As áreas vocacionais no currículo do aluno como caminho de transição e de inclusão social
A motivação para escrever este artigo prendeu-se com um telefonema que tive de um antigo aluno, hoje com 32 anos de idade e pai de uma menina de 9 meses. Percebi que não era dos mais velhos alunos que tive, porém, já passou muito tempo e mesmo sem instrumentos precisos de avaliação este é um resultado de um longo trabalho de intervenção e de pesquisa.
Este artigo, procurará resumir um trabalho de investigação de cerca de vinte e três anos em que, ao longo de três momentos completamente distintos (ainda que, com pontos em comum) estruturei uma intervenção assente na formação pessoal e transição para a vida activa/adulta.
Numa perspectiva de equidade global, as politicas e as práticas devem garantir o respeito pela diferença e pela diversidade, planificando e utilizando diferentes tipos de abordagens que permitam responder às necessidades e potencialidades de todos os alunos. Assim sendo, é fundamental que a escola inclusiva salvaguarde a individualidade de cada um no sentido de promover o sucesso educativo e possibilitar a igualdade de oportunidades.
Quando entrei na educação especial em 2001, vigorava o DL 319/91, de 23 de Agosto. Posteriormente, acompanhei a saída do DL 3/2008, de 7 de Janeiro e ultimamente a do DL 54/2018, de 6 de Julho (ainda hoje em vigor). Convém dizer que ao longo desse tempo, passei pelo chamado ensino segregado, ou ensino particular e cooperativo e pelo ensino regular. Passei ainda pelas categorias de professor contratado, QZP e QA.
No seguimento do que sempre preconizei, continuo a perspectivar uma intervenção pedagógica balizada pelas ideias e ideais da educação inclusiva, isto é, da possibilidade de haver uma escola para todos, independentemente da raça, cultura, contexto social ou capacidades de aprendizagem. Deste modo, esta metodologia de intervenção resume-se a uma dinâmica de trabalho que não visa única e exclusivamente o aluno enquanto individuo, mas também ao nível da sua participação social - no fundo, como elemento integrante de uma família, de uma escola e de uma comunidade.
Tendo em conta o contexto das diferentes instituições onde leccionei, o enquadramento legal e os documentos estruturantes/orientadores (que se foram alterando), senti sempre necessidade de reestruturar a intervenção, tornando-a mais inclusiva (para que os alunos tivessem maior envolvimento na comunidade local) e igualmente prática (motivadora e facilitadora).
As escolas e a sociedade são compostas de diferença, tal como no contexto da educação especial, onde cada ser é verdadeiramente singular - pela variedade de dificuldades, necessidades, limitações, síndromes e problemáticas existentes. É ainda importante salientar, que ao longo dos tempos, as mentalidades modificaram-se, provavelmente devido aos novos enquadramentos legais, evolução social ou até pelo aumento da oferta formativa, a par de outras coisas. Resumidamente, é indispensável que o ensino se torne mais inclusivo e democrático, todavia, é essencial que se criem, para além dos apoios existentes, respostas que permitam uma transição para a vida activa/adulta mais eficaz.
Basta ver que, passámos de um contexto de ensino segregado, em que os alunos estavam retirados das escolas do ensino regular (eram estigmatizados - a fim de beneficiar de uma intervenção mais dirigida, ao nível da educação especial e de intervenção terapêutica), para um paradigma, em que a escolaridade obrigatória aumentou, os estabelecimentos de ensino segregado terminaram na sua maioria (ainda que existam com outras valências), saíram mais dois DL, criaram-se três grupos de recrutamento para a Educação Especial (910, 920 e 930), entre outros... Ou seja, finalmente, hoje estes alunos estão nas escolas até aos 18 anos de idade (pelo menos).
Se pensarmos nos três DL, encontramos conceitos comuns, e inclusive alguns avanços/retrocessos que considero terem sido obra da evolução natural das coisas. Por exemplo, o número 2 do artigo 2º do DL 319/91, que definia o “regime educativo especial”, condensava na alínea i) o chamado Ensino Especial. Mais à frente, o artigo 11º resumia o mesmo a dois caminhos únicos (currículos): próprios (tinham como padrão os currículos do regime educativo comum) e alternativos (substituíam os currículos comuns por conteúdos específicos). O artigo 20º, referente à “certificação” acrescentava que: “Para efeitos de formação profissional e emprego o aluno cujo programa educativo se traduza num currículo alternativo obtém, no termo da sua escolaridade, um certificado que especifique as competências alcançadas”. Portanto, já havia uma preocupação em autenticar, de certa forma, o trabalho realizado.
O DL 3/2008, trouxe algumas mudanças. Passou a chamar “medidas” às “alíneas”, mudou ou termo “adaptações” para “adequações”, renomeou documentos e introduziu, entre outras coisas, o Plano Individual de Transição (PIT) - destinado a alunos necessidades educativas especiais de carácter permanente impedidos de adquirir as aprendizagens/competências definidas no currículo (iniciado três anos antes da idade limite de escolaridade obrigatória). Para além disto, no número 2 do artigo 16º - “adequação do processo de ensino e de aprendizagem”, introduzia como medida educativa o currículo específico individual - que substituía as competências definidas para cada nível de educação e ensino. Este passou a obrigar à realização de “(...) alterações significativas no currículo comum (...)”, privilegiando “(...) o desenvolvimento de actividades de cariz funcional centradas nos contextos de vida (...)”.
