Alegria... Prazer... Felicidade
O trabalho relativo à coordenação parecia ter terminado... Assim sendo... Fumava um cigarro à sombra nos degraus do prédio... O calor apertava e consumia... Afinal... O mês de Julho parecia vir com a força e a intensidade próprios... Aos poucos pensava na vida... Fazendo uma retrospectiva e procurando desculpas para a falta de tempo de não colocar em prática os meus verdadeiros intentos... Não fosse a vida hoje...
O telemóvel tocou... Era um número que desconhecia... Do outro lado uma voz feminina identificava-se como uma directora de turma do oitavo ano... Parecia querer falar-me de uma aluna... Um caso verdadeiramente dramático! (Dizia)...
Referia-se ao caso de uma aluna que tinha tido um problema de saúde muito grave no inicio do ano lectivo... Mais tarde percebi que tinha tido uma paragem cardiorespiratória causada por uma cardiopatia congénita que lhe havia deixado lesões neurológicas de muita gravidade... Enfim... Tetraparesia espástica e disfagia neurogénica...
Como coordenador do departamento de educação especial do agrupamento de escolas... Perguntava-me... Enquanto a escutava com atenção... O porquê de só agora saber?... Afinal... E por vezes... Era incomodado com situações tão fúteis e maioritariamente pelas mesmas pessoas...
Segundo a professora... Depois do problema... A aluna havia sido internada no sentido de trabalhar a sua recuperação... Contudo... Parece que... Segundo esta... Havia pouco a fazer... Moral da história... A directora de turma recebeu um contacto telefónico... De alguém ligado à saúde... No sentido de alertar para a alta da aluna... E saber... De que forma é que a escola poderia ajudar a mesma... A professora estava atónita com a situação e completamente à toa... Sem saber o que fazer... Resolveu recorrer a mim...
Pedi que me enviasse um e-mail com todos os elementos da aluna... Assim como o contacto do encarregado de educação... Assim o fez... Avisando-me que a encarregada de educação era a mãe... Todavia... Talvez fosse melhor falar com o pai... Segundo ela: Aquela mãe estava devastada!...
Terminámos a chamada telefónica... Com a minha garantia de que iria efectuar um conjunto de diligências no sentido de encontrar a melhor forma de ajudar aquela aluna... Agora em casa... Depois da alta clínica... E consequentemente... Aquela família...
Liguei de imediato ao meu director... Contei-lhe o caso e delineei uma estratégia... Mobilizar uma professora... Uma psicóloga... Um terapeuta da fala e uma fisioterapeuta... Para realizar apoio domiciliário... A ideia era colaborar na recuperação da aluna... No que se refere à parte académica... E para já... Estaria em suspenso...
Curiosamente... Tínhamos tido uma pequena divergência... Eu e o director... Cheguei a ponderar colocar o meu lugar à disposição... Ainda assim... Acabou por dizer-me qualquer coisa do tipo: Como podes deixar a coordenação?... Se tens estas coisas em que podes fazer a diferença?... Enfim... Mais uma laracha típica dele... Extremamente politizada... Afinal... Acabou por sair primeiro que eu... Ao fim de três ou quatro meses deu de frosques para outro cargo nos serviços centrais... Mesmo assim confidenciou-me: Saí por amor!... Enfim... Passemos à frente...
De seguida... Liguei para a coordenadora regional... Explicando-lhe o caso e as minhas intenções... Informando-a também do aval do meu director... Para variar... Pouco tinha para me dizer... Falando-me como habitualmente.... Em análise e reflexão... Em tomadas de decisão consertadas e legais... Enfim... Mesmo assim e de certa forma... Reconheci nas suas palavras algum encorajamento para avançar... E até... Alguma consideração pela minha atitude... Pelo menos tive essa percepção... Recordo-me de a mesma ter dito qualquer coisa tipo: Coitada da mãe... Deve estar devastada!...
De seguida... Entrei em contacto com parte da minha equipa... Isto é... Aqueles que entendia envolver no projecto de intervenção... Expliquei-lhes a situação e não fiz perguntas ou sugestões... Informei-os apenas que já tinha realizado contactos e que iríamos intervir no início do próximo ano lectivo... A decisão estava tomada...
Entretanto... No meu telefone... Havia recebido uma mensagem da directora de turma com o contacto da mãe da aluna... Liguei...
Do outro lado... Uma voz feminina sem rosto... Uma lástima de desolação e de entropia... Desordem... Imprevisibilidade e indeterminação... A devastação em toda a sua dureza... A dor... Majestosa e cravada na carne... De quem ainda não se conseguiu erguer... De quem talvez jamais se erga...
Depois de me identificar... Aquela mãe... Completamente devastada... Pediu-me imensas desculpas... Mas... Disse que não estava em condições de falar... Passou-me ao marido...
