé desfrutava da música quando subia ao ponto mais alto da escola... Uma base elevada com uma vedação alta... Lá em cima... Dava o seu espectáculo... Encenando movimentos... Tons e canções... Coreografias... Com uma banda sonora que ele conhecia e sabia de cor... Sempre com o microfone na mão...

Fugia constantemente da educadora Elisa... Afinal... Ela nunca teve mão nele... Nem jeito... Nem tão pouco vontade de o agarrar... Ou melhor... De lhe chegar... Aliás... Até fugia... Quando ela o convidava docemente... Tipo:

- Anda Zé! Vamos pintar! – Chamava... Sempre com um jeito demasiado ameninado... Contemplando sempre quem a rodeava... Enfim... Talvez para mostrar a sua preocupação e empenho... No fundo... Ninguém lhe passava cartão...

Acabavam por chamar sempre pelo professor... Ou então.. Era este que se aproximava... Simulando tocar uma corneta... Cantar ou bater palmas... Ou simplesmente... Fazer de conta que tinha uma guitarra...

Do outro lado... Zé cantava... Quase sem som... Com uma expressividade única e simplesmente assombrosa... Pedro aplaudia o seu desempenho... Como se este fosse um animal de palco.. E era...

Zé agradecia... Como era costume dos artistas...

Em conversa com a mãe do aluno... Pedro descobriu que esta motivação pela música já vinha de casa... E foi uma das coisas que os pais descobriram desde cedo... O poder da música em grande quantidade... De forma a amenizar os seus medos... Crises e mal estar... Concertos de vídeo... Dos mais variados e distintos artistas... Que serviam para o acalmar e educar...

Espontaneamente ou não... Este aluno foi adquirindo... Uma enorme cultura musical... Trabalhando a representação... A dramatização e a capacidade de se explicar...

Zé desenvolveu uma certa empatia pelo professor... Ou seja... Uma resposta afectiva adequada à condição de outra pessoa... Em detrimento da própria situação... Acompanhando-o e desfrutando da sua presença...

Passava mais tempo na sala de escolaridade do que na sala de estimulação global II... Afinal... Lá escutava conversas... Ouvia sons... Beneficiava da comunicação dos outros... Ainda que fosse... Essencialmente receptiva...

Fazia exercícios individuais e de grupo.. De leitura funcional... Escrita... Brincava e aprendia... Simulando e fazendo de conta...

Rapidamente... O docente constatou que o aluno em questão possuía uma aptidão natural para a memorização... Isto é... Na realização e estabelecimento de relações... Identificação... Ligação e associação de números... Letras e palavras...

Sempre que realizava uma tarefa era compensado... Pedro contava o tempo... Dava indicações e tirava anotações... Posteriormente... Deixava que este pegasse na guitarra... Coisa que nunca tocou... Apenas simulava... Não gostava dos sons produzidos por ele...

Outras vezes dava-a ao professor... Para que este a tocasse... Ora brincava com o velho microfone... O tal que o professor arranjara...

Curiosamente... Este objecto... Andava com ele a maior parte do tempo... Por vezes Samuel advertia-o:

- O microfone é da sala! – Exclamava... Em tom de aviso... Mas... Zé nem ligava... Era completamente em vão...

Com ele... Deu imensos concertos...

Não fosse ele um cantor... Personagem de um encadeamento de sons... Produzidos por instrumentos... Agitando assistências e plateias... Com o seu temperamento... Personalidade e motivação... Emocionando e divinamente encantando...

No final das sessões de música... Na rua e recreio... Psicomotricidade e até quando ia à escolaridade... Gostava de beijar o professor na testa... Ou seja... Encostar somente os lábios...

Por vezes olhava o professor nos olhos... Mas quando Pedro o encarava de mais profundamente... Olhos nos olhos... No seu interior... Desolhava e afastava-se... Como se não fosse com ele...

De olhar subjectivo e amplo... Com uma comunicação parca... Dimensão do imprevisível... Sentido da comunicação pouco evidente... Onde o falar não consiste apenas em passar informações e apresenta um carácter muito mais complexo e ilusório...

Com a angustia e necessidade de afastamento... Por não compreender o constrangimento de invadir alguém de palavras...

Em vez disso... Não fala e fecha-se em si... Num mutismo doloroso... Que ecoa e repete... Restos de palavras e frases...

Obstinação de bisar palavras... Na ligeireza de quem as diz e pronuncia... A vontade ou não de falar... Consigo e com os outros... De si ou do mundo... Mundo esse de palavras vastas e várias... Que se dizem... Repetem e multiplicam... Em vários timbres e tons... Que ainda assim... Não servem para que o autista comunique... Encarnando confusão e atrapalhação... Enfatizando o ridículo e o estigma...

Um escape sem saída... De quem adoraria sair deste mundo ou de partilhar e ensinar o seu aos outros... Para que o compreendessem...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLII

Fábio e Raquel eram dois alunos especiais... Ele com trissomia vinte e um e ela com atraso intelectual grave... Assim como outras problemáticas e transtornos associados...

Fábio apresentava aspectos fenotípicos característicos da sua síndrome... Ou seja... Aparência exterior muito característica e de fácil identificação... Ainda que... Nem todos os indivíduos apresentem os mesmos traços...

Por outro lado... Raquel parecia uma louca... De conveniência endiabrada e discurso carregado de palavras incompreensíveis... Espumando pela boca... À sua vontade de falar... Desorientada e enfurecida... Sem qualquer calma... Sempre acelerada... Num desarranjo de personalidade absolutamente hiperactiva...

As crianças... Jovens e adultos com perturbações de hiperactividade e défice de atenção... São normalmente definidas como tendo dificuldades permanentes de impulsividade e agitação... Irrequietude... Problemas de aprendizagem... Desorganização e imaturidade... Fraco relacionamento com pares e inconveniência comportamental...... Entre outros...

Enfim... Estes dois alunos... Sem ninguém esperar ou prever... Acabaram por se apaixonar loucamente... Tão loucamente... Que eram simplesmente inseparáveis...

Ele calmo... De semblante pasmacento e de poucas palavras... Aliás... Pouquíssimas... Ela era o oposto... Mas mesmo assim... Inerentes um ao outro... Indivisíveis e companheiros...

Começaram a andar de mão dada e passavam os intervalos agarrados... Abraçavam-se e até beijavam...

Para a maioria de quem os via... A situação era chocante... Já Pedro... Achava o máximo o facto de estes tentarem ter uma sexualidade quase normal... Pelo menos... Havia desejo...

Partilhavam os lanches e eram cúmplices... Pertencentes... Amigos e íntimos...

Raquel chegou a fazer autenticas cenas de ciúmes... Com Ilda e Angela principalmente... A maioria extemporâneas e sem fundamento... Porém sentidas... Contudo... Ameaçava-as de porrada... E até de morte...

Ao longo do ano lectivo... O professor assistiu a muitas situações de cariz sexual junto dos alunos... Como paixões entre colegas... Relacionamentos de sonho... Ou virtuais... Com estrelas da televisão... Fraquinhos pelo professor ou outras técnicas... Inclusivamente outras experiências... Como beijos na boca... Toques... Apalpões e até situações em que se escondiam na casa de banho ou em outro local mais recôndito... Para juntos se explorarem a si e aos outros...

Muitas vezes também eram experiências entre alunos do mesmo sexo...

Numa ocasião... Pedro surpreendeu um comboio de três alunos dentro do wc... Em que não havia penetração... Bruninho... Filipe e Carrapito... Dois deles riram... Um houve que ficou muito embaraçado... Talvez por ser o da frente...

Possivelmente estavam a tentar fazer algo que tinham visto... Pensou na altura... Ou então... Provavelmente também desejam e querem prazer...

Uma vez na praia... Mergulhou e visualizou dois alunos encostadinhos um ao outro... Um deles com os calções em baixo...

Afinal... Estes alunos também tinham sexualidade... Ainda que fosse reprimida em casa e socialmente... Não fossem estes... Eternamente meninos...

Aconteceram vários exemplos... Como as festas em que se dançava encostado...

Ao som da música e com pouca luz... Algumas alunas deliravam ao dançar com um colega ou até com o próprio professor...

Maura... Angela e Patrícia... Espelhavam nos rostos uma alegria peculiar... Como se o desejo e a paixão imperassem por ali...

Nessas ocasiões... Os mais tímidos trocavam olhares e avermelhavam a cara...

Sempre que tinha oportunidade... Sónia dava uma palmada no rabo do professor...

Quando este se voltava para trás dizia surpresa:

- Não fui eu!...

E mais... muito mais...

Estamos a falar de diversas síndromes e problemáticas... Em que as crianças e jovens eram e continuam a ser oprimidos por tudo e todos... Sobretudo em casa... Onde são tratados como eternas crianças...

Houve contudo... O caso particular de Fábio e Raquel... Que marcou o professor... Assim como... Todos os que não conseguiram ser indiferentes...

Estes apaixonaram-se perdidamente...

Sempre de mão dada pela escola... Almoçavam juntos... Mimavam-se e beijavam na boca... Era uma cumplicidade que dava gosto... Quase vivida sem palavras... Até porque ambos apresentavam problemas de comunicação oral... Mas muito intensa e verdadeira...

Certo dia... Fábio mudou de casa... A despedida foi terrível e angustiante... Mas... A verdade é que a Raquel só caiu em si na semana seguinte...

Entrou numa depressão... Regrediu... Muito mesmo...

Mais tarde... Pedro descobriu que o mesmo se passara com Fábio...

Enfim... Tal como nas pessoas vulgarmente denominadas de normais... O amor também dói quando se acaba...

Na sala de Martinha com o auxílio de Júlia...... Eram trabalhados e desenvolvidos vários conteúdos... As actividades da vida diária...  A segurança... A higiene e a sexualidade...

Esta última... Abordada junto de pequenos grupos de alunos... Sempre interessados e atentos... Colocando de lado a timidez... Discutindo e partilhando...

Foi um projecto bastante positivo para a maioria dos intervenientes...

Houve a possibilidade de através das sessões de dinâmica de grupo... Realizar experiências... Aprender coisas novas... Diferenciar os comportamentos adequados e não adequados... Aumentar o senso de responsabilidade no que se refere aos cuidados de nível pessoal e de relacionamento com os outros... Entre outras coisas...

Os maiores obstáculos foram sempre criados pelos pais... Curiosamente aqueles mais evoluídos académica e financeiramente... Isto porque... Os mais miseráveis... Nem dos filhos queriam saber... Afinal... A discussão do tema sexualidade na nossa sociedade estará sempre acompanhada de preconceitos e discriminações...

A verdade é que os alunos demonstravam interesse e motivação para abordar este tipo de assuntos... Talvez se sentissem mais aceites... Normais e incluídos...

Mais uma vez... Talvez sentissem a consideração e a vaidade próprios destes temas... De gente comum...

A sexualidade devidamente orientada melhora o desenvolvimento afectivo e favorece a capacidade destes alunos se relacionarem... Melhorando a sua auto estima e consequente adequação à sociedade...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XLI

A investigação... Como forma de alargar horizontes e conhecimentos... Fascinara desde sempre Pedro... 

Com ela... Aprendera imensas coisas que não sabia... Desde sempre... Desde a sua infância... Quando escarafunchava horas a fio... Na biblioteca da freguesia ou da colectividade...

A magia de uma palavra... Frase ou texto... Pela simples transmissão das ideias mais actuais ou mais antigas... Pensamentos... Emoções e valores... A partilha de métodos e de experiências... Ideologia... Querer e viver... De um ser para o mundo... Na frescura das cabeças que em brasa... De tão concentradas e atentas... Absorvem todo o conhecimento disponibilizado...

Um dos espaços intervencionados pelo docente... Foi na sala onde estava a fotocopiadora...

Mais uma vez... Movimentou discentes e colegas... No intuito de a pintar e restaurar...

Como esta sala se situava à entrada da escola… O professor pensou que seria ideal para criar uma espécie de portaria... Mais estruturada e digna...

Nesse local ficaria João… Sentado a uma secretária... Desenvolvendo actividades no âmbito da sua área vocacional... Isto é... Ao nível da portaria e moço de recados...

Na mesma sala… E por detrás de um balcão… Ficaria Teófilo... Tirando fotocópias e realizando diversas actividades no computador…

Ideias que Pedro foi amadurecendo com o restauro do local e com o contributo dos restantes colegas de trabalho... Não fosse esta... A base do trabalho de equipa... Onde todos participam e opinam... Onde todos podem e têm o dever de interferir...

Neste espaço... Para além da portaria... Organizou-se um centro de recursos para a educação especial... Destinado aos técnicos e pais dos alunos... Concentrando livros acerca das temáticas ligadas à deficiência...

Também se reuniram outros livros usados... Entre todos... Funcionários... Alunos e comunidade... No sentido de montar uma biblioteca ao serviço de todos...

A biblioteca municipal cedeu algumas obras... Assim como uma papelaria local... Até nisso houve participação da comunidade envolvente...

As bibliotecas cumprem um papel de extrema importância no desenvolvimento da cultura de todos.... Para além disto... Também contribuem para o aperfeiçoamento das capacidades cognitivas... Motoras e sócio afectivas dos alunos...

A criação do centro de recursos surgiu no sentido de auxiliar o processo ensino aprendizagem... Tendo como principais objectivos proporcionar uma melhor qualidade de ensino... Responder às necessidades dos alunos... Técnicos e encarregados de educação... Incutir hábitos de leitura... De consulta e de pesquisa...

No que concerne ao funcionamento... Possibilitava a aquisição de competências de bibliotecário e auxiliar de assistente administrativo...

Com a ajuda de Luz... Teófilo aprenderia a tirar cópias e a gerir o espaço... Trataria da requisição dos livros ou outros materiais... Por outro lado... João teria um posto de trabalho mais cómodo... Mesmo à entrada da escola...

Com a ajuda das oficinas… Nas áreas vocacionais de carpintaria... Reparação e manutenção… Fizeram-se prateleiras em madeira… Que foram medidas… Cortadas e lixadas… Por fim montadas... O resultado foi muito além do esperado…

Teófilo organizou os livros com o auxilio do professor… Um enorme catálogo… Que se resumia a uma capa com separadores… Organizados em temas... Banda desenhada… Juvenis… Ciências.. Escolares… E mais…

Num nível à parte… Ou melhor… Num móvel próprio… Pedro criou uma biblioteca cientifica… Composta de materiais e livros acerca da deficiência e problemáticas associadas...

A maioria destes materiais foram arranjados através de cartas e ofícios batidos no computador por Teófilo… Dirigidos a instituições… Organismos… Como o ministério da educação… Direcção regional… Institutos e organizações de deficiência... Editoras e entidades da área… Que posteriormente João foi entregar no correio...

A verdade é que a maioria respondeu… Chegaram embrulhos com livros… Estudos e relatórios… Cassetes de vídeo e DVD… Entre outras coisas…

O professor foi dos que mais desfrutou com as novas aquisições… Explorando-as à minúcia...

Isto… Deu-lhe mais uma ideia… Que acabou por partilhar numa reunião… A de criar… Naquele centro de recursos… Um centro de estudos… Onde se realizassem pequenas investigações… Observações e registos… Estudos de caso… Assim como algumas publicações de sensibilização… Informação e esclarecimento… Dirigidas aos pais e à comunidade envolvente…

Com o tempo… Começou a organizar-se mensalmente… Um boletim informativo dirigido aos encarregados de educação e a todos os que o quisessem ler… Uma folha grande dobrada ao meio… Sob a coordenação de Pedro e com a redacção de Teófilo…

Cada mês abordava-se uma síndrome ou uma problemática… Ou simplesmente… Uma experiência ou forma de intervenção… Com uma linguagem acessível a todos… Ou pelo menos à grande maioria...

A distribuição era gratuita... A cargo de João que entregava o boletim a cada pessoa que entrasse na instituição… Por vezes repetidamente…

De vez em quando… Criavam-se grupos para realizar uma arruada e distribuir o periódico… De modo a possibilitar uma melhor integração e participação social...