O número 3 do artigo 14º referente ao “PIT” acrescentava ainda que: “No sentido de preparar a transição do jovem para a vida pós-escolar, o PIT deve promover a capacitação e a aquisição de competências sociais necessárias à inserção familiar e comunitária”. Relativamente à certificação, este DL mencionava no artigo 15º que: “Os instrumentos de certificação da escolaridade devem adequar-se às necessidades especiais dos alunos que seguem o seu percurso escolar com programa educativo individual”. Isto é, identificando no mesmo documento, as respectivas adequações e aprendizagens.
Por fim, o DL 54/2018, introduz, para além de outras coisas, três níveis de medidas, os termos acomodações curriculares e adaptações curriculares não significativas e significativas. No número 4 do Artigo 10º, referente às “medidas adicionais” enquadra o PIT como a medida c) - obrigatório para todos os alunos com programa educativo individual (PEI) e implementado três anos antes da idade limite da escolaridade obrigatória. O artigo 25º acrescenta que este se destina a: “(...) promover a transição para a vida pós-escolar e, sempre que possível, para o exercício de uma actividade profissional”.
Relativamente à certificação acrescenta que relativamente aos alunos que beneficiaram de adaptações curriculares significativas, no certificado deve: “(...) constar o ciclo ou nível de ensino concluído (...) bem como as áreas e as experiências desenvolvidas ao longo da implementação do plano individual de transição”. Em suma, ao longo dos tempos e com as respectivas mudanças de mentalidades e enquadramentos legais, tem sido notória uma preocupação com a promoção de actividades adaptadas às necessidades e limitações dos alunos, no sentido de realizar uma adequada transição.
Por conseguinte, as áreas vocacionais deverão ser inseridas no currículo do aluno com medidas adicionais (que beneficie de PIT) como sendo a primeira fase de uma futura integração profissional. No sentido de experimentar e descobrir diferentes áreas profissionais de forma teórica e prática, permitindo a aprendizagem de novas competências, assim como, possibilitando o conhecimento das capacidades dos alunos, sondando motivações e procurando vocações.
A escolha das áreas vocacionais a introduzir no currículo depende dos recursos (humanos, materiais e espaciais) disponíveis, devem ser diversificadas e ir ao encontro das preferências dos alunos e das necessidades da sociedade (deveremos ter em conta, por exemplo: actividades que revelem carências de profissionais, ou até, respostas que existam na proximidade da escola).
Para que estas contribuam para a integração do aluno e consequentemente para o sucesso de todo o processo, devem ser planificadas (delineando metas, linhas orientadoras e objectivos) e avaliadas, de forma a adequar os conteúdos - reestruturando-os sempre que necessário. Nesta fase a escola poderá efectuar parcerias com empresas, instituições e organismos públicos, para auxiliar no funcionamento das mesmas, no sentido de oferecer aos alunos melhores condições de aprendizagem, assim como viabilizar futuros protocolos de formação ou até de emprego. Ou seja, podemos ter áreas vocacionais internas (dentro do estabelecimento de ensino) ou externas (fora deste). De uma forma espontânea, os alunos beneficiarão de um conjunto de áreas e de competências que podem ser úteis na escolha de um futuro percurso formativo adequado aos seus gostos e capacidades.
Numa segunda fase, os alunos deverão beneficiar de uma formação mais orientada e estruturada, a fim de possibilitar a aquisição de aptidões referentes a uma área vocacional específica. Aqui, a transmissão de conhecimentos e a especificidade da frequência de uma só área, possibilitarão uma capacitação superior e simultaneamente uma melhor e mais fácil inserção no mercado de trabalho.
A selecção da formação a implementar no currículo do aluno obrigará ao cumprimento de determinados critérios, tais como: as suas motivações, o nível cognitivo (capacidades intelectuais e académicas), a sua autonomia (pessoal e social), as características sócio afectivas, a idade, a disponibilidade de colaboração dos encarregados de educação (apoiando e autorizando a experiência), o nível motor (capacidades e habilidades), o grau de deficiência/incapacidade, assim como os recursos humanos disponíveis (nomeadamente a existência de um técnico responsável pela supervisão da mesma), os recursos materiais e espaciais existentes (como prerrogativa de qualidade), as eventuais saídas profissionais (como facilitador da entrada no mercado de trabalho) e a disponibilidade/existência de um local de estágio (quer seja interno ou externo).