Outra voz estropiada... Desta vez masculina e sem rosto... Dorida e massacrada... Ainda assim... Aparentemente mais disponível para me ouvir...
Expliquei-lhe a minha ideia e fiz algumas perguntas... No sentido de averiguar que outros apoios poderiam existir... Nada!... Apenas uma sessão de fisioterapia paga particularmente e talvez terapia da fala... Possivelmente oferecida pela saúde... Confesso que não me recordo...
Marcámos um encontro... O propósito era ver a miúda... Perceber como estava de facto... A explicação do caminho foi tal e qual o percurso que fiz... A minúcia da mesma surpreendeu-me... No meio de tanto caos... Faça a rotunda... Corte à direita e siga sempre à direita... Depois de passar o clube... A minha carrinha azul está na frente da casa... Chegou a dizer-me a matricula da viatura...
Ao chegar... Àquele lar igual a tantos outros... Onde agora imperava o silêncio... Uma invasão de sentimentos negativistas e impotentes... A minha cabeça debilitada e inoperante... Contemplava o amor de uma mãe... Que devastada... Segurava a filha no colo... Desmemoriada da beleza que ostentava... Num descuido aparente de quem vive a vida de uma forma intermitente...
Falei quase sempre com o pai... A mãe não disse quase nenhuma palavra... Articulando as mesmas com pouca orientação e certeza... Resignada... Acordada e só... Completamente devastada... Enfim... Fiz-me forte e projectei um conjunto de procedimentos a realizar para o início do ano lectivo... Escutavam-me ambos...
A pequena jovem... Reduzida à sua condição... Respirava com dificuldade... Gemendo de agonia e da sua própria conjuntura... Esquecida e abandonada socialmente... Estava dependente de mim e da minha vontade... Não a podia deixar ficar mal... Não os iria abandonar!... (Garanti aos pais)...
Ao sair... Fiz um carinho à miúda... Abalada de instabilidade e de inconsistência... Toquei no ombro da mãe... Quem sabe se para dar força a um corpo quase morto... Com pouca sensibilidade e acção... Apertei a mão gelada e sem força do pai... Confesso que senti aquela dor como se fosse minha... Ainda que não... Pelo menos tive essa impressão...
Contem com a escola! Vamos ajudar no que pudermos! (Disse... Com convicção)...
Meti-me no carro e segui... O meu coração disparou e uma inconstância apoderou-se de mim... Parei o carro e vomitei toda a minha angustia... Deitando para fora o que tinha e o que não tinha...
Ainda em Setembro... Na primeira reunião de equipa multidisciplinar de apoio à educação inclusiva... A aluna passou a usufruir de medidas adicionais ao abrigo do DL54/2018... A aluna iria beneficiar das terapias propostas em contexto domiciliário... Assim como do apoio de uma professora de educação especial... A directora de turma dispôs-se a colaborar... Curiosamente o conselho de turma parecia ser mais reticente... Como poderiam dar nota positiva a uma aluna que não ia á escola?... Ou melhor... Que nada fazia?... Enfim.. Aí puxei pelos meus galões... Não interessa para já a parte académica da aluna!... Vamos centrar-nos na sua recuperação!... Assegurando que tinha a aprovação do director (ainda em funções)... Bem como da coordenadora regional... Talvez me tenha excedido um pouco... Isto porque... Não segui os seus conselhos... Ou seja... Não analisámos nem reflectimos... Pelo contrário... Analisei... Reflecti e implementei sozinho... Somente para não perder tempo com insignificâncias e passar à intervenção...
Embora tenha monitorizado sempre o caso... Nunca mais entrei naquela casa... Ainda assim falei ao telefone várias vezes com a mãe e algumas com o pai... Para além disto... Tive sempre o feedback da equipa que designei para a intervenção... Gente profissional e sensível... Uma equipa de excelência que durante um ano auxiliou aquela família... Os progressos da aluna foram alguns... Ainda que poucos... Apesar disso... A fisioterapia e a terapia da fala foram áreas importantes... Por outro lado... A psicóloga e a professora de educação especial... Tornaram-se aliadas daquela família... Sobretudo da mãe... Mais esperançada e forte...
Ao longo dos cinco dias da semana... A aluna tinha fisioterapia e terapia da fala duas vezes por semana... Psicologia e educação especial uma vez por semana... Para além de uma ou duas terapias de que beneficiava particularmente ou pela saúde... Não me recordo... Aqueles elementos tornaram-se parte integrante da família... Prendendo-a à vida e à normalidade das coisas... Auxiliando-a na articulação com o centro de saúde... Segurança social e até na candidatura a determinados subsídios...
Durante um ano... Aquela aluna e a sua família tiveram um pouco de conforto... Um pouco de ternura e de cor... A aluna realizou progressos notórios no que se refere à sua qualidade de vida e desenvolvimento global... Mesmo que estivesse aquém do ideal ou desejável...