Ao longo do ano lectivo… Fez-se também um blog… Organizaram-se palestras e até acções de sensibilização… Na verdade… Eram autênticas acções de formação ou cursos… Mas Pedro… Nunca teve coragem de assim as denominar… Realizaram-se grupos de apoio e partilha entre pais… E muitas actividades mais…

Luz fazia a supervisão destes dois alunos… Assim como o próprio professor… Formatados para uma nova função… Mais importante e útil...

As tarefas passavam por bater documentos… Organizar papeis… Fazer recados e tudo o que fosse realizável por estes...

Com o trabalho no centro de recursos… Teófilo foi aprendendo a ser mais rápido no computador… Por vezes bloqueava e desmotivava-se… Exclamando repetidamente:

- Não consigo! Não consigo!... Isto é difícil! Isto é difícil!...

Nessas alturas… Lá estavam Luz e Pedro para o encorajar… Animar e reforçar…

Alguns pais passaram a ser mais próximos do colégio… Contudo… Eram sempre os mesmos a participar nas sessões de esclarecimento e acções… Organizadas por Pedro e Júlia...

Até chegaram a dar formação a professores e funcionários de outras escolas de alunos com deficiência… Com a ajuda de PowerPoints e outros suportes… Filmes realizados no colégio… Entre outros...

O centro de recursos passou a ser mais um ponto de encontro onde os alunos passaram a estar nos intervalos… Para conversar… Ler livros ou ver as suas imagens… Visualizar filmes… Em suma… Passou a ser mais um local de entremetimento… Espontâneo e enriquecedor…

Por sugestão de Ramos... Começaram a desviar-se jornais e revistas do café local… Com um ou dois dias de atraso… Claro que... Com autorização da gerência...

Era tocante observar... A pose que alguns começaram a adoptar naquele espaço... Silenciosos e concentrados... Intelectuais leitores... Virando páginas com classe... De perna cruzada e pescoço hirto... A imitação de um comportamento social comum e trivial... De simplesmente… Ler ou fazer que se lê… Um jornal…

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XL

No final do dia no terraço...

O vento soprava forte e o frio começava a aparecer... Aos poucos... Aquela cidade transfigurava-se e transformava-se num local diferente... Em tons de cinzento escuro... Como uma fotografia antiga... Comida e desfeita pelo tempo... A braços com a mudança natural do ambiente... Próprio da estação... Ao longe o rio... Desembocando no mar...

Os seus dedos deslizavam na guitarra... Com naturalidade e subtileza...

Distante dali... Mas perto... O ar pesado de Carlos... Demasiado anafado e aprisionado no seu corpo... Rosto fustigado de alguém que quer um lugar numa família que não é a sua... Mas antes.. Um serpentear de emoções que se escondem para lá da sua própria identidade...

Acolhido por uma família pouco funcional... Aliás... Como a maioria... Que o usava em casa... A bem de um subsídio... Ou melhor... Da integração e inclusão... Cuidando dos sobrinhos... Que não eram verdadeiramente seus... Limpando e até reparando o que pudesse estar estragado... Até porque... Jeito ele tinha...

Num atraso que era só seu e para si... Pelo menos ali... Para isso ele servia... Para pensar e decidir é que não... Havia quem o fizesse por ele...

Os acordes saíam... Tal como o fumo do cigarro... Brando e monocórdico... Que se perdia no ar com facilidade... Misturando-se... Como os demais...

Como Cristina... Por entre os afastamentos naturais da sua síndrome... Cambaleava entre a escola e a sua casa... Parqueada e encorajada para viver um mundo infantil... Desalinhado e desvirtuado da sua real idade...

Roupa colorida... Mala cheia de bonecos... De brincadeiras muito escassas... Sonorizada por “Runs Runs”... Rodopiando estagnada os olhos pelo nariz...

Uma brincadeira intima e só sua... Com a sua melhor amiga... Imaginária e inexistente... Encorajando-se e censurando os seus próprios comportamentos e atitudes... Talvez a medo... Amedrontada pela sua condição e pela confusão do sitio... Imponente e impreciso... À sua dimensão... Quase insignificante para o mundo... Num espaço onde colegas corriam... Gritavam e choravam... Em saltos e movimentos bruscos...

Olhos amendoados... Prega palmar transversal... Ou simiesca... Dedos muito curtos e fissuras palpebrais oblíquas... Língua protrusa ou saliente demais... Cavidade oral pequena e ponte nasal achatada... Manchas de brushfield... Ou pontos esbranquiçados na íris...

Flexibilidade excessiva... Pescoço quase inexistente e problemas cardíacos... Era este o apanágio da trissomia vinte um...

Ainda assim e embora parecidos... Todos diferentes uns dos outros pela genética que carregam dos seus pais e que influencia o seu aspecto e aparência...

Carrapito zeloso... Sempre auxiliando Filipe... Num instinto protector e de amizade... Que abundava de ternura... Cuidado e dedicação em excesso... Que o seu amigo sabia aproveitar como ninguém...

Gostava de se colocar à parte... Distante e silencioso e evidenciava timidez...

Quando sozinho... O seu olhar magoado e ausente... Encontrava a imensidão do planeta... Contemplando-o conformado e resignado...

Costumava observar o professor... Como se o estivesse a examinar...

Pedro percebia-o pelo canto do olho... E quando o encarava... Carrapito desviava o olhar... Fugindo como sempre...

Face alongada e orelhas enormes... Fraco tónus muscular... Ou estado de tensão do músculo... Testículos grandes... Por vezes com estereotipias... Para além da timidez e contacto limitado frequentes...

Nos seus traços característicos do x frágil... Não passava de um filho de um pescador humilde... Preocupado com o seu descendente... Carente de informação e conhecimento... Afinal... Quem é que está devidamente elucidado e preparado para ter um filho assim?...

Por vezes... Nos intervalos... Pedro via-o sentado ao lado de Cristina... Olhavam-se e pareciam conversar... Aconteciam risos e pequenas palavras... A verdade é que comunicavam... Ainda que... À maneira deles... Muito própria e peculiar...

Era deslumbrante olhá-los...

Sarita... Com a sua problemática... Prader willi... Cujas características são atraso mental e hipotonia... Ou flacidez... Aspecto infantil... Obesidade e problemas ao nível do sistema reprodutor...

Curiosamente... Costumam apresentar uma dificuldade gravíssima em controlar a fome... Tecnicamente chamada polifagia... Comendo tudo e a toda  hora... A verdade é que Sarita andava sempre carregada de gomas e rebuçados...

Protectora de Maura e Raquel... Amigas e companheiras que a seguiam e escutavam sempre...

A primeira demasiado ameninada para o seu corpo extremamente desenvolvido... Aparência de senhora de idade... Gorducha e amarrecada... Postura envelhecida e gasta... Semblante expressivo de um rosto imensamente delicado...

Raquel era magríssima e escanzelada... Falava depressa demais e comia a maioria das palavras... Atravancando-se de saliva que saia ao crescer da conversa... E do nervosismo... Numa transmutação digna de um exorcismo... Ou acto de fazer jurar...

Reza... Oração... Cantilena... Ritual para limpar os corpos de encostos e espíritos... Extravasando os seus medos e amiudando os seus receios e inseguranças... Recuos e frustrações... Por vezes... Chegava a revirar os olhos...

Quando se enervava e Pedro a acudia... Cravava-lhe as unhas na carne... Depois... Ficava num pranto agitado... Pois não queria magoar o professor... E ele sabia-o...

Sarita fazia de tudo para que estas se sentissem apoiadas... Acalmava-as... Mediando e intermediando conflitos... Ou até... Outro tipo de situações...

Era no fundo uma líder... Transmitia ordem... Calma e apoio...

O cigarro acabara... Afinal... O vento fumara-o todo... Enquanto isso... Pedro espreitava para dentro do colégio...

Mário era um aluno exemplar... Um bastião da responsabilidade e da ascendência... Pelo menos... Para os seus colegas... Como João ou Bruninho... E até Ronaldo...

Um laço de amizade que superava atrasos... Necessidades ou limitações... Síndromes e até problemáticas...

Como um todo... Único e global... Onde a ternura... Afecto e a proximidade se uniam e valiam... Sem pressões e de uma forma natural...

Conversavam acerca de coisas que não eram normais... Enfim... Mário falava razoavelmente bem... Os outros nem por isso... Por vezes eram cumprimentos... Sins e nãos... Assim como outras verbalizações... Misturadas com sorrisos e expressões...

Eram estas as suas conversas... Parcas... Repetitivas e enfadonhas... Porém imperiosas...

Os acordes saíam naturalmente... Preenchendo como banda sonora... A divagação do professor... Por entre a paisagem que parecia revoltar-se... Tal como os seus pensamentos... Vivos e remexidos...

Ana não falava... Carregava um mutismo selectivo... Que tem como características principais eleger e seleccionar...

Um transtorno psicológico em que há recusa total de falar... Seja com pessoas ou apenas em determinadas situações...

Uma das maiores causas desta alteração... Pode estar na família... Nos chamados factores ambientais... Isto é... Tudo o que rodeia a aluna... Sejam... Experiências negativas... Violência ou decepções...

Mário... O seu irmão... Assegurava que em casa ela falava correctamente...

O núcleo familiar era intragável... Segundo a má língua... A mãe... Andava na prostituição e o pai era um pobre coitado que não tinha onde cair morto...

Vezes sem conta... Pedro perguntou-se a si mesmo... O que será que foi que ela viu?... O que será que viveu?... Que sofrimento era aquele... Tão angustiante e profundo... Ao ponto de calar uma voz?...

Patrícia... Rosa e Cláudia... Apoiavam-na... Permitindo que esta as acompanhasse... Aliás... De uma forma inata... Forçavam-na a agir e a andar junto delas...

As quatro alunas eram mulheres... Ou melhor dizendo... Já eram mulheres...

Atrasadas... Contudo fêmeas... E já olhavam os rapazes com mais atenção do que eles as olhavam... Assim como os adultos...

Provinham de ambientes muito pobres e desfavorecidos... Bairros da lata... Onde eram escravas das famílias... Empregadas domésticas que cuidavam de irmãos... Primos e velhos...

Pedro duvidava da virgindade de qualquer uma delas... Aliás... Estava certo que algum familiar... Vizinho ou suposto amigo... Já tinha feito o serviço... Afinal... Esta é uma situação agradável para muita boa gente... E para além disso... Faz parte de um universo de taras há muito globalizadas... Ou seja... Abusar de alguém que não domina as suas capacidades mentais...

Infelizmente... Os actos sexuais praticados contra crianças e jovens com deficiência são muito comuns...

Como tal... Era fundamental que se implementassem políticas que permitissem que estas crianças e jovens vivessem em segurança e com a dignidade merecida... Através de vigilância... Assistência e acompanhamento social...  Ou até... Algumas mudanças ao nível da legislação... Para que não ficassem impunes este tipo de crimes...

Para além disto... A educação sexual deveria ser um desígnio das escolas e da sociedade em geral... Pois ainda existem muitos atrasos de informação e conceitos excessivamente retrógrados...

Um trabalho conjunto entre encarregados de educação... Professores e técnicos... Meios de comunicação e instituições do estado... No sentido de possibilitar um maior esclarecimento nesta área... Favorecendo assim um desenvolvimento mais harmonioso e saudável...

Uma discussão sempre difícil porque falamos do corpo e da nossa intimidade... De sentimentos e emoções de cada um...

Os deficientes intelectuais ou mentais... São na sua maioria sexuados e sexualmente activos... Quero dizer... Todos querem namorar e casar... Ter filhos e fazer todas as coisas supostamente comuns... Necessitando por isso... De expressar a sua sensibilidade de uma forma muito própria e livre...

Porém... É comum que pais e restante sociedade... Abafem desejos e determinados comportamentos... Abrindo lugar ao preconceito e à discriminação... Concepção em desuso e completamente ultrapassada... Isto porque... Uma sexualidade devidamente esclarecida poderá proporcionar um melhor e mais eficaz crescimento afectivo e social...

É de extrema importância o simples facto de os aconselhar... Ou ajudar a saber separar os comportamentos que não são convenientes... Por exemplo... Falar da masturbação como acto intimo que não deve ser realizado em público...

A educação sexual neste tipo de alunos melhora a sua auto estima de um modo quase milagreiro... Isto porque... Promove atitudes positivas face a sentimentos que possam eventualmente sentir... Eleva a responsabilidade e a compreensão acerca de uma temática ainda tabu para muita gente... Também melhora a comunicação e a autonomia...

É indispensável compreender o corpo e o seu crescimento inerente... Apreender um pouco acerca das relações entre as pessoas... Assim como... Perceber o que é a reprodução e o que representam os sinais da sexualidade de cada um...

A integração destas pessoas na sociedade... Também as expõe a situações que poderão ser de risco... Desta forma... É essencial um trabalho conjunto entre pais... Escola e comunidade... No sentido de esclarecer... Informar e auxiliar...

Virgílio... Luís e Roberto... Já possuíam vivências de vadiagem... Para além dos seus atrasos... Eram oriundos de ambientes marginais... Onde o homem mais forte batia e abusava dos mais fracos... Mulheres... Crianças e velhos... Os filhos cresciam ao abandono e não se estreitavam laços familiares normais...

Martinha teve sempre uma grande influência nestes casos... Fazendo a ponte entre as atitudes a ter em grupo e na vida em sociedade... Ainda que não as vissem ou vivessem em casa...

Por outro lado.. Pedro transmitia-lhes afoiteza e vontade de intervir... Valores de mudança e de participação social... No fundo... A acreditarem em si próprios... Convidando-os a ser elementos interventivos na escola... Casa e sociedade... Responsáveis e mais tolerantes... Com o poder de transformar consciências e lugares...

Nunca esquecendo que... Existindo no mundo... Podemos sempre mudá-lo...

A participação social e a cidadania caminham lado a lado... Isto é... Os indivíduos só conseguem ser cidadãos se participarem... Com disponibilidade e empenho... Motivação... Competência e democracia...

O saber agir e aprender a ser... Com atitudes e valores... Conhecer direitos e deveres... Crescer e desenvolver-se integralmente... Interferir na comunidade... Com responsabilidade... Vontade e criatividade... E sobretudo... Sem resignação...

Teófilo perdia-se na sua insegurança... Incerteza e inquietação... No seu mundo completamente autista...

Imaginação... Comunicação e interacção social... Uma tríade que o perseguia diariamente e influenciava os seus comportamentos na vida... Ainda que... Fosse espicaçado...

Nos seus momentos mortos... Ocupava-se de si próprio... Sentando-se num canto... Olhando para o chão... Porque... Muito pouco parecia ser do seu interesse...

O autismo apresenta toda uma série de comportamentos que prejudicam o desenvolvimento e a integração... Como as dificuldades de relacionamento com semelhantes... O escasso ou nenhum contacto visual... Ou o facto de adorarem estar sós e procurarem o isolamento...

Por vezes riem em situações descabidas ou fixam-se estupidamente em objectos...  Alguns são completamente inertes... Outros há que são activos demais...

As pessoas com esta problemática... De um modo geral... Reagem de forma estranha à dor... Repetem palavras... Frases e assuntos... Desvalorizam o perigo e detestam o contacto físico... Apresentam pouca comunicação ou nenhuma e quase nunca respondem pelo seu nome...

Bebé cantava e dançava encantada... Tomando conta do seu espaço como ninguém... Uma ternura com todos... Extrovertida... Mas limitada... Muito circunscrita às suas dificuldades...

Vivia num mundo só seu... Mas era o nosso mundo... Fantástico... Brilhante e surreal... Onde a magia dos filmes... Das canções e da televisão... A preenchiam provisoriamente de vida...

Sempre agarrada a Pedro... O boneco... Ou então... Sem o perder de vista... Tal como o lápis amarelo de Filipe... Só seu...

A família era das melhores... Muito unida e estimuladora... Contudo... Conservavam-na menina... Doce e colorida...