Os objectivos das áreas vocacionais, sejam internas ou externas, complementam-se, ainda assim, são distintos. No que se refere às internas, existem diferentes propósitos, como: experimentar e descobrir diferentes áreas e contextos profissionais (de forma teórica e prática), sondar as motivações e capacidades, experienciar novas formas de trabalho, procurar vocações ou possibilitar a aprendizagem de novas competências. Relativamente às externas, existe uma maior preocupação na especialização do aluno, apostando na promoção do trabalho como ferramenta de integração profissional, desenvolvimento da autonomia e da responsabilidade, assim como, na transmissão/aquisição de conhecimentos específicos da área de formação - sendo de extrema importância a necessidade da criação de parcerias com entidades, empresas e instituições para desenvolvimento das mesmas.
Os exemplos de áreas vocacionais são diversos e excedem a imaginação, basta que se analisem os recursos e os locais disponíveis para o efeito. Se pensarmos internamente, podemos considerar a jardinagem, a limpeza, o artesanato, passando pelo exercício de funções em bibliotecas, auxiliar de sala ou de outros espaços. Já no que se refere às áreas vocacionais externas, podemos incluir oficinas, supermercados, lojas diversas, museus, espaços municipais, entre outros... Todos serão valorosos para o desenvolvimento global dos intervenientes.
As competências específicas de cada área vocacional deverão ser definidas, tendo em consideração unidades de intervenção devidamente planificadas, como: a higiene e segurança no local de trabalho; o respeito, cordialidade e atendimento; as noções elementares inerentes à função; ferramentas, máquinas e/ou materiais; técnicas, projectos e actividades.
No final do processo, ou seja, fim da escolaridade obrigatória e consequente transição para a vida activa/adulta, a escola deverá atempadamente criar protocolos com empresas e entidades no sentido de auxiliar os alunos na inserção no mercado de trabalho/ocupacional - organizando uma Bolsa de Entidades. Inclusivamente, e a um nível local, a escola poderá observar e inventariar as actividades profissionais de maior carência e implementá-las como áreas vocacionais - através, por exemplo, da criação de um Observatório de Transição para a Vida Activa/Adulta - sendo indispensável que se articulem câmaras municipais, agrupamentos de escola, juntas de freguesia, IEFP, assim como entidades/instituições locais. O trabalho em rede poderá ser uma ferramenta valiosa para o desenvolvimento de um projecto deste género.
Para além disto, existem alunos com dificuldades gravíssimas que os impossibilitarão de conseguir seguir um percurso formativo ou laboral. Por esse motivo, há que ter em conta por exemplo a criação de unidades de produção devidamente estruturadas e orientadas, onde alunos com maiores necessidades possam ser apoiados de uma forma mais protegida, no entanto, útil à sociedade. Esta metodologia, ainda que com menor carga horária e maior acompanhamento, deve basear-se num ambiente de intervenção securizante de cariz ocupacional. Neste caso, poderão ser de extrema importância os antigos Centros de Actividades Ocupacionais (CAO) agora Centros de Actividades e Capacitação para a Inclusão (CACI) ou até instituições criadas para o efeito.
Tudo isto implicará e obrigará a uma mudança de atitudes e de mentalidades em todos os intervenientes do processo, especificamente no que diz respeito ao conceito de escola inclusiva. As famílias e a comunidade deverão colaborar de uma forma participada e mais activa, na aceitação da diferença e de todos os cidadãos portadores de deficiência, permitindo e contribuindo para a sua integração plena.
Em suma, a implementação das áreas vocacionais deve respeitar as motivações do aluno, tendo em conta a sua participação e ser o resultado da cooperação entre todos os envolvidos (escola, família e comunidade). Para além disto, é imperioso que se definam políticas que salvaguardem uma transição convincente. As áreas vocacionais, constantes dos respectivos PIT poderão ser desenvolvidas como sendo mais uma valência do Centro de Apoio à Aprendizagem (CAA) - estrutura de apoio agregadora dos recursos, dos saberes e competências.
A sociedade aceitará a diferença a partir do momento em que estes alunos estiverem integrados na comunidade a realizar tarefas banais do nosso dia-a-dia e de grande utilidade/importância, no desempenho da sua profissão, no desporto e no lazer, nas relações humanas, entre outras...
João... É esse o nome do aluno que me telefonou... Continua a trabalhar na mesma oficina de bate chapas onde o colocámos há cerca de dezasseis anos em regime de área vocacional externa... É um profissional exímio e competente... Ainda faz alguns biscates por fora... Tem carta de condução... É chefe de família e muito mais responsável e equilibrado do que os seus progenitores alguma vez foram...
Bibliografia:
Decreto-Lei nº 319/91, de 23 de Agosto
Decreto-Lei nº 3/2008, de 7 de Janeiro
Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de Julho
Uma perspectiva de organização curricular para deficiência mental; Mário Carmo Pereira e Fernando David vieira (1996)
Transição da escola para o emprego (Relatório síntese); European Agency for Special Needs and Inclusive Education (2002)
Repensar a formação no ensino especial (Projecto de reestruturação da pré formação); António Pedro Santos (2004)
Repensar a formação na educação especial (Projecto de reestruturação da formação); António Pedro Santos (2007)
Plano individual de transição (Documento orientador); António Pedro Santos (2018)
António Pedro Santos (2024)