A braços com a Loucura. Ou melhor ... Ensaiando
XIII
Após uma semana de trabalho... Um pouco atabalhoada e ao improviso... Devido à avaliação das capacidades dos alunos e consequente preparação do ano lectivo... Seria segunda feira... O primeiro dia em que tudo funcionaria como previsto... Os horários e grupos formados pelo professor... Seriam experimentados por fim...
Ao chegar de manhã... Encontrou-se com Luz no café... Depois acompanhou-a até ao escritório onde ainda conversaram um pouco... Pedro aproveitou para fazer umas fotocópias... Tinha preparado umas fichas simples...
- Queres levar já o material? - Perguntou Luz... – Já cá está quase todo!
Pedro tinha efectuado uma lista de material escolar... Requisitou cadernos e dossiês... Canetas... Lápis e borrachas... Entre outras coisas... Levou para a sala o que pôde...
Os alunos chegaram... Cumprimentaram-no... Alguns deles... Mais afectuosos fizeram questão de o beijar... Como a Bebé e Filipe...
Este último... Que no primeiro dia esteve tão distante e alheio... Era afinal amoroso...
Pedro tinha colocado previamente as mesas em forma de “U”...
Na lateral sentavam-se o Ramos e Samuel... Ao centro Carrapito e Filipe... No lado oposto a Cristina e a Bebé…
Distribuiu por eles uma ficha muito simples... Envolvia o trabalho do traço e um pouco de pintura... Na sua maioria... Revelavam dificuldades em segurar o lápis com segurança...
Enquanto isso... Pedro distribuiu algum material pelos alunos e arrumou o restante... Tratou de identificar os cadernos de capa preta e os dossiês... Com o nome dos alunos...
Que agora estavam compenetrados na ficha...
De fundo escutavam-se os ruídos emitidos por Cristina... “Rum... Rum”... Bebé… Por seu lado… Ainda permanecia de pé... Estruturando paulatinamente o seu material em cima da mesa... Dispondo com organização... Marcadores e lápis de cor... Canetas... Borracha e afia... Uma régua e até uma flauta…
Ao longe... Carrapito enterrava a mão dentro da sua boca... Enquanto que… Com a outra... Parecia realizar a tarefa concentrado... Exteriorizando calma e tranquilidade...
Filipe olhava distante para o infinito... De boca escancarada e óculos embaciados... Na mão esquerda segurava o tal lápis amarelo gigantesco... Um amuleto da sorte talvez...
Samuel realizava a ficha... Movimentando por vezes a cabeça para olhar o professor... Rosto rectilíneo... Semblante sério e compenetrado...
Ao seu lado... Ramos... De pé... Com as calças puxadas para cima... Ao máximo... Afiava o lápis... Consecutivamente... Esboçando um sorriso aprazível sempre que o seu olhar se cruzava com o de Pedro...
Enquanto os observava... O novo professor preparava os seus cadernos individuais... Colocando o nome completo destes em maiúsculas... Com pequenos pontos ou tracejado... Alguns grafismos e algumas letras...
Na mesa de Pedro... Os livros requisitados na biblioteca... Ao fundo... Alguns livros do primeiro ciclo que Luz havia disponibilizado…
Nesse dia... A observação e o acaso da aula ocorreram... Deixando que tudo acontecesse por si... O professor alongava o seu olhar e abria a atenção... Permitindo que as coisas sucedessem por si...
Bebé sentara-se por fim... Por vezes o seu corpo tremelicava... Rodando as mãos repentinamente e sacudindo a cabeça...
Cristina permanecia imóvel... Rodopiando os olhos... Perdendo a concentração com qualquer situação que verificasse... Às vezes... Parecia tentar focar o seu próprio nariz ou os óculos… Era um movimento impressionante...
Mais afastado... Filipe também dispersava... Lento na execução dos exercícios... Imensamente molengão... Manuseava o enorme lápis amarelo... Perdendo-se nesta divagação... Puramente contemplativa…
Estes três... Tinham em comum a síndrome de down... Ou trissomia vinte e um... Uma anomalia no cromossoma vinte e um…
Na sua pesquisa... Pedro descobriu que existem esculturas no México... Provavelmente dos Olmec... Que espelham as primeiras evidências da doença... Ou problemática...