Pedro começou a desenhar uma sequência de acordes... Com alguma lógica e sentido... Um blues lento e pouco ornamentado...

Canção melancólica... Carregada de angústia e tristeza... Desenhada por notas simples de frequência baixa... Numa toada expressiva e repetitiva... Vigorosa... Simples... Mas... Sensual...

Nesse momento... Recordou-se de Angela e de Ilda... As duas irmãs... Que nem se podiam ver...

Era Ilda a mais velha... Desbocada... Estridente e ruidosa... Mas mais diminuída intelectualmente... Demasiado localizada nas suas acções infantis e inocentes...

Ao contrário de toda esta energia variada e louca... Estava Angela... Tranquila e sossegada...

Olhar vesgo... Braços cruzados quase constantemente... Quem sabe observando... Quem sabe se sofrendo com a sua submissão...

Procurava inutilmente juntar-se a todos os grupos existentes na escola... Nomeadamente ao de Patrícia... Mas também aos adultos e até à irmã... Que simplesmente a desprezava...

Pedro nunca entendeu esta negação e raiva... Ninguém a queria...Todos lhe recusavam espaço ou uma simples oportunidade...

Sozinha... Solitária... Com uma angustiante sensação de vazio... desintegrada e à parte...

No fundo... Era carente... E para muitos... Uma atrasada com as hormonas aos saltos... Despindo qualquer homem com o seu olhar... Somente pelo sentido da coisa...

Já a irmã... Candidamente colegial... Estava noutra onda... Porém... Amotinava-se por tudo e por nada... Gritando e tornando-se agressiva sempre que as suas emoções mandavam...

Nessas ocasiões... Não havia muito a fazer... Era acalmar e deixar passar... Enquanto isso... Falava da sua vida e lamentava-se... Como se o mundo inteiro a perseguisse...

Uma vítima dos transtornos... Distúrbios e doenças que convivem na forma psíquica... Mental e até psiquiátrica...

Estas alterações... São demasiado amplas e abarcam campos de várias áreas disciplinares... Como a neurologia e a psicologia... A psiquiatria e até a filosofia...

Ramos vivia feliz... Contente... Sociável e bem disposto... Conversador com os mais velhos e até com estranhos...

Nasalado e fanhoso...  Como se a voz lhe saísse pelo nariz...

Porque... Sempre que o palato não toca na parede da garganta... O ar acaba por passar para o nariz... Convertendo a sua sonoridade...

Sempre a afiar lápis... Que curiosamente... Desapareciam num ápice... De tanto afiar... Para nada fazer...

Constantemente carregado de totolotos... Simulando jogos e distribuindo-os por todos como se fosse um funcionário da santa casa da misericórdia... Garantindo ser portador da sorte grande...

- Olha a sorte grande! – Apregoava em alta voz...

Samuel apresentava espinha bífida... Uma malformação congénita que compromete o sistema nervoso e que se deve a um encerramento imperfeito do tubo neural...

Este aluno revelava imensas dificuldades intelectuais... Fraqueza muscular e dificuldade em controlar os esfíncteres...

Para além disto... Em alguns casos... Esta enfermidade pode causar paralisia... Perda de sensibilidade e acumulação de líquido cefalorraquidiano no cérebro... Originando lesões gravíssimas...

Existem alguns tipos de espinha bífida... Consoante a gravidade... Como a oculta... A meningocele e a mielomeningocele...

A etiologia desta patologia está directamente relacionada com factores ambientais e específicos... Como causas genéticas... Idade avançada dos progenitores... Insuficiência de ácido fólico e ingestão de álcool por parte da mãe...

Competitivo e muitas vezes alheado... Sempre procurando superar-se e ser o melhor... Por vezes... Perdia a paciência com as dificuldades dos outros... E com as suas...

Revelava ainda problemas em lidar com a critica e com o reparo... Mesmo que fosse para o seu bem... Enfim... Não fosse ele também... Um aluno especial...

O ritmo dado pela guitarra ganhava força e consistência... Pedro insistia e desaparecia do terraço...

Fábio... Da sala de estimulação global II... Tinha trissomia vinte e um ou síndrome de down...

Caminhava com dificuldade num mundo que aparentemente não era feito para si...  Como a maioria dos seus colegas... Esquecidos e depositados num local afastado de todos...

Esta síndrome abarca diversas adulterações do foro genético... Como a trissomia simples... Com quarenta e sete cromossomas em todas as células... A translocação... Em que o cromossoma extra... Do par vinte e um... Fica preso a outro... Ou o mosaico...  Isto é... Algumas células têm quarenta e sete cromossomas e outras quarenta e seis...

Este aluno já passava muito tempo com Pedro... Beneficiando das mesmas coisas que os da sala de escolaridade...

A verdade é que Elisa agradecia... Até porque... Por ela... Mandava-os todos para a sala de Pedro...

Na sua intimidade... Fábio só queria atenção e apoio...

Pouco falava... Mas apresentava sempre um sorriso... De aspecto demasiado frágil e simples... Andava sempre muito hirto e os seus movimentos eram arcaicos e duros...

A espasticidade ocorre quando existe um aumento do tónus muscular... Causado por uma circunstância neurológica deficiente... Neste caso... Os músculos apresentam uma desobediência à extensão e tendem a contrair... Podendo causar distrofia muscular e outros problemas mais graves...

Aos poucos... O professor trauteava uma melodia... Onde as palavras... Apareciam às vezes... Encaixando quase perfeitas... Ou por outra... Perdendo-se no ar... Como o fumo do tabaco... Sem encasamento perfeito... Pérfido e fugidio... 

Sónia apresentava uma alteração gravíssima da personalidade... Para além do seu enorme atraso mental... Possuía um temperamento inconstante... Para muitos... Próximo da loucura...

Desesperava quando via o professor... Para o bem e para o mal... Chorava sempre que este se afastava... Ou quando sentia que alguém estava por perto... Conversando ou roubando a sua atenção...

Em determinadas situações... Abalroava-o sem que este desse conta... Ou simplesmente beijava-o na face... Com muita força e humidade... Afastando-se de seguida... Dizendo com dificuldade e de um modo pouco perceptível:

- Não fui eu!... – Ou... – Éh pá!..

Estranhamente... Quando se via parada... O que era mesmo muito raro... Anunciava uma tranquilidade fora do comum... Observando a conjuntura... Com postura e vigília... Contudo... Durava muito pouco... Segundos talvez... A sua capacidade de atenção e concentração eram quase inexistentes...

Às vezes berrava num pranto:

- Popê!... – Alteando o choro e o riso... Surpreendentemente... Como se fosse bipolar...

Não fosse esta condição... Uma espécie de transtorno... Com alterações de humor... Que podem ir dos sinais depressivos à euforia sem controle...

Ligava muito pouco aos conteúdos académicos e escolares... A sua atitude de mãos nos bolsos dizia tudo...

Os seus lábios batiam e a língua dava estalidos... Na constância do estado do momento... Ignorava a ordem e a responsabilidade... Mas parecia apresentar uma felicidade... E ao mesmo tempo... Uma calmaria fora do comum...

Andreia padecia de limitações muito acentuadas...

Um comprometimento geral de vários domínios essenciais... Como a cognição... A comunicação... O motor e o sensorial...

Completamente espástica... Tal como Fábio... Com hipertonia... Ou seja... Um incremento desigual do tónus muscular e consequente redução da sua capacidade de distensão... Onde o corpo se comporta de um modo bastante discrepante do que é habitual... Como se não fizesse parte do mesmo ser... Pois... Quanto mais Andreia tentava realizar determinados movimentos... Mais aumentava a espasticidade... Tornando-os desagradáveis... Compassados e completamente desgovernados...

Babava-se... Apertava as pessoas que pudesse e puxava os seus cabelos... Especialmente os compridos... Fosse de quem fosse...

Pedro achava que esta também era uma forma de comunicação... Ainda que... Pouco ortodoxa...

Na orelha tinha um sinal... Uma espécie de lóbulo na orelha... Algumas funcionárias falavam em dom... Divindade e espiritualidade...

Uma vez... Irene contou uma história acerca do budismo... Referindo que a maioria das estátuas do seu supremo... Apresentavam lóbulos nas orelhas... Muita gente acreditava que talvez estivessem associados à sabedoria ou a outras virtudes...

Arrastava-se pela escola... Quase sempre com um sorriso no rosto... Lerdo... Infantil... Desconsolado e relaxado... Eternamente ajudada por Tatiana... Uma das mais velhas do colégio... Apenas três anos mais nova do que Pedro...

Esta.. Emitia sons graves... Muito assinalados e hediondos... O seu timbre era baixo e demasiado assustador... Por vexes elevava-se... Oscilando fonemas quando menos se esperava...

A sua vocalização era muito rudimentar e tinha um olhar fixo... Todavia.. O seu semblante era disperso e vago...

Assustava muita gente... Ainda que apenas se quisesse aproximar... Dizendo simplesmente um “olá” prolongado e profundo... Com variações e oscilações...

Afagando capacidades à distância de um toque demasiado superficial... Ou demais intenso... Desequilíbrios e movimentos demasiado incipientes... Às vezes... Reacções a uma canção... A um estado de espírito... Uma emoção ou dor... Era triste e doloroso vê-la sofrer...

Tatiana passava muito mal com as dores menstruais...

Este tipo de dores... Parecem estar associadas aos espasmos uterinos causados pela libertação de determinadas substâncias... Podendo ser acompanhadas de dores de cabeça... Dificuldades de atenção e de concentração... Irritabilidade...

Nessas alturas... Tornava-se violenta e insuportável...

Por outro lado... Gostava imenso de apoiar Hélio e Andreia... Sobretudo o primeiro... Autista puro...

Uma total... Ou quase total falta de contacto com o mundo exterior... Um grau de severidade que o impedia de realizar a maioria das tarefas e actividades diárias... Como comer ou vestir-se...

Falta de interesse pelo que o rodeia... Alheamento imenso e maior... Impossibilidade de comunicação... Seja verbal ou outra... Ainda que nos entenda ou compreenda... Não consegue porém... Exprimir-se como nós...

Com ele... Eram trabalhadas algumas formas de comunicação diferentes... Os chamados sistemas alternativos e aumentativos de comunicação... Todavia... O aluno era demasiado novo e para a maioria dos técnicos e professor... Muito difícil de chegar...

Perdia-se nos estereótipos... No isolamento... Sempre demasiado assustado... Sem os olhar... Repetindo movimentos... Como o bater das palmas com os pulsos... Ou encenando expressões duras... Anacrónicas e rígidas...

Os irmãos clones... Eram quase iguais...

Tal como na clonagem... Que não é mais do que a produção de indivíduos geneticamente iguais... Ou... Várias cópias de um mesmo produto...

Estacionavam onde quer que os deixassem... Vocalizavam e até cantavam... Enfim... Estranhamente... Sons arcaicos e muito básicos... Ecos de adulto perdidos em corpos escanzelados e inocentes... Parcos em juízo...

Enxergavam os outros com posturas e movimentos primários... Como e fossem macaquinhos...

O seu andar era anormal... Locomoção obsoleta e enfezada... Mãos e braços encolhidos... Virados para a frente... Estagnados e mecanizados...

Com atrofia dos músculos... Ou distrofia muscular... Enfermidade que envolve a degeneração da membrana que envolve a célula muscular... Afectando músculos e originando fraqueza...

Definhamentos... Debilidades e distrofias... Que variam consoante os sinais e sintomas... A intensidade e o grupo muscular comprometido...

Toda uma série de diferenças que se excluem e complementam... Variando as denominações com a etiologia... A zona afectada e o nome de quem a estudou...

Numa das suas investigações... Pedro aprendeu uma das características mais interessantes apresentada por este tipo de alunos... Que sofrem de distrofia... O sinal de gowers... Ou melhor... O conjunto de movimentos e apoios particulares... Apresentados por estes quando se levantam do chão...

Zé corria pela escola de um lado para o outro... Sem se importar com quem ou o que quer que fosse...

Subia e descia obstáculos... Ficava no ponto mais alto do colégio... Como se fosse um presidiário no seu claustro... Cadeia ou clausura... Olhando o infinito... A liberdade... O além...

Como um marginal da sociedade... Encarcerado... Castigado e exilado... Tal como o cárcere normal... Para orientar... Reencaminhar e reeducar...

Depois arrancava para mais uma corrida... Sem parar... Ou melhor... Quando se quedava... Simulava um palco... Com o microfone... Objecto inseparável...

Quase não se escutava... Falava e refraseava muito baixo... Timbre grosso... Uma voz agradavelmente grave e máscula... Gemia num sussurro... Variando os tons e a intensidade... Porém imperceptível...

Aproximava-se pouco das pessoas... Fossem adultos ou colegas... Por vezes era só uma festa... Um toque ou uma caricia...

Gostava de beijar Pedro na testa... Sem oscular... Apenas encostando os lábios...

O professor apanha um papel... Começa a registar a canção... A letra fluía naturalmente... Na inspiração dos sons... Vivências e imagens...

Na alegria de Salvador... Que se deslocava por onde pudesse... Rindo... Sempre rindo... Aparência feliz ainda com todas as suas limitações...

Miguel... Atónito viajante... Talvez atento... Ou quem sabe não... Disperso e concentrado nas suas coisas... Sorrindo sempre que perdia o equilíbrio e caía desamparado e só...

Bento e Rafael... Impávidos e serenos... Chorando... Rindo... Defecando e comendo... Sem mais nada que isto... Nem uma palavra... Um beijo ou um abraço...

Era esta a comunicação de que dispunham... Olhares que não pareciam... Mas que... Eram de facto alguém... Que esperava e estava...

Não fosse a multideficiência um conceito que compreende várias limitações... Em vários âmbitos e domínios... Físico... Psíquico ou sensorial... Duas ou mais... Sendo que a cognição está sempre presente e naturalmente comprometida...

Para além disto... Associa deficiências e cada caso apresenta características muito próprias e particulares... Influenciando o crescimento global comum...

Desta forma... Necessitam de uma atenção e cuidados muito particulares... Para melhorar a sua qualidade de vida... Funcionalidade e desenvolvimento das suas capacidades...

Ruben... Que se soltava rumo à sua liberdade... Com grunhidos fortes... Para lá do imaginário humano...

Corpos de criança... Carcaças... Velhas e decompostas... Sofridas e castigadas... Causadas por alguém... Fosse terreno... Negligente ou ignorante... Nos abusos dos pais... No descuido da gravidez e do parto... Nos acidentes...

Fosse na vontade de um ser maior... Atento e amigo... Que olha por todos nós de um modo diferente... Enfim... Crença... Ou... Depravação de consciências depravadas...

A deficiência intelectual pode surgir de diversas causas... Sejam genéticas... Durante a gravidez ou parto... Ou depois do parto...

Cromossomas e genes... Factores hereditários... Drogas e medicamentos... Tabaco... Álcool e doenças... Bactérias e vírus... Malformações e traumatismos... Desnutrição e maus tratos... Meningites... Causas externas e internas...

Uma panóplia de acontecimentos banais ou de especificidade conhecida... Que castigam e entregam à imperfeição e à moléstia... Seres vivos que deixam de gozar de direitos... Vontades... Desejos e alegrais... Por razões que lhes são ou foram completamente alheias...

Pedro lê a canção... Canta-a de novo e chama-lhe... “Ar do mar”...

 

Pergunto... Se a minha vida vai mudar... Estou certo... Só podem estar a brincar...

Não tenho tempo pra escola... Quero sentir o cheiro do mar...

Escuto... Toda a gente a falar... Não sou surdo... Não precisas de gritar...

Só tempo pra bola e nadar nas ondas do mar...

Encontro... Gente na rua a chorar... Insegurança... Onde é que isto vai parar...

Não vou dar tempo à má sorte... Vou pra praia ver o mar...

 

No final daquele dia no terraço... O dia já era noite... O vento soprava forte e frio...

