Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

I

Depois de receber o telefonema... Meteu-se ao caminho... Em direcção à costa...

Seria aí… Que iria para mais uma das inúmeras entrevistas de trabalho...

Uma colecção que Pedro conservava com tristeza na sua curta memória profissional... Um caminhar alternado... De escola em escola... De empresa em empresa... Associações e afins... Na verdade… Tudo servia... Desde que fosse no seu ramo... O ensino...

Ao chegar à cidade costeira... Ainda à entrada… O cheiro a mar e a peixe recordaram-lhe os seus tempos de estudante... Num outro burgo ainda mais principal... Uma capital de distrito com um rio que também desembocava no mar... Onde histórias de amor infrutíferas o deixaram nostálgico...

Dos amáveis laços de camaradagem... Guardava muito poucos... Porém... Prezava com apreço os ínfimos que ainda restavam...

Ao mesmo tempo... Recordava com mágoa o seu percurso académico... Um dos mais novos do curso… Dos primeiros a entrar... Bastante interventivo e ligado ao movimento associativo... Contudo... Distante das capas e das tradições naturais de um estudante comum... Enfim... Uma vítima das suas próprias acções contestatárias... Irreverentes e primárias… Como se quer para a altura…

Actividades à esquerda... Ainda que... Distantes de qualquer partido...

Operações que mudaram mentalidades num pequeno meio... Ou melhor... Agitaram-nas sem piedade... Face à insolência e descuido da maioria dos seus colegas... Numa falta de solidariedade a olhos vistos...

Estava a suar... Extenuado e cheio de sede... Contemplou a paisagem que se apresentava à sua frente...

Na sua cabeça... Disparavam imagens e emitiam-se conversas... Repetições passadas da vida de estudante... Beijos e segredos ao ouvido... Vozes doces e fragrâncias que ainda hoje o incendiavam... De velhas namoradas... Ou de mulheres que com ele se haviam cruzado... Histórias antigas de escolas... Onde tinha assumido pequenos horários... De muito trabalho e de grande precariedade... No riso dos colegas... Agora professores... Nos problemas dos mesmos... Que ao pé dos seus... Pareciam simples dissabores... Enfim... Cada um às suas...

Mas… Na verdade e naquele momento... O dinheiro contado que trazia... Parecia ser um problema de maior gravidade...

Procurou dar ao rosto uma imagem segura... Lembrou-se das palavras dos seus pais... Da família... Dos professores do curso... Dos colegas... E de todos aqueles que ainda hoje insistiam em tratá-lo como se fosse uma criança... Ou melhor… Um professor inexperiente... Mancebo na profissão e no saber... Mesmo depois de uma vida inteira a ouvir e a aprender... Com a gana... A vontade e a idade de todos aqueles... Que noutro e até no seu tempo... Foram figuras ímpares e de destaque na sociedade...

“Quem pensa você que é?”... Recordava melindrado… A eterna questão de um dos seus professores mais fascistas e castradores... “Não vê que se enterra?”... Avisava... Olhando-o com atenção...

“Não se esqueça que já nasci depois do 25 de Abril!”... Lembrava Pedro... Seguro dos seus ideais de liberdade…

O professor engolia em seco... Todavia... Sabia que no final lhe faria a folha... Sem dó e sem qualquer clemência... Com todo o prazer do mundo... Que um mandante preenche de poder... Um carcereiro... Somente para matar... Como se a vida alheia nada valesse...

Quando o autocarro parou... Pedro quis descer com a mala ao mesmo tempo que olhava a vista... Contudo... Desequilibrou-se e estatelou-se no chão da paragem da camioneta...

Um pé colocado em falso que o atraiçoou e deixou cair... A mala abriu-se...

Uma risada ecoou no ar...

Amável... Uma senhora de idade aprontou-se em ajudá-lo...