Assim como... Pinturas dos séculos catorze... Quinze e dezasseis… Onde aparecem pessoas com essas características…
Durante muito tempo... Estas pessoas foram estigmatizadas e enclausuradas... Utilizadas como atracções de circo e outras barbaridades...
Só no século dezanove... Mais precisamente em mil oitocentos e sessenta e seis... John Langdon Down fez a primeira descrição clínica da doença...
Embora fosse investigador... Este acreditava na inferioridade natural de algumas raças e etnias...
Durante muito tempo... E ainda hoje... Imperaram termos como: mongolóides e mongolismo... Enfim… Com o tempo... Durante os anos sessenta e setenta... Foram excluídos das principais revistas e publicações... Hoje são considerados arcaicos...
Ramos levantara-se de novo para afiar... Sorrindo para Pedro... Gesticulando com o sobrolho um cumprimento...
- Queres outro lápis? – Perguntou o professor...
- Hã? – Questionou...
O professor repetiu mais alto…
Ramos não ouvia nada bem... A sua voz era muito grave e nasalada... Um tom fanhoso que por vezes não se entendia... Apresentava contudo uma aparência afável… Simpatia e um interesse fora do comum pelas pessoas...
Pedro lembrou-lhe que havia mais trabalho para fazer... Para além da ficha...
- Ele nunca se senta! – Avisou Samuel... Arrastando a voz... Coçando a cabeça e entremostrando alguns tiques... – Anda sempre de pé!
Samuel tinha espinha bífida... Alguns problemas nervosos e deficiência mental moderada... Isto é... Uma idade mental entre os três e os sete anos... Aproximadamente... Um quociente de inteligência entre trinta e seis e cinquenta e um... Segundo a literatura específica...
- Há mais trabalho para fazer! Rum... Rum... – Repetiu Cristina para si própria... Ecoando aquele ruído constante... Auto avisando-se...
Bebé... Já de lápis na mão... Agitou as mãos... Sacudindo-as num tremor calmante... Ou talvez necessário... E começou a trabalhar...
- Despacha-te Filipe! – Lembrou Carrapito... Quase sem mexer os lábios... Num instinto protector do colega... Filipe bocejou... Murmurando algo imperceptível...
Este apresentava uma grave dificuldade ao nível da comunicação... A sua linguagem ainda estava numa fase muito inicial e básica... Característica própria da trissomia vinte e um... Tal como a flacidez dos músculos... A excessiva flexibilidade das articulações... O rosto similar... A face achatada... Pálpebras inclinadas para cima e orelhas pequenas... A língua grande e a boca reduzida... Muita pele no pescoço e pernas curvadas... Dedos curtos... Assim como... A existência de uma prega transversal na palma da mão... Para além disto... Podem ainda apresentar doenças do coração e problemas digestivos... E outras anomalias...
- Então Filipe! Trabalha! – Recordou Carrapito... Ajeitando a ficha a este e colocando-lhe o lápis na mão... – Vá lá! – Disse... Ordenando...
Carrapito tinha uma voz muito aguda e demasiado infantil... Falava com uma fluência e rapidez satisfatórias... Porém... A sua boca permanecia quase imóvel e o seu olhar era fugidio... Isto é... Sempre que se sentia encarado... Desviava o olhar... Contudo... Revelava uma calmaria fora do comum na realização das actividades... Um olhar brando e ameno... Por detrás do seu corpo obeso e imponente…
Portador da síndrome do X frágil... Uma deficiência mental de origem genética... Anomalia causada por um gene defeituoso localizado no cromossoma X... Caracterizado por perturbações na linguagem... Dificuldades de concentração... Hiperactividade e limitações ao nível da aprendizagem…
Particularmente e segundo os registos... Carrapito apresentava alguma agressividade quando haviam falhas ao nível da medicação ou quando era contrariado... Pedro verificou também... Que o aluno ainda usava fraldas durante a noite... Apesar dos seus doze anos de idade...
Enfim... Pedro olhava-os inebriado... Para ele... Estava a braços com uma experiência enriquecedora...
- Já acabei! – Informou Samuel levantando-se...