O tal local diferente... Em tons de cinzento escuro... Como uma fotografia antiga... Comida e desfeita pelo tempo... Tornava-se agora costumeiro... Na rotina dos corpos que habitavam a velha cidade... Desprezando o próximo... Na ignorância de quem são...

Ao longe o rio... Desembocando no mar...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXIX

Na sala de escolaridade... Em conversa com os alunos mais velhos... Sempre motivados para a prática desportiva...

Teófilo sentou-se ao fundo... Antagonista dos restantes... Isolado e afastado como sempre... Por outro lado... Roberto teimava em não se sentar... Enquanto Carlos... Ladeava o professor... Tentando pôr ordem na sala...

- Caluda! – Ordenou Luís... – O professor quer falar!

Calaram-se de imediato... Havia respeito por este aluno...

- Obrigado! – Agradeceu o professor... – Gostava de falar com vocês sobre um projecto que penso estar ao nosso alcance!

- É para arranjar o quê? – Perguntou Virgílio... Franzindo o sobrolho e arreganhando os dentes... Cerrando-os compulsivamente e com força... Sedento de escuma...

Pedro sorriu e disse:

- Tem a ver com desporto!

- É um jogo de bola? – Gritou Roberto... Erguendo-se da cadeira... Ao seu lado... Patrícia e Rosa agitaram a cabeça... Mirando o professor com um ar de desapreço...

Luís olhou-o e este sentou-se...

- Gostaria de propor-vos a criação de um clube desportivo!

- Podia chamar-se Sporting! – Gritou Roberto... Levantando-se de novo e batendo com as mãos na mesa...

- Cala-te parvalhão! – Mandou Carlos... Expondo algum destempero...

- Deixa o professor falar! – Ordenou Luís... Apontando-lhe o dedo.. Num sinal de aviso intimidatório...

Roberto sentou-se...

- Está muito barulho! Está muito barulho! – Repetiu Teófilo... Levantando-se da cadeira e abrindo os braços... Num sinal único de fraqueza e de desconforto... – Assim não consigo! Assim não consigo professor!...

Pedro fez um gesto para que este se sentasse e acalmasse... Sem dizer uma palavra... Gesticulou e levou o dedo ao nariz... Arregalando os olhos... Contemplando-os a todos com atenção... Como se fosse falar a qualquer momento...

- Gostava de propor-vos a criação de um clube desportivo!... – Ateimou... – A ideia era fazer uma coisa a sério!... Teríamos uma direcção composta por um presidente... Um vice presidente... Tesoureiro e vogais!

Na cara dos alunos... Uma enorme interrogação e desconhecimento... Como se nada percebessem... E não percebiam... Porém... Escutavam o professor com atenção... Ao mesmo tempo... O docente deslocava-se pela sala... Esbracejando... Alteando a voz e cativando a atenção dos alunos...

Explicou-lhes que teriam de escolher um nome... Fazer um símbolo ou um logotipo... Eleger a direcção e realizar um plano de actividades que abrangesse todos os alunos da escola... Directa ou indirectamente...

Rapidamente... A reunião transformou-se numa assembleia... Os alunos também deram sugestões... Propuseram fazer cartões de sócio... Diplomas... Vender rifas... Organizar corridas e jogos diversos...

A reunião demorou até ao intervalo... Os alunos chamaram alguns funcionários e fizeram-se eleições...

Pedro foi eleito presidente... Mas abdicou... Justificando que deveria ser um dos alunos... Na sua opinião... Seria melhor e mais credível...

Carlos ficou com essa função... Pedro vice presidente e Teófilo tesoureiro... Que ficou imediatamente confuso e cheio de problemas... Dizendo:

- Mas eu não sei!... Eu não sei o que é isso! – Suando e tremendo... – Não sei se sou capaz! – Enfim... O habitual... Contudo... O professor dispôs-se a ajudá-lo...

Para além destes... Patrícia... Rosa e Luís... Ficaram vogais... Todos os outros... Ficaram colaboradores... Roberto ficou muito triste e indignado por ninguém ter votado nele... Alegando ter sido uma cabala...

Martinha... Júlia e João... Ficaram colocados no conselho fiscal... Cláudia... Dora e Irene... Na assembleia geral...

A utilização do associativismo como ferramenta educativa... Era fundamental para Pedro... Não fosse sua a ambição... Ou desígnio... De conquistar com aqueles jovens toda uma sociedade acinzentada e fechada... Tornado-os para isso... Mais participativos e sociáveis...

A troca de experiências... A partilha e a convivência com os demais... Propiciaria um maior e mais fácil desenvolvimento... Fazendo jus à base normal e natural do associativismo... Como movimento de massas... Que acrescenta qualidade à vida das pessoas... Sempre com ideia no crescimento... Desenvolvimento e progresso...

Assente na velha premissa de que o movimento associativo procura respostas para as pessoas... Estruturando e organizando populações... Permitindo o livre acesso a actividades culturais... Desportivas e sociais...

Se pensarmos na acção das comissões de moradores ou associações locais... Tudo começou sempre com o objectivo de juntar as pessoas... Trabalhar num projecto comum... Resolver um ou vários problemas existentes... Enfim... Na visão deste professor... Na escola não haveria de ser muito diferente...

Pedro explicou-lhes o funcionamento normal de um clube ou associação... Para isso... Discutiu-se o assunto das colectividades no contexto residencial nos alunos... Deram-se exemplos de clubes grandes... Agrupamentos e sociedades próximas das suas casas... O que faziam e que tipo de ofertas desportivas e de outros âmbitos tinham para oferecer... Falou-se do papel dos sócios... De futebol.. Cartas e Dominó... Bailes e quermesses...

O professor informou que na maioria dos casos... Independentemente da denominação do clube... Associação... Grémio ou colectividade... Ou sociedade... As pessoas juntavam-se para conversar... Dançar... Discutir problemas e situações... Fazer desporto e jogar jogos de mesa... Como ponto de reunião... Destinado a promover o bem estar dos sócios e das suas famílias... Através de actividades de lazer... Mais ou menos organizadas... Em função do contexto... Dos intervenientes e das suas ambições...

Se nos debruçarmos numa perspectiva histórica e sociológica... Desde os primeiros clubes... Associações profissionais ou outro tipo de sociedades... O papel destes foi-se modificando ao longo dos tempos... Primeiramente fechados a um grupo restrito e elitista de sócios... Vedado a ricos e intelectuais... Posteriormente dinamizados pelas classes operárias e povo... Sempre intervenientes... Com o carácter instrutivo e intervertivo...

Um importante papel social... Educador e modificador de mentalidades... Hoje porém... Menos e bem mais simples... Sobreviventes com dificuldades muitas... Alimentados e dinamizados por carolas... Gente insistente que se aplica e dinamiza... E que nada ganha... Bem diferente dos grandes clubes... Sociedades desportivas com cotação na bolsa... Bem longe e diferente da vontade e propósito do movimento associativo...

A primeira tarefa foi organizar um plano de actividades por período lectivo... Onde se realizassem actividades de carácter desportivo... Uma vez por semana... Com o objectivo de agregar todos os alunos...

Assim sendo... Programaram-se e organizaram-se jogos de futebol... Passeios pedestres... Torneios de desportos de combate... Encontros de jogos tradicionais e gincanas... Idas à praia... Corta-mato... Corridas de velocidade e muito mais...

Luís fez o logotipo... Aliás... Começou logo a fazê-lo assim que se escolheu o nome... CCD... Chupetas Clube Desportivo... Por sugestão de Patrícia...

António Pedro Santos

(Continua)...

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXVIII

Ao longo dos tempos... As pessoas com qualquer tipo de deficiência ou imperfeição... Fosse física ou mental... Passaram por diversos constrangimentos... Humilhações e abusos... Várias fases e episódios vergonhosos que foram sendo ultrapassados com o decorrer da história... Ou não... Se pensarmos que ainda hoje... Esta franja da população mundial... Minoritária e ostracizada... Ainda sofre todo um conjunto de situações pouco ou nada inclusivas...

Dos primeiros povos que habitaram o planeta... Não existem escriturações acerca da deficiência... Porém... Acredita-se que não deveriam sobreviver num ambiente tão agressivo...

Hoje os problemas são outros... Se comparados aos do antigo Egipto... Dois mil e tal anos antes de cristo...

Através do estudo e observação dos documentos e monumentos que ainda hoje existem... Como por exemplo as múmias ou painéis de pedra... Podem encontrar-se  problemas corporais e distrofias em todos os grupos sociais da época...

Coincidentemente... Por esta altura também se efectivaram algumas experiências ao nível da medicina... Para combater enfermidades e anomalias... Ou melhor... Tentar...

Geralmente... No antigo Egipto... As pessoas com qualquer tipo de deficiência eram canalizadas para trabalhos pesados... Como os da terra ou outros de carácter mais árduo... Os cegos eram aproveitados para realizar trabalhos artesanais...

Na Grécia... Alguns filósofos da época... Bem conhecidos das aulas de filosofia de hoje... Referiam que as crianças que nasciam disformes deveriam ser eliminadas...

Em Esparta... Sempre que uma criança nascia... O seu progenitor tinha a incumbência de a apresentar a um conselho... Este... Decidiria se a mesma era saudável...

Se apresentasse sinais de normalidade era criada até aos sete anos pelos pais... Para posteriormente... Ser educada para a guerra... Antagonicamente... Os menos desenvolvidos... Ou que apresentassem qualquer tipo de limitação... Eram atirados para um abismo... Abandonados ou expostos...

Consideravam os entendidos da época... Que não apresentavam condições para viver..

Os romanos utilizavam as crianças... Jovens e adultos com deficiência para o entretenimento... Isto é... Circos... Tabernas e até prostituição... É que nesta altura já haviam taras para todos os gostos...

De certa forma... Não muito diferente dos exemplos anteriores... Em que estas pessoas eram marginalizadas e acabrunhadas...

Características de prematuridade... Altercações visíveis a olho nu... Sinais ou limitações óbvias... Em muitos casos e povos... Consentia-se aos pais o direito de as eliminar... Sem qualquer tipo de sanção...

Por esta altura... Usava-se muito o afogamento...

Durante anos e anos... Foram cometidos abusos criminosos e violentos... Humilharam-se seres por serem diferentes... Seres estes... Que não haviam pedido para vir ao mundo...

Com o aparecimento do cristianismo... Aconteceram algumas mudanças... Ideológicas... Todavia... Na parte prática não foi bem assim...

Apareceu um conceito novo... Ou lengalenga... A história da caridade... O amor pelo próximo... O perdão... Enfim... Uma mensagem naturalmente mais fácil de chegar aos mais desfavorecidos e fracos... Onde abundavam os tais problemas de saúde ou qualquer tipo de deficiência...

Apareceram mosteiros... Congregações... Instituições de caridade... Descentralizadas... Em que trabalhavam monges... Padres e freiras... Para apoiar...

A verdade é a velha história do costume... Ou seja... A troco de abrigo ou comida... Até se diz ou escuta um pai nosso... Certamente haveria quem mais fizesse...

Por outro lado... Bispos e altos padres... Vestiam e comiam bem... Ainda hoje é assim... As igrejas também estavam... E ainda estão... Bem recheadas de adornos dourados...

Curiosamente... A igreja auxiliava as pessoas com deficiência... Contudo... Não permitia que estes seguissem a vida do sacerdócio... Fossem simplesmente deficiências mentais... Mutilados ou deformidades... Não podendo ter nenhuma parte imperfeita ou incompleta...

Era uma ajuda distante e sem muito contacto... Segregando-as e separando-as em locais próprios e afastados...

Na idade média... As epidemias assolaram o mundo... A falta de asseio... A fome e as más condições de vida... Contribuíram para o desenvolvimento e propagação de uma série de doenças...

No que se refere à deficiência... Nesta altura acreditava-se que estavam relacionados com crenças e punições divinas... Assim sendo... Todos os que eram desiguais passaram a ser declinados... Inclusive pela própria igreja...

Para que se saiba e não esqueça... A inquisição julgou e condenou todos os que eram diferentes... Fosse de aspecto ou de ideais...

Como sempre... Encontravam-se excluídos... Pedindo e mendigando... Rejeitados pelas famílias e pais... No fundo... Focos de desprezo... Atracção e de divertimento...

O renascimento foi um movimento novo que trouxe uma cultura mais humanista...

Para além disto... Realizaram-se avanços notórios na ciência... Contribuindo para o aumento do conhecimento... Desmistificação de conceitos e uma melhor intervenção...

Se analisarmos a evolução das concepções... Notamos avanços e regressões...

Na sociedade... Termos como... Idiotas... Parvos e aleijados... Débeis ou anormais... Posteriormente deficientes... São hoje substituídos por excepcionais... Diferentes ou com necessidades especiais...

Alguns dos mais antigos... Ainda são utilizados para gozar ou desvalorizar alguém... De um modo jocoso e depreciativo...

Na idade moderna surgiram algumas inovações... Como os métodos de comunicação para surdos... O braille... Próteses e cadeiras de rodas... Criaram-se associações para o estudo e atendimento deste tipo de pessoas... Os asilos e os lares...

No século dezoito e dezanove... Pinel... Um médico francês... Aparece com o conceito de doente para definir as pessoas com perturbações mentais...

No século vinte... A sociedade passou a atender melhor as pessoas com deficiência ou limitações... Aperfeiçoaram-se as bengalas e as cadeiras... Apareceram organizações internacionais... No sentido de homogeneizar procedimentos... Direitos e formas de intervenção...

Com a declaração universal dos direitos do homem... Em mil novecentos e quarenta e oito... Passou a entender-se o ser humano como nascido livre e igual em dignidade e direitos...

Durante muito tempo foram criadas imensas associações para apoiar e atender crianças... Jovens e adultos com deficiência... O ensino era segregado... Isto é... separado dos alunos ditos normais...

Depois do vinte cinco de abril... O associativismo proliferou por todo o país e criaram-se associações de pais... Federações e cooperativas com vista a atender estas pessoas...

O trabalho foi imenso... Fizeram-se centros de actividades ocupacionais... Escolas especiais... Mas sempre separadas das escolas do ensino regular...

Com o tempo... Foram-se inovando conceitos e pensamentos... Com as declarações de Madrid e Salamanca... A CID... A classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde... A OMS... Organização mundial de saúde... O DSM... Da associação americana de psiquiatria... Uma espécie de manual de diagnóstico e estatístico de perturbações e desordens mentais... A CIF... Ou... A classificação internacional para a funcionalidade...

Enfim... A publicação de legislação variada... De novas versões sempre mais actualizadas... Estudos e informação remasterizada... E muito mais...

Actualmente... Ainda existem estabelecimentos de ensino segregado... Onde alunos com problemáticas diversas se amontoam e convivem... Porém... Hoje tenta-se a integração...

Espantosamente... Portugal está na linha da frente... No que respeita a profissionais e legislação de referência... Surpreendentemente... Ou não... Os chamados países mais desenvolvidos... Ainda preferem estigmatizar e separar este tipo de alunos... Atendendo-os em escolas especiais para o efeito...

Pedro acreditava num país democrático... Mais integrador e onde todos pudessem beneficiar das mesmas oportunidades...

Ainda com dificuldades... Há que juntar normais e diferentes... Para... Só assim se construir uma sociedade mais justa... Verdadeira e social...

Ao longo da sua intervenção... Este professor constatou que os alunos com maiores dificuldades evoluíam sempre na presença de colegas mais inteligentes... Pelo contrário... Alunos com deficiências mais ligeiras... Regrediam... Quando em contacto permanente com colegas com maior grau de severidade...

A sociedade deve estar preparada para lidar com a diferença... Nunca esquecendo... Que o mundo a todos pertence...

Altos e baixos... Gordos e com óculos... Com distrofias e autistas... Homossexuais... Surdos e mudos... Com e sem crenças religiosas... Pretos e brancos... Devem conviver...  Aprender e trabalhar juntos... Só assim... Seremos mais fortes... Fraternos... Humanos e iguais... 