- Magoou-se? – Perguntou a mesma… Uma voz doce de um rosto enrugado pelo passar do tempo... Que o fez rememorar a sua avó quando o adormecia... Há muitos anos atrás... Um olhar meigo e preocupado... Como o dela... Que o tempo apagava aos poucos da sua memória... Cada vez mais pequena... Pelo passar de tanto tempo da sua morte...

- Obrigado! – Agradeceu Pedro... Sentando-se no chão...

- Aqui está a tua mala! – Exclamou um jovem que a trouxe... – Abriu-se! – Informou...

Pedro agradeceu e levantou-se... Sacudindo a sua roupa... Uma das melhores que tinha na sua económica colecção de trapos... 

- Olha... Até trouxe as cuequinhas! – Gritou um homem de dentro do autocarro... O condutor sorriu e perguntou:

- Está bem?

- Um pouco sujo! – Respondeu Pedro… Com alguma vergonha...

A senhora agarrou-o pelo braço e disse:

- Sente-se aqui no banco! Descanse um pouco... Tem a certeza que está bem?

- Está tudo bem! – Afirmou Pedro...

Todavia... O calor misturado com o odor pestilento do óleo da camioneta... Fizeram-no vacilar um pouco... Pareceu sentir-se tonto e revirou os olhos...

- Ajudem-me! – Gritou a senhora...

Os poucos segundos que apagou... Transportaram-no para o conforto da cama que deixara no seu quarto... À distância da casa dos seus pais...

Pedro estava deitado no banco da paragem do autocarro... Ao acordar... Uma frescura aliviava-lhe a quentura que sentia... A senhora de idade passava-lhe um lenço húmido na testa... No ambiente... O cheiro a livro fechado que a mesma exalava...

- Já está melhor? – Perguntou a mesma... Ladeada pelo jovem que trouxera a sua mala...

- Queres que chame o 112? – Questionou o rapaz... Já agarrado ao telemóvel...

- Nada disso!... – Respondeu Pedro... – Já estou bem! – Exclamou... Levantando-se e pegando na sua mala de mão...

A senhora amparou-o pelo braço e olhou-o nos olhos... Como que... Comprovando o seu estado de saúde plena...

- Tem a certeza de que está bem? – Insistiu... Contemplando-o bem fundo...

Pedro parou por uns instantes... Siderado naquele olhar... Meigo... Atento e preocupado... Uma raridade nos nossos dias... Uma ignóbil parte da vida... De um coração maior que o mundo... Que ali estava para auxiliar um semelhante... Com a ternura que se tem para com um amigo ou familiar...

Jamais esqueceria aquele olhar... Uma alma caridosa de uma humanidade maior...

- Esteja descansada. – Garantiu Pedro... – Está tudo bem... Obrigado aos dois!

- Já está melhorzito? – Gozou o homem de há pouco...

- Cale-se homem! – Gritou a velhota... – Nem veio ajudar! Será que não tem mais nada para fazer?

- Meta-se na sua vida mulher! – Retorquiu o homem... Já de pé num jeito ameaçador... Ainda assim… Dentro do autocarro...

Pedro olhou para cima e vociferou:

- Estás a falar com a tua mãe?

Ao constatar o ar irado de Pedro... O homem sentou-se... Efectuando um gesto de desdém com o braço...

O motorista fechou a porta e seguiu viagem... Encerrando a discussão com um sorriso no rosto...

Parado à beira da estrada... De semblante cansado... Visualizou o afastar de todos os que ali se encontravam... Do jovem que lhe guardara a mala religiosamente... E da senhora idosa que o havia tratado com benevolência e compaixão...

Jamais os esqueceria...

Com o olhar pesado... Restava agora... Dar de novo ao rosto… Uma imagem segura…

Por uns momentos… Fixou-se na contiguidade arquitetónica... Divagando por instantes… Nos paradoxos da vida e da conjuntura temporal... Paradigmas atrozes de uma sociedade feita à base de betão... Que aos poucos consumia as consciências amiudadas das gentes que naquela cidade habitavam...

António Pedro Santos

(Continua) ...