Pedro chamou-o e corrigiu junto dele a ficha... Rasgando-lhe alguns elogios... O aluno ficou satisfeito por ter atingido os objectivos...
Do latim spina bífida... Espinha cindida ou dividida... Deformação congénita provocada pelo encerramento incompleto do tubo neural embrionário...
Samuel apresentava dificuldades de coordenação... Aprendizagem e controlo muscular... Problemas de mobilidade…
Noutros casos poderia provocar paralisia nas pernas... Alterações da sensibilidade por baixo da lesão... Problemas na locomoção... Incontinência urinária e fecal...
Contudo... Samuel parecia revelar muito interesse e empenho pelas actividades propostas... Ficou radiante com o reforço de Pedro e entremostrou um sorriso... Voltou para o lugar com o sentimento de dever cumprido e carregando a próxima tarefa no caderno que Pedro preparara previamente...
Quando Samuel se sentou... Ramos dirigiu-se a Pedro... Carregando consigo a ficha de trabalho... Sem dizer nada... Cruzou os braços e olhou para o professor... Movendo o queixo para cima e para baixo…
Este aluno apresentava uma deficiência mental moderada... Segundo os registos... Contudo... Parecia ser algo mais severo... Apresentava grandes dificuldades de concentração... De atenção... Ouvia muito mal e tinha problemas ao nível da linguagem... Todavia... Era muito sociável e adorava conversar... Usava óculos e dizia-se por lá... Que tinha uma grande propensão em parti-los... Não os seus... Mas... Os dos outros...
- Que se passa? – Interrogou o professor... – Já fizeste?
Ramos não ouviu... Aliás... Ele tinha mesmo dificuldade de audição...
Pacientemente... Pedro repetiu... Elevando a voz...
- Preciso da tua ajuda! – Exclamou... Não sei fazer isto!
O professor sorriu e acompanhou-o até ao seu lugar... Lá... Explicou-lhe a tarefa por duas vezes... Certificando-se de que este tinha percebido...
- Ele nunca faz nada! – Afirmou Samuel... Coçando a cabeça aflitivamente...
- Cala-te! – Ordenou Ramos... Gritando de forma fanhosa...
- Parvalhão! – Desabafou Samuel...
Imediatamente... Pedro colocou ordem nos dois... Apaziguando a situação e recordando que o propósito principal não era o insulto... Mas sim o trabalho... Ramos enterrou a cabeça na ficha... Samuel... Enervado com a repreensão... Baixou de rendimento e coçou a cabeça de uma forma continuada...
- Estás a fazer um bom trabalho! – Atestou Pedro... Passando por detrás da cadeira de Samuel e abaixando-se junto deste... – Tens uma bela letra!
O aluno pareceu gostar do que ouvira e acalmou-se... Continuando...
O professor avançou para junto de Filipe e Carrapito...
Embora estivessem numa fase muito arcaica e inicial... Pedro deu-lhes uma palavra de encorajamento... Pedindo-lhes apenas algum cuidado com a força com que faziam no lápis…
Cristina estava de cabeça no ar... Pescoço inclinado para trás... Observando o andar do professor...
- Ai! Cristina! Ai! Rum... Rum... – Balbuciou sorrindo atrapalhada... Ao reparar que este a olhava...E
- Já terminaste? – Questionou... – Queres ajuda?
- Ajuda? – Perguntou surpresa... Efectuando um longo compasso de espera... – Rum... Rum... – Ajuda? Não preciso! – Disse gaguejando... – Rum... Rum... Despacha-te Cristina! – Ordenou a si própria... – Não vês o professor?
Ao seu lado... Bebé ria à gargalhada com a saída da colega... Um ataque de riso que a fazia perder completamente a compostura... Movimentando o corpo para trás e para a frente... Contagiando os restantes elementos da sala...
- Ainda estás muito atrasada! – Exclamou Pedro... Apoiando-se no seu ombro...
Esta confirmou-o... Todavia... Quando o percebeu bem próximo... Beijou-o na face... De uma forma mélica e profunda… Olhando-o com cumplicidade… E culminando o momento com uma valente gargalhada... Que acabou por instalar-se de novo na sala...
António Pedro Santos
(Continua)...