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXVII

Ao longo da sua actividade lectiva... Pedro constatou que existiam imensos problemas relacionados com a integração dos jovens com deficiência na sociedade... O fraco  nível de leitura... Ou ausência total... Era um deles...

Era importante o desenvolvimento das competências de leitura... Assim como da sua  compreensão... Só assim se conseguiria uma maior autonomia pessoal e social e consequente sucesso escolar...

A leitura está dependente de um relacionamento saudável entre as actividades do pensamento... Só dinamizando mentalmente as composições cognitivas... Acrescendo competências e invertendo comportamentos... O indivíduo conseguirá de facto aprender... Delineando a sua própria experiência de vida...

A leitura e a escrita funcional... Era algo que Pedro ouvia falar... Contudo... A sua formação era muito parca nesse sentido... Porém... E na verdade... A sua investigação frequente era deliciosa... Cada dia o cativava mais e mais...

A angustia da prática e a impotência que dela surgiu... Abriam à necessidade de saber um caminho... Absorvente e encantador...

O professor percebeu que era mais fácil para a maioria dos alunos... A utilização... Na escrita... Das letras de máquina maiúsculas... Sobretudo aqueles que tinham maiores dificuldades ao nível da motricidade fina... Como tal... Elaborou uma tira de papel para cada aluno... Que os acompanhava sempre... Com o nome completo... Idade... Data de nascimento e residência...

Esta ferramenta de trabalho foi realizada no computador... Com a ajuda de Teófilo...

Utilizou-se na sala de escolaridade e na sala de estimulação global II... Onde os alunos eram convidados a realizar como actividade inicial... No caderno de trabalho...

Naturalmente... A maior parte dos alunos foi aprendendo e realizando esta aquisição aparentemente simples...

Lentamente... Foi também percebendo... Que o chamado  ensino normal da leitura e da escrita... Não funcionava para todos...

Inicialmente foi muito trabalhoso e experimentou vários métodos... Mas primeiro teve de os aprender...

O método sintético... É o método que se começa com o esboço independente de cada letra... Devendo ser realizada dentro de um espaço limitado e criado para o efeito...

No fundo... Depois de se conhecer a sonoridade de cada uma... De saber reproduzi-las no papel... Espera-se que o aluno já saiba ler... Pois basta juntar as letras e decifrá-las.

No método analítico ou global... O aluno começa por assimilar um texto escrito... Decorando-o... Posteriormente... Tendo em conta as suas capacidades e engenho... Vai tirando conclusões...

Escreve letras e palavras sem as diferenciar... Não existem linhas e o caderno é um espaço de ampla criação... Realça-se a importância da significação do que se escreveu...

O método natural aborda a globalidade... O aluno aprende livremente... Ou melhor... Naturalmente... De acordo com os seus interesses... São compostas pequenas frases... Lidas e reproduzidas... Realiza-se uma compilação de cada situação... Exercitando desta forma... A leitura e a escrita...

Com o tempo... Correram diversas opiniões de que o método perfeito não seria puro... Mas sim composto de algumas fusões com outros... Misturando correntes e formas de trabalho...

Apareceram os métodos mistos... Ou seja... Vários métodos de iniciação da leitura e da escrita... Consoante as situações e as circunstâncias...

No método das vinte e oito palavras... São contextualizadas... De acordo com uma progressão pedagógica... Vinte e oito palavras... Que vão sendo estudadas e globalizadas... Lidas e escritas pelos alunos... Analisando cada palavra até à sílaba.

O método João de Deus apresenta as dificuldades da língua de uma forma gradativa... Visão das letras... Sons correspondentes... Leitura de palavras...

Os casos de leitura e as suas especificidades são abordados de acordo com um processo estruturado... O aluno tem um papel de extrema importância na descoberta de que a disposição da letra na palavra determina o seu valor em termos sonoros... Vai assimilando códigos e vai evoluindo de uma forma consertada...

Com o tempo... Começou  a chegar à conclusão... Que a sua intervenção espontânea... Não estava assim tão fora da realidade... Pois... Pedro utilizou vários métodos... Alguns deles em simultâneo... Fundindo utilidades comuns entre eles... De acordo com as capacidades... Dificuldades e necessidades dos alunos...

Paralelamente... Foi criado um arquivo de ficheiros de leitura funcional... Isto é... Actividades de leitura e escrita prática... Como os meses do ano e os dias da semana... A localidade... As vilas... Cidades e aldeias... Os serviços... Os correios... Bancos e câmaras municipais... Centros de saúde... E mais...

Nesta área... Em articulação com a educadora social... Trabalhou-se também o preenchimento... Utilização e conhecimento de boletins... Impressos e outros documentos... A consulta de horários de transportes... Postais e cartas... Facturas e talões... Cheques... Assim como outras coisas de utilização na vida quotidiana... Simulações reais da própria realidade da vida...

Facilmente... Este ficheiro auxiliava os alunos a globalizar palavras... Ou a conhecer logotipos...

De uma forma espontânea... Começaram a ler... Marcas publicitárias... Lojas e serviços... Curiosamente... Alguns deles... Ou melhor... A grande maioria... Sempre afastados da vida académica... Assim como... De tudo o que se referia à leitura e à escrita... Começaram a ter maior prazer em ler e mostrar que já sabiam... Nem que fosse de um modo ainda arcaico e inicial... Ainda que fosse de uma forma muito funcional...

A verdade é que muitos já liam... Havia sido quebrada uma enorme barreira entre o conhecimento e o desconhecimento... Um grande salto... Da sua impotência para um sentimento de quem agora sabe ser capaz... O sair da resignação... Para uma forma de estar... Aberta... Atenta e viva... A simples postura e a pose de segurar uma folha... Ainda que se fingisse conseguir ler...

Outra das coisas que contribuiu para isto... Foi a identificação dos espaços... Que o professor já tinha feito... E posteriormente das coisas e objectos... Isto é... De tudo o que se via dentro da escola... Por exemplo... Todas as cadeiras tinham a palavra escrita... “CADEIRA”... Fixada com papel autocolante... As mesas... A palavra... “MESA”... E mais... Nas paredes... Nas janelas e portas... Nos cadernos... Móveis e todos os objectos possíveis... Que eram muitos... Até o chão e o tecto estavam identificados...

Em pouco tempo... O professor e Teófilo... Realizaram imensas etiquetas de papel com autocolante... Que distribuíram por toda a escola... Um trabalho que nunca teve fim... Uma vez que iam sempre surgindo novas coisas...

Foram criados dossiês temáticos... Onde compilou com Teófilo... Imagens reais e outras desenhadas... Com a palavra por debaixo... Enfim... Uma forma prática de associarem a palavra à imagem...

Para isso... Usaram jornais... Revistas e fotografias...

Os temas eram diversos... Como... Profissões... Material escolar... Cores... Figuras e sólidos geométricos... Objectos de utilização pessoal... A casa... Os instrumentos musicais e mais...

Mais tarde surgiu a ideia de cada aluno ter o seu próprio dossiê... Ou a sua pasta... Nela concentrava-se todo o seu trabalho... Andava sempre com eles... De casa para a escola e da escola para casa...

Alguns pais passaram a ser mais atentos e empenhados... Não muitos... Pois há muito que haviam esquecido que os seus próprios filhos também tinham capacidade de se desenvolver... Enfim... Quem queria... Conseguia ver o que eles trabalhavam na escola e se quisessem poderiam trabalha-los também em casa... Estimulando-os e reforçando o seu processo ensino aprendizagem...

Iam construindo o seu próprio dicionário ilustrado... Com as suas vivências e imagens... Experiências e origens... E muitas mais coisas... Cada um decorou-o como gostou.. Ou como pôde ou conseguiu... Mais tarde... Houve quem lhe chamasse Portefólio... Ou melhor... Uma colecção de todo o trabalho que se ia realizando...

Os conteúdos trabalhados na sala de escolaridade... Assentavam muito numa metodologia funcional... Isto é... Uma escrita e uma leitura que lhes desse dignidade... Que servisse... Para a melhoria da sua imagem pessoal e consequente conquista de um lugar no campo social... Na vida e na comunidade... Como seres úteis e capazes... Merecedores de um lugar ao sol...

António Pedro Santos

(Continua)...

 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXVI

Em conversa com Luz... No café...

Os seus olhos confessavam uma beleza infinitamente azulada... Que se completava num sorriso radiante e convidativo... Por vezes ria... Mas era diferente...

Se um sorriso fosse o mesmo que um riso... Também um berro não seria dissemelhante de um simples sussurrar... Não fosse a sua distância atroz e longínqua... 

O riso é uma detonação... Explosão... Disparo... O sorriso é suave e silencioso... A diferença de um vendaval para uma brisa suave de verão... Uma tempestade e um dia de sol... O riso como desabafo e um sorriso como um estado da nossa própria alma... A diferença da integração com polimento... Para uma infindável invenção dos outros e de nós mesmos... Uma resistência inclusiva e um simples transparecer da nossa intimidade... Agitar de consciências... Atenção esmerada... Elegância... A braços com a loucura e com a harmonia...

Os seus lábios húmidos... Tocavam no cigarro... Com sensualidade...

Pedro olhava-a com vontade... Sentindo o seu cheiro... Bem próximo de si...

A educadora social aparece e senta-se... Rapidamente... Começam a falar de trabalho... De alunos e de dificuldades... Barreiras e facilitadores... De peripécias e de outras situações... Causadas por estes...

Martinha começou a queixar-se da sua sala... Muito ampla e vazia... Apenas com uns cartazes na parede... De aspecto escuro e frio... Com pouco estímulo para trabalhar os alunos... Face ao espaço... Que até não era mau...

- Gostaria de alterar a tua sala! – Interrompeu Pedro... – Isto é... Se me deres autorização! – Aperfeiçoou...

- Alterar?... – Questionou estupefacta... Abrindo os seus olhos na direcção do professor...

Pedro sorriu e disse:

- Pensa comigo... A tua sala é comprida e está pouco aproveitada... – Nesse instante... O professor apanhou um guardanapo do centro da mesa e começa a desenhar...

- Se dividíssemos a sala em três partes...

- Três partes? – Interrompeu Luz... – Fazer paredes?

O professor desenhou no rosto uma expressão de gozo e prosseguiu:

- Com biombos... Ou móveis... Por exemplo!..

Luz sorriu... E Pedro continuou:

- Três partes para três áreas fundamentais! – Exclamou... Olhando-as... – Para trabalhar melhor a autonomia dos alunos e o treino de actividades da vida diária! – E continuou com o esboço... Enquanto as duas colegas o olhavam surpresas... Mas... atentas...

- Tens um lavatório ao fundo da sala?... Não tens?

- Sim! – Respondeu... – E uma pequena bancada!

- Óptimo! – Exclamou... Continuando a rabiscar no papel... Enquanto as suas colegas... Iam tecendo comentários jocosos acerca do seu fraco jeito para o desenho...

Depois de o concluir... Pedro começou a expor o seu esboço...

A ideia do docente era simples... E resumia-se à criação de três espaços dentro da mesma sala...

À entrada desta... Uma primeira zona... Composta por uma mesa... Uma televisão... Cadeiras e algum material básico... Onde a educadora social poderia reunir os alunos antes das actividades... Assim como... Trabalhar sessões individuais e de grupo... Executar tarefas mais teóricas de aplicação simples... Como o visionamento de filmes... A análise de documentos... Simulações... Entre outros...

Um segundo espaço... A seguir ao primeiro... Separado por um biombo ou móvel... Com uma cama...

- Uma cama! – Gritou Luz... Com o seu sorriso maroto... Martinha também sorriu e Pedro respondeu:

- Sim Luz!... Uma cama!

Nesse local... Colocariam uma cama com lençol... Cobertor e almofadas... Para que os alunos aprendessem esta actividade básica... Assim como... Uma cómoda com espelho... Com objectos e produtos de uso pessoal e diário... Para trabalharem aspectos relacionados com o quarto... Nomes... Utilizações... Enfim... Uma estrutura composta por cabides com várias peças de vestuário... Desde a cueca... Ao fato e ao vestido... Para os nomear... Vestir e conhecer a sua utilidade e adequação...

No terceiro espaço... Ao fundo da sala... Fariam uma pequena cozinha... Com alimentos de plástico... Embalagens reais... Torradeira... Pequenos electrodomésticos... Um lavatório e uma pequena bancada... Para que os alunos beneficiassem de uma área vocacional de culinária... A fim de se confeccionarem pequenas refeições...

A ideia caiu bem e Luz falou com dona Filó... Que deu um parecer positivo... E assim foi... Trataram de tudo...

Pedro arregimentou os seus alunos... E com a ajuda das oficinas... Nomeadamente... Irene e Dora... Sempre prontas a intervir e transformar... E claro... A educadora social... Deitaram mãos à obra e fizeram a remodelação...

Arranjaram-se móveis usados para fazer divisões... Um biombo foi construído nas oficinas... Restaurou-se uma cama que Roberto e Carlos encontraram no lixo... Um colchão velho... Que Virgílio arranjou e lavou sozinho... Lençóis e cobertores... Que Bela dispensou da sua casa... E até almofadas... Enfim... Até um microondas e um fogão velhos...

Lentamente... Pedro... Começou a recolher junto dos alunos e funcionários... Peças de vestuário... Que posteriormente... Algumas alunas lavaram na lavandaria da escola... Como... Angela e Ilda... Cláudia... Rosa e Patrícia... Com a ajuda de Bela e de Leontina...

Aos poucos... E de uma forma espontânea... Experimentou-se e implementou-se mais uma área vocacional interna... Lavandaria e engomadoria... Com o tempo... Alguns alunos passaram por lá... Revelando empenho e sucesso... Uns mais que outros... Como em tudo e todos nesta vida...

Em suma... A sala ficou surpreendente e muito mais funcional... Passou a haver espaço para trabalhar as actividades da vida diária... De uma forma mais real e prática...

Pedro auxiliou na realização de cartazes de trabalho em conjunto com Martinha... Relacionados com a segurança e higiene... Prevenção rodoviária... E mais temas... Resumidos em pósteres mais apelativos e direccionados às dificuldades... Capacidades e necessidades dos alunos...

Diante das dificuldades dos portadores de deficiência... A sociedade... Os pais e professores... Técnicos e outros... Tendem a protegê-los... Impedindo-os de vivenciar experiências que poderão promover o seu desenvolvimento pessoal e social...

Como tal... É de extrema importância trabalhar as actividades da vida diária... No sentido de elevar a autonomia dos intervenientes... Isto porque... Quando nascemos... Apresentamos uma dependência total... Que se vai perdendo de um modo gradual e natural...

Neste tipo de crianças e jovens com deficiência... É imperioso treinar comportamentos adaptativos... Como a postura... O vestir e a realização da higiene... Os hábitos à mesa e o saber estar...

Por todo o lado se reuniram latas de conserva... Pacotes de leite... Garrafas de sumo e outros objectos... Sem utilidade e que foram reutilizados na nova cozinha... Um espaço de trabalho e de treino de competências...

A sala foi utilizada por todos os que já beneficiavam deste gabinete... E por mais alguns... Houve necessidade de reestruturar horários de forma a albergar mais alunos e rentabilizar a sala...

Fizeram-se simulações de vendas de produtos confeccionados... Para trabalhar as trocas monetárias... Porque também houve quem arranjasse uma caixa registadora velha... Venderam-se bolos à fatia... Doces e gelatinas... Pipocas... Lavou-se louça... Aprenderam a pôr a mesa... Fizeram camas e identificaram peças de vestuário...

Para além disso... Trabalharam e treinaram situações de segurança com produtos alimentares... Como... Identificação de rótulos... Análise do prazo de validade...

Abordou-se a saúde... A vacinação e os produtos nocivos e perigosos... O conhecimento dos símbolos... Falou-se da higiene e da sua importância... Da rotina dos banhos e como tomar banho... Da lavagem dos dentes e da roupa...