Atempadamente e baseando-me na minha experiência de mais de vinte anos nesta área... Encetei contactos com a escola secundária... No sentido de preparar o caminho para o próximo ano lectivo... Sobretudo alertando para a necessidade de que se pedissem mais técnicos e mais professores de educação especial para garantir o apoio à aluna... Afinal a aluna estava no nono ano e iria mudar de estabelecimento de ensino... Ainda que em casa... Cedi inclusivamente uma fundamentação para pedido de técnicos... No sentido de ajudar... Todavia... Nada aconteceu... O meu homólogo desculpou-se com a direcção... A direcção com ele e com a câmara municipal... Órgãos centrais e regionais... Enfim... A aluna ficou desamparada... E ao que sei... A mãe ficou devastada...
Mesmo assim.. Não me resignei... E no final... Já sem ter a aluna matriculada no meu estabelecimento de ensino... Contactei os serviços regionais de educação... A câmara municipal e a segurança social... O centro de saúde... A equipa de desenvolvimento pediátrico do hospital distrital e até... Pasmem-se... O centro de formação de professores... Em suma... As propostas foram irrisórias e infecundas... Quase nenhumas... Ainda assim falei-lhes da importância de ajudar esta família devastada... Enfim... Todos me souberam dar sugestões... Todos me convidaram à análise e à reflexão... Mas soluções... Nada!...
O que é facto... É que o tempo foi passando e a aluna já não era nossa... Os apoios eram escassos... Ou melhor inexistentes...
Segundo a mãe... E após algumas conversas telefónicas com os professores e técnicos envolvidos... A família teve muito pouco contacto com os elementos da escola secundária... Alegando que tinham poucos técnicos especializados... Segundo a encarregada de educação... Telefonaram-lhe um dia para lhe ir levar um computador... Ou talvez assinar um papel qualquer... Sorri estupidamente... Quando a mãe... Que continuava devastada... Me contou...
Mesmo com tanta carência de profissionais... Penso que poderiam pelo menos mobilizar uma das psicólogas... Ou quem sabe... Algum professor que se dispusesse a colaborar... Mas enfim...
Contou-me ainda que da segurança social... Recebiam cerca de duzentos euros por mês... Para além disto... Havia a possibilidade de beneficiar de fisioterapia numa instituição tutelada... Contudo... A mãe não queria tirá-la de casa para beneficiar de trinta minutos de sessão... Alegando a saúde débil da filha... Talvez não fosse benéfico (Também pensei)... Bem.. Ainda falei com alguém da instituição... No sentido de promover a terapia no domicilio da aluna... Mas... Acabei por ser acusado de me meter em algo que não me dizia respeito... Afinal... Qual é o seu papel aqui? (Disseram)... O que é facto... É que... A miúda apenas beneficiava de fisioterapia duas vezes por semana... Suportada pela família...
Depois de todas as negas... Da escola e das instituições do estado... Fui contactado por um elemento do centro de formação de professores... No sentido de participar numa espécie de partilha formativa... Nesse encontro... E estupefacto com a conversa vangloriosa de alguns colegas... Acabei por me encher e por manifestar a minha indignação face a esta situação... Assim como outras... A verdade é que a colega do centro dispôs-se a ajudar... Enfim... Seria mais uma a lutar por esta aluna... A pedinchar por um pouco de dignidade... Um simples direito... Que estava a ser negado a esta família... Completamente devastada...
Na altura... Solicitou que definisse as necessidades mais básicas e urgentes... Assim o fiz:
O que considero que a aluna precisa: Essencialmente, e devido à problemática da aluna, seria pertinente que a aluna e a família beneficiassem de ajuda da câmara municipal ou outras instituições/organismos - Tudo seria válido... Necessário e pouco...
De que forma: Apoio logístico (ao nível de contactos que possam eventualmente ser realizados com entidades diversas, como a segurança social, centro de saúde, entre outros...); fisioterapia (sessões ao domicílio); terapia da fala (sessões ao domicílio); psicologia (sessões ao domicílio); terapia ocupacional (sessões ao domicílio); entre outros... - Reparem... Deixei em aberto...
Acrescentei: Na minha opinião... E não me querendo meter no trabalho de ninguém... Considero que esta família deve ser ajudada... Porque para além de serem munícipes têm a braços uma situação de uma aluna com imensas necessidade e limitações... Contudo com capacidades que podem e devem ser optimizadas...
Depois variei: A escola desempenha um papel de extrema importância no desenvolvimento dos alunos... Como elementos interventivos e participativos na sociedade... Por outro lado... A sociedade... Através das suas diferentes entidades... Pode e deve intervir no sentido de permitir que todos tenham iguais oportunidades (ou similares)... Bem sei que é difícil... Diria até... Que provavelmente será utópico... Todavia... Está na nossa mão lutarmos por uma sociedade mais justa e inclusiva... E... Na verdade... Esta família não pede muito... Apenas um pouco de apoio... Que fará certamente a diferença...