Abordaram-se sinais de trânsito... Semáforos e passadeiras... Regras e alguns cuidados para circular na rua... Enfim... Situações que com o tempo... Foram experimentadas em tamanho real... Afinal... Era a vantagem do treino destas capacidades... Habilidades e competências... Que aos poucos... Naturalmente e facilmente eram adquiridas pelos alunos na sua vida diária...

Durante a remodelação da sala... Pedro anexou um pequeno anexo de arrumos nas imediações... Com cerca de seis metros quadrados... Que vagarosamente também começou a remodelar...

- Para que vai ser esta sala? – Perguntou Elisa... Incrédula...

- Esta vai ser a sala de música! – Respondeu...

A educadora ficou como sempre... Atónita e descrente... Sempre encostada à impraticabilidade e à dificuldade das coisas...

Tradicionalmente... Este sentimento de pequenez... Mistura-se por vezes... Ou quase sempre... Com uma boa dose de arrogância... Falta de humildade e soberba... Inveja e egoísmo...

Na mente de Pedro... Não havia espaço para indecisões... As barreiras trepavam-se ou contornavam-se... Sempre de cabeça erguida e com uma visão de progresso... Para lá das conversas derrotistas... A necessidade de ser optimista... Contra o pessimismo...

Elisa era assim... Encarava tudo de um modo negativo... Conjecturando sempre o pior... Estigma bem relacionado com o sentimento português mais elementar e derrotista... Onde existe total supremacia do mais forte sobre o mais fraco... Do maior para o mais pequeno... Do rico e do pobre... Enfim... Do bem e do mal... Num atónito conformismo... Privação e isolamento obediente... Distante do crescimento e da expansão...

A sala não era mais do que um local com um rádio gravador... Em cima de uma mesa... A guitarra... E os restantes instrumentos que encontraram durante a limpeza da sala de estimulação global...

Posteriormente e em articulação com as oficinas... Fizeram-se outros instrumentos musicais... Latas de tinta vazias... Grandes e pequenas... Que serviam de tambores e timbalões... Paus de chuva... Flautas de cana e pífaros... Chocalhos de caricas... Adufes com telas velhas... E mais...

Juntou-se a criatividade com o desembaraço... Ampliou-se o conhecimento através da expressão...

Uma vez por semana... Pedro passou a orientar actividades com os alunos... Treinando canções... Acompanhando melodias do rádio... Cantando à capela... Usando a percussão como acompanhamento...

Curiosamente... Os alunos tinham uma cultura musical muito básica... Pimbalhada... Novelas e canções infantis... Não fosse este um desígnio das televisões... Rádios e governos portugueses... Estreitar a mente das pessoas... Para que sejam mais resignadas e amorfas... Numa promoção da apatia e da submissão...

Com o passar do tempo... Pedro também tentou inverter isso... Ouviram-se outros sons... Outras canções... Nessa altura... Entendeu que as novas canções também educavam... Isto é... Os ouvidos permitiam facilmente a entrada de novos sons... Pela repetição e pelo treino... Variando a intensidade... Os contextos e os momentos...

Decoraram a sala com imagens de grupos musicais e artistas... O professor aproveitou a sala para colocar imagens de instrumentos musicais com os nomes... Para facilitar a sua identificação...

Mais tarde... Pedro descobriu que a musicoterapia poderia revelar-se eficaz para este tipo de alunos... Isto por... Apresentar características inclusivas... Trabalhar a expressão e a desinibição...

A música como componente facilitador e integrador... Onde não existe deficiência na forma como se interioriza e exprime a mesma... Uma vez que... Cada pessoa entende-a de uma forma muito particular...

A música como terapia... Pode minorar algumas dificuldades... Pode auxiliar no desenvolvimento da comunicação... Da motricidade e socialização...

Com a musicoterapia... Pode trabalhar-se também a autonomia... A auto estima e a cognição... Memorizando canções... Encadeando rimas e tons... Por meio de batidas... Que ao acaso ou cadenciadas... Poderão marcar um compasso sério ou divertido... Integrando tudo e todos... Sem pudor e estigma... Intensamente... Intimamente e socialmente...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXV

Depois da pintura do espaço... E até por causa da área vocacional interna de jardinagem e hortofruticultura... O professor lembrou-se de dinamizar alguns canteiros existentes na escola... Limpando-os com os seus alunos e criando rotinas de preparo e de manutenção... Rotinas essas que seriam importantes ferramentas para o desenvolvimento geral dos alunos...

Na problemática da deficiência... Os seus intervenientes... Não estão isentos do cumprimento de horários e de rotinas sociais... Como tal... As actividades da vida diária... Devidamente enquadradas na prática das crianças e jovens... Poderão revelar-se como importantes instrumentos de trabalho e de intervenção... Estas... Passam a exercer um papel quer como... Elemento terapêutico... Quer inclusivo... Para além disto... Desenvolve-se a autonomia para pensar... Estruturar e de agir... Através da planificação do trabalho e da participação em todo o processo de gestão...

A horta... Tornou-se um espaço de invenção comunitária... De expressão de conhecimento e produção de produtos... Humanização paisagística que diariamente se modificava... Experimentação de capacidades e vontades... Superação das limitações e consequente transformação em facilidades... Enfim... Socialização e convivência... Com pares e adultos... Num ambiente naturalmente conquistado... Realizando mudanças reais de carácter... E de representação social...

No início... Semearam salsa... Coentros e alfaces... Mais tarde... Couves... Favas e ervilhas... Os canteiros eram muito poucos... Posteriormente... Começaram a colocar garrafões de água de cinco litros... Cortados... Arranjados no comércio local... Ou... Nas casas dos alunos... Envolvendo-os a eles e às famílias... Assim como... A comunidade enleante... Num projecto comum... Onde semearam mais coisas... Batatas... Cenouras... Beringelas... Pimentos e muito mais...

Tudo estava disposto num canto solarengo... Junto à sua sala de aula... Aí... Parqueou uma mesa velha... Que os alunos restauraram... Pintando-a de verde e castanho... Servia de bancada... Onde se dispunham pequenos canteiros... Os tais garrafões... Garrafas grandes e pequenas cortadas... Assim como outras vasilhas de plástico e baldes velhos... Que fizeram de canteiros... Que de bem colocados e dispostos... Embelezavam o local...

Aos poucos... Pedro criou um mapa de manutenção da horta... Ou melhor... Do jardim... Ou quintal... Como alguns carinhosamente lhe chamavam... Onde estavam... Bebé... Cristina... Carrapito e Filipe... Ramos e Samuel... Para regar... apanhar as ervas daninhas... Identificar culturas com etiquetas...

Com o tempo... Começaram a semear e plantar flores... Rosas... Cravos e lisandros... E até alguns arbustos pequenos... Alfazema... Alecrim e poejo... Enfim... Gradualmente.. Os outros alunos também se meteram no projecto... De uma forma natural e espontânea... Alguns até levaram sementes e algumas plantas de casa...

Cristina... A mais limitada deste grupo... Começava aos poucos a adquirir a sua noção de rotina diária... Enchia os regadores e regava... Chegou a afogar algumas plantas... Mas não foi caso único... E... Sempre que acontecia... Pedro e os mais velhos explicavam que água a mais era prejudicial à planta... Mas... Foi assim...

Os alunos da sala de estimulação global II também colaboraram... Isto é... De quando em vez... Alguns... Como era o caso de Hélio e Zé... Arrancavam as folhas das plantas e colocavam-nas na boca... Não fossem os dois autistas... Isolados e à parte... Sem se misturar com os outros... Rotinados e persistentes no seu próprio dia a dia... Sem manter o contacto visual ou físico com os restantes... Parecendo não ouvir... Quanto mais escutar... Apegados religiosamente a objectos que giram de uma forma estranha e peculiar... Sem qualquer noção do perigo... Rindo e mexendo-se sem explicação...  Balançando-se... Agitando-se... Cheirando e lambendo coisas... Sem fundamento... Ou quem sabe... Talvez com sentido...

Alguns confundiam as ervas daninhas com as que... Na realidade... Não eram para apanhar... Mas na verdade... Até os mais velhos se enganavam... Inclusive Pedro e outros adultos... Bem... Alguns... Achavam-se conhecedores demais... Como Bela... Luz e até Roberto...

As favas davam-se bem... Sem muito cuidado... Preparação ou manutenção... Com o tempo... Foram aparecendo e desenvolveram-se...

Quanto aos alunos da sala de estimulação global I... Pouco ou nada contribuíram... Contudo... Beneficiaram... À sua maneira... Do ambiente verde e mais cheiroso...

Por vezes... Iam lanchar nas suas cadeirinhas para o pequeno jardim que o professor havia improvisado... Chegaram a fazer-se actividades de carácter olfactivo com plantas aromáticas...

Não fosse o olfacto... Um sentido vasto... Que fornece pistas para a orientação e para a localização... Uma interacção que identifica ambientes... Espaços e locais... Um auxiliar para a mobilidade... Protecção e segurança... Que ajuda o deficiente a conhecer-se melhor a si e ao mundo que o rodeia...

Nessas actividades olfactivas... Os alunos cheiraram folhas... Terra seca e molhada... Aromas e fragrâncias... Quem sabe... Se não as distinguiam... Alguns... Metiam-nas na boca... Pedro não achou mal... Já Elisa... Passou-se...

Para o professor... Talvez diferenciassem sabores e experimentassem sensações... Ruben... Por exemplo... Adorava mascar camomila...

Mais tarde... Pedro descobriu que a camomila tinha propriedades calmantes... Pois... Contribuía para a diminuição da hiperactividade... Propiciando a tranquilidade e colaborando para a diminuição do stresse...

A verdade... É que ele se acalmava mesmo... Quem sabe... Se esta não seria uma forma natural de fugir à enorme quantidade de medicamentos que diariamente tomava...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXIV

O colégio estava construído no centro de uma velha cidade... A sua edificação era oitocentista... Ou talvez... Do inicio do século XX... Como tal... Havia muito pouco espaço verde... Ou melhor... Nenhum... O ambiente era demasiado cinzento e eram frequentes as paredes velhas e sujas... Uma brancura deslavada e vã... Que preocupava Pedro...

O professor falou com as colegas das oficinas... Dora e Irene... Que gostaram da ideia de as pintar... Contudo... Haviam poucas tintas disponíveis... Tinham branco... Verde... Azul e rosa... Vermelho e mais algumas... Todavia... As quantidades não chegavam para fazer uma pintura decente... Pelo menos... Para as paredes interiores que se voltavam para o pátio da escola...

Irene lembrou-se de pintar as paredes às cores e até idealizou alguns perfis e pormenores... Como... Flores e crianças... Arco-íris e até um sol... Enfim... O projecto ficou à responsabilidade desta...

Pedro falou com Dona Filó... Que apenas respondeu... Com o seu ar sobranceiro:

- Confio no professor para limpar a imagem deste colégio!

Assim foi... Deitaram mãos à obra...

Os alunos que beneficiavam da área vocacional interna de reparação e manutenção... Começaram por colocar plásticos e cartões no chão... Junto às paredes a intervencionar...

De roupas velhas... Que sempre se arranjavam... E chapéus... Com luvas... Que Pedro continuava a desviar na bomba de gasolina... Lá iniciaram a obra...

Rolos e pincéis... Enchiam de cor as marcações realizadas por Irene e Dora... Luís também fez algumas...

Afinal... A pintura... Como arte genérica e comum... De aplicação de um pigmento liquido... Colorindo áreas e superfícies... Enchendo-as de cor e de encantamento... Em papeis... Telas ou paredes... Em matérias e materiais... Pintura de mural... Frescos...

Sintéticas e Celulosas... Cubismo... Impressionismo... Abstracção... Loucura poética e devaneio puro... Para lá das paredes e muros... De desenhos húmidos e secos... Quentes e frios... Pitorescos e reais...

Pedro também ajudou... Canalizando para o projecto os alunos que passavam por si... Aliás... Durante essa semana... A maioria das actividades lectivas não aconteceram... Havia necessidade de agilizar o processo... Só assim seria possível despachar tudo rapidamente...

Mário e Roberto... Luís... Carlos e Virgílio... João... Ronaldo e até Bruninho... Tiveram um papel de extrema importância no desenvolvimento e implementação do empreendimento... Bem como Ilda... Angela e Patrícia... Ana... Rosa e Claudia...

Os restantes... Colaboraram como puderam... Retocando alguns pormenores... Fazendo lanches... Carregando latas... Baldes e água... Pintando com auxilio... E mais... Muito mais...

Afinal... As actividades lectivas foram outras... Mas aconteceram... Numa promoção das práticas educativas... Mais próximas da normalidade... Ainda que... Com deficiência...

Um exercício de cooperação... De vivência e de autonomia.. Um ensaio de criatividade... O ser capaz em detrimento de incapaz... Crescer forte e com vida... Mesmo com limitações...

No final da obra... Houve tempo para algum silêncio e constatação... Por parte dos alunos e funcionários...

Pedro reuniu-os em grupo e falou-lhes... Elogiando o trabalho à minúcia:

- Hoje estou demasiado orgulhoso de vocês! – Exclamou... – Provaram ser capazes!... Reparem que desenharam portas e janelas nas paredes... Algumas árvores... Pessoas e bolas... Parece que estamos na rua!

- A bola fui eu que pintei! – Gritou Roberto... Complementando a sua intervenção com um enorme e despropositado salto... – Sozinho! Não foi Irene? – Indagou... Olhando-a... Como que esperando por aprovação...

Todos riram e Pedro continuou:

- Desenharam flores... Nuvens e até um sol! Estão de parabéns! – Afirmou...

Uma grande ovação invadiu aquele espaço... Um ruído ensurdecedor contagiou o local... Com mística e valor... Palmas para todos... Porque ali... Provaram ser úteis e iguais aos demais... Aos ditos normais... Conseguindo colaborar em grupo... Em equipa... Num projecto comum... Numa obra única e permanente... Para a posteridade... Um projecto de remodelação de um edifício velho e devoluto... Ao qual deram uma nova cor...

Isto porque... Na pintura... Com todo o fundamento da cor... Massas coloridas em estruturas básicas... Que de altivas e fortes... Obras de arte se tornam... Para espectadores atentos ou banais... Desfrutando de calor e frio... Proximidade e profundidade... Luz e sombra... Relações de história... De arte... De imagem e de base... Abafam a deficiência... O estereótipo e o preconceito...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXIII

Com o tempo... E com a inserção do professor na comunidade envolvente ao colégio... Pedro começou a estabelecer protocolos com algumas empresas e entidades locais... Onde... Alguns alunos passaram a desempenhar actividades de formação em posto de trabalho...

O professor elaborou inclusivamente... Alguns documentos para o efeito... Como... Um que fundamentava a formação no contexto de transição para a vida activa... Áreas vocacionais internas e externas... Combinados de espécies de currículos... Para cada área... Objectivos gerais e específicos... Expectativas... O envolvimento dos pais... Entidades parceiras e escola... Assim como... Autorizações e outros protocolos...

Pedro desenvolveu uma opinião bastante particular... Assim sendo... E para este... As áreas vocacionais deveriam ser inseridas no currículo do aluno com necessidades educativas especiais como sendo a primeira fase de uma futura integração profissional... Propiciando-se o experimentar e o descobrir de diferentes áreas profissionais de uma forma teórica e prática... Permitindo a aprendizagem de novas competências... Ou... Um conhecimento das capacidades dos alunos nas diferentes áreas... Sondando gostos... Procurando vocações...

Para ele... A escolha das áreas vocacionais a introduzir no currículo de cada aluno teria de ter em linha de conta os recursos humanos... Materiais e espaciais disponíveis... Deveriam ser diversificadas e ir ao encontro das motivações dos alunos e das necessidades da sociedade... Isto é... Actividades que revelassem carências de profissionais...  

No seu conceito... E de acordo com a estrutura de trabalho que aos poucos estava a montar... Para que estas áreas contribuíssem para a integração do aluno e consequentemente para o sucesso de todo o processo ensino aprendizagem... Deveriam ser planificadas... Delineando metas e linhas orientadoras... Objectivos... E ainda... Sujeitas a uma avaliação... De forma a adequar os conteúdos ao discente... Reestruturando-os sempre que necessário...

Embora houvesse uma certa relutância social... Em aceitar este tipo de alunos com deficiência... A escola... Tinha o dever de tentar efectuar parcerias com empresas... Instituições... Organismos públicos... Para auxiliar no funcionamento das áreas vocacionais... No sentido de proporcionar aos alunos melhores condições de aprendizagem... Assim como viabilizar futuros protocolos de formação ou até de emprego...

No fundo... Pedro criou pequenos currículos para cada área vocacional ... Assim como... Formulários... Onde assinavam... Pais e encarregados de educação... Os alunos em questão... A entidade empregadora... Ou melhor... Formadora... Ora parceira... E o director pedagógico... Na pessoa do professor... Como representante da escola...

Para além dos alunos que desempenhavam funções dentro do colégio... Na cozinha... Nas salas... Na carrinha... Refeitório e outros... Pedro conseguiu falar com a junta de freguesia local... Onde colocou Teófilo a realizar... Uma vez por semana... Numa tarde... Funções numa reprografia... Foi bastante complicado... Devido à sua problemática... Afinal... O autismo... Como disfunção global do desenvolvimento... Com a célebre tríade de Lorna Wing... A comunicação... Sociabilização e a imaginação... Ou seja... Os tais três grandes domínios do desenvolvimento humano... Seriamente afectados... Enfim... Pedro teve de o trabalhar muito... Acompanhá-lo no início... Mais tarde com Leontina... Posteriormente com João... O colega que frequentava a área vocacional interna de porteiro e de moço de recados... Até que por fim.. Sozinho... Sempre pelo mesmo caminho... A mesma rotina...

Respondia tipo robot... Articulando um discurso bem preparado e com ênfase... Porém e por vezes... Confundia-se na totalidade... Baralhando-se e perdendo a paciência com a sua cabeça e com os seus problemas…

Dizendo: “É a minha cabeça! Não tenho a culpa!”…

Nessa altura... Também regularizou a brigada da limpeza... O presidente da junta... Acessível e moderno... Achou graça ao projecto e tornou-se mais um aliado de Pedro... Arranjou algum material... Sacos de lixo... Vassouras e pás... E até umas camisolas com o brasão da freguesia... Os alunos... Esses ficaram mais inchados e até pareceram mais adultos e profissionais...

Falou também... Com a senhora do café que frequentava... Esta aceitou e comprometeu-se a receber Ramos para servir à mesa... Lá ia ele... De calça preta puxadissima para cima e camisa branca... Uma hora por semana...

A mãe colaborou na produção e na roupa...  Bem... A verdade... É que ele conversava mais do que fazia e até chegou a partir alguma louça... Mas isso até lhe fez bem...

Nessa hora... Em que Ramos trabalhava no café... Os funcionários do colégio enchiam o espaço... E Ramos sentia-se demasiado valorizado...

No início... A dona do café não estava muito a fim ... Mas cedeu... Provavelmente por Pedro... Contudo... Passado uns tempo e depois de ver o desempenho de Ramos... Dirigiu-se  ao docente e perguntou-lhe:

- Se me arranjasse uma aluna mais desenvolta...

Foi ouro sobre azul... Rosa passou a ir depois da hora de almoço para o café... Uma vez por semana... Aprender a lavar louça e a varrer... A verdade é que... De limpeza... Sabia ela bem... Não fosse ela a empregada lá de casa... Cozinhar... Limpar e cuidar dos sobrinhos... Enfim... Há muito que deixara de ser criança...

Afinal... E à vista deles... Não era tão anormal assim... Era um encanto Vê-la de bata...

Luís era bastante fechado e sempre reservado... Contudo justo... Pois.. Respeitava os mais fracos e protegia-os sempre que necessário... Conhecido por ter problemas cognitivos e comportamentais... Se bem que... Estes últimos... Nunca os chegou a revelar ao professor... Aliás... Sempre empenhado e motivado nas actividades... Levando consigo os outros...

Gostava de grafittis... Música da moda... Carros desportivos... Filmes de guerra.. E todas as coisas associadas... Talvez devido à idade... Ou quem sabe... À conjuntura do próprio ambiente em que vivia...

Pedro conseguiu metê-lo duas horas por semana... Numa tarde...  Numa casa de tatuagens... Enfim... Uma conversa que aconteceu com o dono num café local... Luís não deve ter aprendido muito... Todavia... Ganhou no contacto com outra pessoa... Diferente dos espaços que habitualmente conhecia... Escola e casa... Esta última... Demasiado degradada e ausente...

Lá... Tinha a liberdade de fazer desenhos da sua autoria... Conhecer utensílios e determinados cuidados associados àquele trabalho...

Aos poucos... Passou a ser mais desenvolto... Aberto e sociável... Contava episódios da sua formação e desenvolveu com o dono do espaço um relacionamento de amizade...

No fundo... Estes alunos... Precisavam invadir a sociedade que tanto os excluía... Educando mentalidades e modificando formas de pensar... Retrogradas e ultrapassadas... Provando ser hábeis e capazes... Úteis e sobretudo... Mostrando que também  têm direito à vida...

Roberto foi para um supermercado local fazer reposição de material... No início... Tudo correu bem... Mas passado algum tempo... Foi recambiado para o armazém... Pois a sua linguagem chocava os clientes... Falava muito alto e tinha a mania de se auto vitimar... No armazém... Estava mais escondido e podia falar à vontade com os seus colegas mais velhos... Para ele... Naquela manhã em que frequentava a área vocacional externa... Era como estar em casa...

Samuel também foi para o mesmo supermercado... Duas horas numa manhã... Auxiliava com os sacos... Ensacando-os e carregando-os... Fazendo pequenas arrumações... Contudo... Por ser muito organizado e originário de uma família com dificuldades económicas... Sabia os preços dos produtos de cor... Sobretudo os mais baratos... Afinal... Eram esses que tinha em casa... Sem maldade... Começou a aconselhar os clientes que frequentavam o supermercado... Dizendo:

- Olhe que este é mais barato!

Enfim... Pedro foi chamado à atenção e falou com o aluno... Explicando-lhe que o objectivo do dono era vender... Sobretudo o mais caro... Samuel ouviu o pedido... Mas... Teve algumas semanas sem aparecer no supermercado... Ficou amuado... E não entendia... Porque é que não podia ajudar as pessoas... Ele no fundo tinha uma consciência social... Sabia que havia muita falta de dinheiro e miséria...

Carlos foi para uma casa de rações... Que também vendia animais... Para além da limpeza e de alguma ajuda no atendimento... Enchia sacos e carregava-os até aos carros dos clientes... Limpava as gaiolas e alimentava os animais...

O aluno sentia-se demasiado orgulhoso com esta sua função... Não poupando ninguém de escutar a sua prestação durante aquela tarde semanal... A verdade é que a sua auto estima subiu...

Virgílio foi para uma oficina de automóveis... Leontina ajudou na realização do protocolo... Lá... Limpava peças e motores... Ouvia ensinamentos... Passava ferramentas e ia conhecendo os seus nomes... E utilidades...

O ambiente era propicio para os seus tiques faciais e para as suas dificuldades na fala... É que o dono também não falava muito bem... Todavia... Era bastante atencioso com Virgílio... Aceitava-o sem dificuldade e por vezes até lhe pagava um sumo e uma sandes...

Começou por ir uma manhã... Posteriormente... Já frequentava a oficina duas vezes por semana... Estava demasiado motivado e já começava a achar a escola pior que a oficina... Com o tempo... Ganhou um macaco azul com o nome da empresa nas costas... Ficava-lhe um pouco grande e largo...

A sua responsabilidade... Tolerância e atenção... Evoluíram a olhos vistos... Por vezes... Até fumava um cigarro... Pedro sabia mas ignorou... Afinal... Esta também era uma forma de inclusão... Ainda que... Menos boa...

Há uma imagem inesquecível... Que o professor ainda guarda... Quando o apanhou uma vez a fumar... Virgílio... Com o arranhar dos dentes... Num enrugar da face... Clara e ameninada... A piscar-lhe um dos olhos... Bem mais adulto e experiente...

Ronaldo e Claudia fizeram equipa num centro de lavagem automóvel... Ela trabalhava com vontade... Ainda que... Sem os dentes da frente... Escondendo-se por vezes da sua própria timidez... Já Ronaldo... Parecia um magnata à conversa com os clientes e restantes funcionários... Todos lhe achavam graça... Olho claro... Falador e muito bem-parecido...

De vez em quando... Era chamado à atenção e lá tinha que tirar as mãos dos bolsos e alinhar... A verdade... É que o convívio e a interacção com o exterior era positiva para os dois... Até chegaram a ganhar gorjetas... Que Claudia dividia pelos dois em partes desiguais... Pois Ronaldo... Tinha imensas dificuldades em realizar contagens e trocas monetárias...

Os restantes alunos do colégio e estes... Continuaram à mesma a frequentar áreas vocacionais de carácter interno... Quer fosse nas oficinas da escola... Na brigada da limpeza... Que por vezes arranjava espaço para outros alunos... Na cozinha e no refeitório... Na portaria e na limpeza do espaço...

Pedro ficou impressionado com o auxílio de algumas colegas... Como Júlia... Martinha e Luz... Dora e Irene... Carla... Preta e Bela... Até Telma... Que... Por trás da sua gaguez... Fazia a diferença... Com imenso empenho...

Gaguez... Ou... Perturbação da fluência do discurso... Carregada de bloqueios... Repetições e prolongamentos de sons...

Nas suas investigações... Pedro aprendeu que a gaguez pode ser acompanhada de movimentos faciais ou corporais... Como Bela e Virgílio... Por exemplo...

Para alguns autores... A gaguez parece estar relacionada a um processo de reforço do bloqueio... Isto é... Quando a palavra acaba de ser pronunciada a ansiedade diminui... Logo... A indecisão é premiada... Enfim... Talvez não passe de uma aprendizagem com reforço negativo...

De fora... Continuavam Elisa e Saudade... Sempre a criticar e a apontar defeitos... Como se nada valesse realmente a pena...

Por outro lado... Os restantes colegas já utilizavam alguns alunos... Até para realizar alguns recados... Dentro e fora da escola...

Começaram a perceber que estes alunos tinha potencialidades e podiam ser utilizados para tarefas de responsabilidade... Resumindo... Cada gesto era demasiado importante e significativo...

Antes e durante esta intervenção... Pedro foi desenhando um currículo para cada área vocacional... Fosse interna ou externa...

De uma forma espontânea... Os alunos beneficiavam de um conjunto de áreas e de competências que eram úteis para a escolha de uma formação adequada às suas motivações e capacidades... Para o professor... Era fundamental... Conhecer as capacidades dos alunos nas diferentes áreas... Experimentar novas formas de trabalho... Possibilitar a aprendizagem de novas competências...

Desta forma... O docente esperava... A longo prazo... Encontrar uma vocação que permitisse a integração futura dos alunos na sociedade... Assim como... Desenvolver a autonomia pessoal e social... A cognição... Elevar a auto estima... E as capacidades e habilidades motoras dos discentes...

O professor escolheu como áreas vocacionais internas... A reparação e manutenção... Onde aprenderiam a utilizar ferramentas básicas... Como o serrote... O martelo ou a chave de fendas... Conhecer o nome e a sua utilidade... Desenvolver algumas técnicas básicas... Como lixar... Colar...

A limpeza e reciclagem... Era uma área que permitia treinar a utilização dos utensílios de limpeza... Como vassouras... Panos do pó... Baldes e detergentes... Ou seja... Aprender competências básicas do dia a dia... Como limpar... A varrer ou lavar...

Com a jardinagem e hortofruticultura... Pedro ensinava a semear... Regar e plantar... A manipular enxadas... Regadores e baldes... Conhecer diferentes culturas e procedimentos...

A área vocacional de comércio... Ainda que... Não tivesse sido implementada no início do projecto... Suscitou dúvidas na totalidade dos seus colegas...

A verdade é que... Pedro acreditava... Que num futuro próximo... Seriam vendidos alguns produtos executados pelos alunos da escola... Como... Produtos da horta... De artesanato e jornais... Enfim... Isto permitiria... Por exemplo... Realizar trocas monetárias... E desenvolver a autonomia pessoal e social...

Na culinária... Os alunos envolvidos poderiam colaborar na confecção dos alimentos... Preparar e cortar... Lavar... Cozinhar... Conhecer as regras de higiene alimentar... No fundo... Prepará-los para a vida... Trabalhando uma actividade da vida diária essencial...

Nas oficinas... Iria realizar-se uma espécie de unidade de produção de artesanato... Com pintura... Cerâmica e carpintaria... Áreas importantes para o desenvolvimento dos discentes... Ao nível cognitivo... Motor e criativo... Através do desenvolvimento de algumas técnicas... Experimentando e utilizando materiais... De diversas formas e em vários contextos...

Como estratégias... Pedro tentaria visitar locais... Como oficinas e empresas... Ou até... Realizar  projectos individuais e de grupo... Trabalhos na escola e quem sabe... Fora dela... Estimular a criação própria... Experimentar diversos espaços... Formas de ensino e de aprendizagem...

Esta estruturação dos currículos... Seria uma base de trabalho para o futuro... Um registo prescritivo de situações... Objectivos... Critérios de êxito e condições de realização... Um documento pioneiro e inovador... Que sustentaria toda a intervenção no âmbito do processo de transição para a vida activa e adulta... A base do projecto educativo... Um desígnio do professor e da escola...

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXII

O fim do dia no terraço…

Nas tais águas furtadas… Pedro aquecia o coração solitário com um pouco de cor… Arejado pelo ambiente… Siderava-se na paisagem… Provinciana… Ainda assim… Citadina… No ruído do final do dia… Cansativo e disperso… O término das gentes que agora se recolhiam… Face ao sentido de esgotamento dos corpos…

Na companhia de um cigarro… Desfrutava com todo o prazer… Olhando o rio ao longe… A entrar à força no mar… Numa mistura de fluídos… De requinte e de salvação…

A guitarra também lá estava…

Aos poucos… Pedro intermediava por ambos… O cigarro e o instrumento… Numa ode ao desassossego… De quem tempera a alma acinzentada… Com um pouco de brilho….

Os acordes fluíam sem pressa… O fumo do tabaco explodia… Num desabafo do corpo… Refeito da sua necessidade… De lá para cá e… De cá para lá…

No meio de toda a inspiração… A génese criadora surpreendia… Com virtuosismo e um pouco de loucura...

Aberto aos recados de Elisa… Aprendiz dos risos dos alunos… Com o charme natural de Luz... Ou... O cheiro provocante de Leontina… No encontro da realidade de dois mundos... Completamente distintos... Onde um grupo de jovens parecia completamente desalinhado e à margem da sociedade...

Na ignorância das pessoas que na rua os olhavam… No diz que disse dos que... Eventualmente... Pensam ser diferentes... Ou abençoados por uma inteligência sobrenatural...

No alheamento de Miguel... No mundo limitadíssimo de Rafael... A luta diária de Salvador... Que teimava sempre em andar... Ou tentar... Ainda que não conseguisse...  Ou o grito de revolta de Ruben... Demasiado marcado pelo destrato social... O medo...  A ira e o abandono...

O zelo de Carrapito... Para com Filipe... A organização de Bebé… A mão amiga de Sarita... Ou o jeito de ser de Carlos... João e Mário... Na perda de contacto com a realidade exterior de Teófilo ou Zé... Quase... Ou simplesmente à parte...

O desleixe... A negligência... Familiar e escolar... Para com Patrícia... Rosa... Cláudia... Luís e Roberto... E mais... Muito mais...

Nas vocalizações de Cristina... Completamente fechada em si... Não por ela própria... Mas por todos... Ainda que... Se tentasse libertar... Criando alguém imaginário... Companhia... Amiga e doce... Sempre presente para si...

Pedro desenhava notas no braço da guitarra... Sentidas... Porém... Ao acaso...