A colega do centro foi incansável nos contactos... Na minha perspectiva previdente... Parecia estar algo a acontecer... Foi a última vez que falei com a mãe... Que mesmo devastada me confidenciou... Vocês foram os únicos que se importaram connosco! (Acrescentou)... Ainda assim... E levado pelo coração dei-lhe esperança... Enfim... Fui contactado pela câmara e pela nova escola da aluna... Pelo hospital... Pedindo-me soluções... E eu acabava por dar... Afinal... Não passavam de sugestões... Hipotéticas e incertas...
Faltava um mês para se completarem dois anos do contacto que tivera da directora de turma... Que entretanto... Já havia mudado de escola... Como tantos professores ao longo dos anos... Tive outro contacto telefónico... Melhor... Uma mensagem com uma foto... Nela um cartaz de uma agencia funerária... Nela... O rosto primaveril da miúda... Até há pouco acamada... Olhar penetrante... Cabelos carregados de caracóis... Sorriso inseguro de alegria... Esperança roubada de quem apenas queria ser... De quem apenas queria viver... De quem tudo tinha... Tanto ambicionava e desejava..
O cortar radical de premissas que já haviam de estar enraizadas... Há pelo menos quase cinquenta anos... Naquele olhar do anúncio... O reflexo de quem somos... Do que queremos e temos... Do direito e do dever... Do que é certo ou errado... Do que fica e do que vai... Seja por palavras... Ou histórias ao vento... No consumir dos corpos.... Que lentamente se esvaem e consomem... Dissipados... Estropiados e cansados... De impotência e de dor... No seu olhar... Do tal cartaz... O reflexo de quem somos... Ou no que nos tornamos... Na dor calada de um pai... Num lar igual a tantos outros... Destruído... Ainda que existente... No seu olhar... O da sua mãe... Completamente devastada...
Na semana anterior ao sucedido... Havia sido contactado por uma enfermeira do centro de saúde... Questionando-me acerca da possibilidade da escola... Que já não era a da aluna... Colaborar no processo?... Enfim... Falhámos todos! (Disse)... Semanas antes... Contactou-me a colega do centro de formação... Questionando-me: Tiveste algum contacto relativamente ás diligências que fizemos?... Enfim... A nossa impotência estava estampada... Na falta de voz que dispúnhamos... Sem palavras... Sem vontade ou acção...
Subitamente... Um rol de telefonemas... Palavras e conversas surgiram no ar... De repente... Professores... Técnicos... Funcionários da câmara municipal... Da saúde e outros... Cidadãos comuns e normais... Pareciam associar-se à dor daquela família... De certa fora... Todos pareciam incomodar-se com a situação... Aliás... Melhor... Muitos deles pareciam ter feito algo para ajudar... Tem graça... Em dois anos... Vi sempre os mesmos... Porém... A maioria... Conheço-os agora... Que falta de sentido de oportunidade... Que falta de actividade... Opinião e de acção... Que falta de vocação e de empenho... Civilidade e cidadania... Tolerância... Auxilio e solidariedade... Onde está a capacidade de juntar e agregar?... A integração e a inclusão?... Os direitos iguais e a dignidade?... Com tanta reunião... Com tanta articulação... Monitorização... Decretos e legislações... Tanta equidade... Análise e avaliação... Tantas formações... Métodos e inovações... Quando afinal... O que é real... Está perto e ao nosso alcance... Não merece apoio ou atenção...
Vivemos uma vida em que nos ignoramos... Em que tudo fazemos contra os outros... Ou nada fazemos por ninguém... Sequer por nós... E há tanto a fazer!...
Tenho os olhos molhados... O cigarro fumou-se sozinho... Nos degraus do prédio respiro de alivio... Não recebi nenhum telefonema de nenhuma directora de turma... As escolas funcionam e articulam umas com as outras... As restantes instituições e organismos funcionam em plena harmonia... Os profissionais de todas as áreas são extremosos e atentos... Há excelência em todas as áreas profissionais... As pessoas são preocupadas... Amigas e tolerantes... Há educação e saúde de qualidade.... A inclusão é uma realidade... O pai não tem a mão gelada e sem força... A sua filha não respira com dificuldade... Não geme de dor nem sequer da própria conjuntura... Não treme de instabilidade nem de inconstância... Ninguém morreu!... Não há nenhuma mãe alheada nem com o corpo quase morto... Felizmente... Não há nenhuma mãe devastada... E eu não cheguei sequer a parar o carro nem vomitei de nojo...
António Pedro Santos