Viu a cumplicidade de Dora e de Irene… Amigas… Colegas… Limitadas… Contudo… Aplicadas… Esforçadas em melhorar… Em aprender…. Para lá da cagança de Elisa…  Só comparável aos palavrões de Bela… Face ao rosto envergonhado de Preta… Que condenava tais actos…

Da gaguez de Telma… Ou a maldade de Saudade… Enfim… Na esperança de dona Filó… De Carla e de Martinha…

Na chegada atribulada… Na aceitação… Atenção e vigilância… De Luz… De curvas magas… Sempre bela… Ainda que prisioneira… Tal como os alunos… De uma sociedade… Que no fundo… A obrigava a ser assim… Casada e infeliz… Dançando sobre si mesma… Ao sabor da vida… Abrilhantada… Por vestidos coloridos… Cheiros provocantes de desejo… A braços com Leontina… Também soberba ao seu jeito… Doce… Mélico e sensual… Capaz de tomar um qualquer homem de assalto… Se fosse essa a sua vontade…

Pedro pára de tocar e atira com o cigarro… Do terraço para o mundo…

Em silêncio… Recorda-se do mutismo selectivo de Ana… Tudo o que vira… Passara e guardara para si própria… Numa prisão de um ser que consigo mesmo se revolta… Recusando-se a pronunciar… Um som que seja…

O professor procura uma folha solta e regista um tributo a todos eles… Vítimas de uma sociedade que os esqueceu… Depositando-os… Crianças… Jovens e adultos… Num hospício que cultiva a diferença… A segregação e a loucura…

Escreve a letra… Dedilha e canta…

 

A minha vida é um traço de calor... Que começa e termina onde acaba a dor...

À procura do sol... Uma vida por um dia...

À procura do sol... Era tudo o que eu pedia...

Que eu não levo a mal... Não ser igual...

Uma vida incompleta e distante... Um sorriso amargo e sujo como dantes...

À procura do sol... Uma vida por um dia...

À procura do sol... Era tudo o que eu pedia...

Que eu não levo a mal... Não ser igual...

Esta vida desgostosa e banal... Faz sentir-me um tanto ou quanto antisocial...

À procura do sol... Uma vida por um dia...

À procura do sol... Era tudo o que eu pedia...

Que eu não levo a mal... Não ser igual...

 

Acende outro cigarro... Relê a canção e interioriza-a...

Chama-lhe: “Uma vida por um dia”...

Siderado com o que escrevera... Pensa no que pode fazer com a canção... Na sua utilidade e aplicação... E divaga um pouco...

Imagina-se a cantá-la aos seus alunos... Ensiná-los... Ensaiá-los e pô-los a cantar para alguém... Numa festa... Num espectáculo... Quem sabe até numa cassete... Tanta coisa... Enfim...

O cigarro queima-lhe os dedos... Na verdade... Mal o fumara...

Crava-lhe os dedos para que desapareça... Esticando o braço... Mas hesita... E já não o atira do terraço para o mundo...

Em vez disso sorri... Apaga-o no chão e coloca-o no lixo… Afinal… Há que começar uma limpeza social… E esta… Deve começar com pequenos gestos…

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXXI

Nos períodos da escolaridade… Na parte da manhã… O professor passou a apostar na diferença… Realizando actividades de carácter divergente e inovador daquilo que… Supostamente seria um currículo normal… Isto porque… De facto… Não havia muita esperança de transformar academicamente… Aqueles alunos problemáticos em seres assim tão evoluídos… Pelo menos… De grau superior…

Uma delas foi… Seguramente… Privilegiar as saídas do colégio… Passear na rua… Conhecer novas pessoas… Invadir as artérias do quotidiano comum… Costumeiro e banal… Com um pouco de disparidade… Talvez… Rumo a uma inclusão… Consertada e quem sabe… Mais eficaz… Com o recurso ao choque violento… A fim de conseguir uma mudança radical de mentalidades… Abruptas e anacrónicas...

Numa manhã de sol… Pedro realizou a chamada… Contudo… Já antes… Samuel o havia informado de que ninguém faltava… Enquanto isso… Ramos preencheu o boletim meteorológico…. E Bebé preparava paulatinamente a sua mesa de trabalho…

Quando os alunos já estavam a postos… O professor comunicou:

- Hoje vamos fazer uma coisa diferente!... Vamos ver o rio!...

Imediatamente… Conseguiu visualizar-se o contentamento de alguns… Ainda assim… Sobressaía a ausência de outros… Como por exemplo… Cristina… Que repetindo as suas vocalizações estranhas… Parecia completamente alheada da novidade…

Rapidamente formou-se uma fila na porta… Dois a dois… Ordenados e afortunados…

Carrapito e Filipe… Ramos e Samuel… Cristina e Bebé… E lá foram a caminho do rio…

- Onde vão? – Perguntou Luz… Que se havia cruzado com estes…

- Vamos ver o rio! – Exclamou Ramos com a voz fanhosa… Aproveitando… Ainda assim… Para a beijar no rosto…

- Estás boa Cristina? – Questionou a adulta… Verificando que esta ficara para trás… Contemplando a cena do beijo…

- Vamos Cristina! Junta-te aos teus colegas! – Ordenou o professor…

Rapidamente… Cristina avançou a trote… Dizendo:

- Boa! Tou Boa!… Rum… Rum…

E lá foi… Repetindo… Desorganizadamente… Perguntas e respostas:

- Tás boa Cristina?... Estou!... Rum… Rum… Vais passear?... Vou!... Rum… Rum… Claro que vou!...

- Não quero ninguém de mão dada! – Avisou Pedro… - Quero que andem acompanhados! Ao lado uns dos outros!

Nesse instante… Passou Elisa… Mais uma vez atrasada… Lamentando-se do trânsito infernal… Ainda que… Ninguém lhe perguntasse… Mesmo assim… Houve tempo para que os olhasse com desdém… Ou curiosidade… Mas… Pedro ignorou-a por completo…

Pelo caminho… Atravessaram passadeiras… Caminharam em passeios… Cruzaram estradas e obedeceram a semáforos… Guiados somente… Pelo desejo de ver o rio…

Quando chegaram ao destino… Pedro abeirou-se da margem e descalçou-se... Incentivando os alunos a fazer o mesmo...

Apenas Ramos o fez… De imediato e sem qualquer problema… Depois seguiu-se Bebé… Ainda que com maior dificuldade…

Para os convencer… O professor avançou para a água…

- Arregacem as calças! – Disse… - Vamos só molhar os pés!

Claro que… Pedro teve de auxiliar alguns dos alunos… Quer a descalçar… Quer a arregaçar as calças…. Como Cristina ou Carrapito…

- Temos de mudar isto! – Informou… Olhando-a com cara séria… - Tens de aprender a fazer isto sozinha!

Olhando-o nos olhos… Cristina respondeu… Quase em jeito de questão:

- Temos?... Rum… Rum… Ouviste Cristina?... Tens de fazer isto! Sozinha!

Já Carrapito… Virou o rosto para o lado… Evitando encarar de frente o professor...

A estranheza de caminharem descalços… No pequeno areal sujo… Misturado com escassos paralelepípedos… Experimentava neles sensações distintas… Enfim… A magia das impressões… Repleta na magia do rio… Imensamente vivo…

Receosamente… Caminharam atrás do professor… Com cuidado… De um lado para o outro…

Bebé segurava as calças do fato de treino com sentido e deslocava-se com bastante cuidado… Apalpando com os pés o novo piso…

Cristina permanecia imóvel… Só e abandonada… Paralisada e com receio em avançar… Aguardando instruções… Ou somente por um contacto… Pedro auxiliou-a... Tocando-a...

Já Carrapito… Avançava… Com a mão esquerda enfiada na boca e a outra puxando Filipe… Dizendo repetidamente:

- Vamos! Despacha-te! Atrás do professor!...

Filipe lá ia… Parecendo desfrutar daquele tacto e reparo… De um jeito redobrado quase constante da parte deste seu colega e amigo…

Samuel levantava as pernas com cautela e brandura… Enquanto que Ramos… Experimentava também as mãos…

O professor convidou-os a cheirar a água… Colocá-la nos lábios e mexer nela com as mãos... Tocar no fundo… Trazer areia para cima… Apanhar pedras… Ou simplesmente atirar água ao ar… Nessa altura… Lembrou-se de dizer:

- Não se molhem!...

Enfim… Já foi tarde demais… Mas... Mesmo assim sorriu e pediu-lhes que observassem as gaivotas e visualizassem peixes…

- Eu vi um! – Gritou efusivamente Carrapito… Agitando Filipe… - Viste Filipe? Viste?

Mas este… Rodando a cabeça… Parecia mais entretido com os barcos que por ali passavam… Traineiras ou simplesmente embarcações de recreio…

Pedro pediu-lhes que contassem os barcos… Ou melhor… Que tentassem… Contabilizar as poucas embarcações de pescadores que ainda restavam de uma arte... Ou indústria… Completamente assassinada… Quem sabe... Se pela Europa globalizada... Ou melhor... Monopolizada...

Ficaram por lá algum tempo… E de uma forma geral… Divertiram-se…

No regresso à escola… Os sorrisos eram evidentes e as expressões pareciam revolucionadas de uma nova vivacidade… Pelo caminho… Jornadearam molhados… Calças arregaçadas… E contentes… Sobretudo satisfeitos… Aos olhares de todos os transeuntes que passavam… Que paravam e olhavam a diferença... Ainda com algum pudor… Ou complexo…

Nesse dia… Tomaram banho nos balneários da escola… Pedro pediu ajuda a Júlia… Que de imediato se prontificou a auxilia-lo com as duas alunas…

Arranjaram-se toalhas… Champôs e gel de banho…

No final… A psicóloga assegurou que o banho das duas raparigas tinha corrido bem… Já o masculino… Foi uma animação… Os alunos despiram-se de preconceitos e lavaram-se… O professor orientou-os para que se lavassem bem… Isto… Ao constatar que estes nem sequer o sabiam fazer com correcção ou preceito…

A partir desse dia… O banho passou a ser uma rotina… Pelo menos para aqueles que apresentavam problemas de higiene… E infelizmente… Eram a maioria…

Criaram-se mapas e tabelas… Luz ajudou… Júlia a até Bela… Pedro supervisionava quase todos… Convidando-os e convencendo-os para os benefícios do banho… Junto do sexo oposto… Dos colegas… Funcionários e sociedade… Como melhoria efectiva da autonomia pessoal e até da auto estima…

Pedro até fez um desenho… Devidamente plastificado… Que se colocou nos dois balneários…. Com todos os passos e procedimentos… Desde a lavagem… Da cabeça aos pés… Gel de banho… Secagem… Enfim… Para melhor os auxiliar nessa tarefa...

Com o tempo… Estendeu-se a actividade às duas salas de estimulação global… Foi difícil… Mas Pedro conseguiu-o… Afinal… Estava determinado em mudar… Ou pelo menos… Contribuir para a mudança…

O professor ainda voltou ao rio… Levou outros grupos de alunos e até chegaram a levar materiais desportivos… Fizeram brincadeiras e jogos… Contudo… A experiência deste dia foi única… Talvez por ter sido a primeira… Afinal… Os rios comportam uma elevada carga… Capaz de modificar pessoas… Ou talvez… Disfarça-las… Desde as emoções aos comportamentos…

Enfim… A magia de modificar rostos… Empobrecidos e penalizados… Integrantes sem incorporação… Fruto de uma sociedade obsoleta… Ultrapassada... Mas presente e realmente segregadora… A necessitar de uma urgente transformação… De uma inadiável lavagem… Quem sabe… Com a genuinidade… Pureza e elegância da água de um rio…

António Pedro Santos

(Continua)... 

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XXX

As sessões de psicomotricidade com Ruben eram dificílimas… Para além da sua problemática… Síndrome de lowe… O aluno estranhava qualquer tipo de ruído... Assim como... Qualquer contacto ou até palavra… Que a ele se dirigisse...

Da investigação que habitualmente fazia… Pedro constatou tratar-se de uma doença genética rara que causa deficiências físicas e mentais… Assim como problemas de saúde...

Também conhecido como síndrome óculo-cérebro-renal… Foi descoberta em 1951 pela equipa do doutor Charles Lowe... Segundo alguns estudos... Parece ser causada pelo mau funcionamento de um gene do qual resulta o défice de uma enzima… Enfim… Parece que esta enzima desempenha um papel importante no funcionamento metabólico de uma parte da célula… Com esta insuficiência… Desencadeiam-se problemas do foro ocular... E também... Do foro cerebral e até ao nível do fígado…

Esta problemática… Apresenta várias limitações e insuficiências... Como cataratas congénitas bilaterais… Que podem ser diagnosticadas à nascença ou pouco depois... Glaucoma… Em cerca de cinquenta por cento dos casos… Fraco tónus muscular e atraso no desenvolvimento motor e mental… Problemas comportamentais... Crises de epilepsia… Raquitismo… Fragilidade óssea… Entre outras coisas mais…

Durante as aulas individuais… De apenas meia hora cada… Pedro transportava-o até ao primeiro andar… Onde se situava o ginásio… No trajecto… Ruben gritava e auto agredia-se…

Os seus gemidos e gritos... Eram assustadores... Um misto de voz sofrida e engrossada pelo tempo... Num corpo acriançado e demasiado castigado pela vida que levava... Como um adulto isento de palavras... Escondido e aprisionado num corpo ainda muito primaveril...

Pedro sentia-se impotente face à situação… Todavia… Utilizou colchões para delimitar uma zona… Colocou algumas bolas e objectos… As pistas tácteis… Auditivas… Proprioceptivas… Enfim… Corpos estranhos… De características sonoras… Diferentes tipos… Com água… Quentes e frios… De diferentes cheiros e odores... Entre outros…

Foi com a água que Pedro pareceu entender algo… Isto é… A única altura em que o aluno se parecia acalmar… Era quando bebia exacerbadamente água pela garrafa…

Nessa altura… Tocava no professor… Nitidamente pedindo… Por meio do tacto e gestos… Para que este abrisse a garrafa… E lha levasse à boca…

Só nesse instante acalmava… Contudo… Se a tarefa não tivesse o resultado desejado… O aluno irritava-se… Explodindo novamente toda a sua exaltação…

Lentamente… E com o passar do tempo… O novo professor… Foi doseando a água a dar ao aluno… Aos poucos… Mão na mão… Realizou o movimento de agarrar na garrafa… Abri-la e levá-la à boca… Fechá-la e pousá-la por fim…

Uma habilidade básica para qualquer ser humano… Que Pedro foi repetindo em todas as sessões… Até na sala de estimulação global número um… Com o auxílio de Telma… Que com o seu empenho… Passou a contribuir para o desenvolvimento… Através do treino… Desta actividade básica da vida diária…

Para além disto… O docente diversificou os locais… Para que o aluno se habituasse à estranheza e diversidade das situações… Ora no ginásio… Na sala do professor… Na do aluno e até no pátio… Variou as situações… Com música… Ou com a presença de mais pessoas… Telma… Luz… Ou até outros alunos… Que sempre o ajudaram e acarinharam…

Aos poucos… Ruben criou uma certa empatia por Pedro… E por Telma…

Certo dia… Antes da sua sesta… Estava insuportável… Nem Telma… Nem Rosa ou mesmo Luz… Ninguém o conseguia adormecer… Chamaram Pedro… Que ao entrar lhe disse:

- Que se passa amigo?...

Ruben pareceu acalmar-se ao escutar a sua voz… Pedro aproximou-se agachando-se junto deste nos colchões… Imediatamente… Ruben abraçou-o… Acamando-se para dormir… De dedo na boca...

Pedro emocionou-se… Sentindo-se quase pai… Na porta… Colegas e alguns alunos… Olharam-no com admiração...

O professor fechou os olhos e Ruben adormeceu... Consolado... Perfeitamente encostado... Deixando Pedro completamente babado... No sentido literal do termo...

António Pedro Santos

(Continua)...