A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando
XVIII
Na quinta-feira... Pedro teve oportunidade de trabalhar com os alunos mais evoluídos… Isto é... Todos sabiam ler... Ainda que apresentassem dificuldades... Nomeadamente... Erros ortográficos... Confusões verbais... Ou ao nível da construção frásica...
Na matemática... Apenas um deles fazia multiplicações simples... Os restantes só conseguiam efectuar somas e subtracções… O que para o novo professor já era muito bom... Face ao panorama anterior…
Para além disto... Eram alunos mais comunicativos e faladores... Com objectivos mais definidos... Em suma… A participação era outra...
Na sala estavam os alunos mais velhos do colégio...
Teófilo apresentava perturbações do espectro do autismo... Um rosto bem feito... Escondia na sua beleza exterior um grande entrave interior... Contudo... A vivência e o estímulo que beneficiara ao longo dos tempos já surtia efeito... Quando solicitado... Respondia tipo robot... Articulando um discurso bem preparado e com ênfase... Porém e por vezes... Confundia-se na totalidade... Baralhando-se e perdendo a paciência com a sua cabeça e com os seus problemas…
Dizendo: “É a minha cabeça! Não tenho a culpa!”…
Curioso... Estudava palavras com prazer... Desbravando dicionários e enciclopédias...
Enfim… Registos mais antigos falavam em autismo infantil... Para Pedro... E depois de uma exaustiva investigação... Aprendeu que o autismo é uma deficiência e não uma doença mental... Talvez fosse Asperger... Bem melhor e mais evoluído... No entanto... Havia por ali um problema neurológico... Ou cerebral... Que originava um decréscimo da comunicação e das interacções sociais...
Teófilo recolhia-se dentro de si próprio... Apesar dos seus dezassete anos de idade... Nem sempre correspondendo aos factores extrínsecos... À margem... Aparentava indiferença para com os outros indivíduos... Muitas vezes com o mundo...
Adorava a sétima arte... Foi o novo professor que lhe ensinou o termo... De uma forma especial... Contava filmes do seu gosto pessoal ao pormenor... Relatando diálogos e modificando a voz... Pintando cenários de magia com muita cor…
Gostava de desenhar e fazia-o razoavelmente bem... Invadia o professor de perguntas... Previamente preparadas... Acerca de palavras difíceis... Bandeiras e países... E até sentimentos... Que o atormentavam no dia-a-dia... Uma perturbação vitalícia que comprometia seriamente a sua interacção social... A comunicação... As actividades e os interesses...
Patrícia e Rosa... Sentaram-se juntas... Quinze e dezoito anos respectivamente... Um pouco tímidas... Contudo... Vigilantes e atentas ao decorrer da aula... Enquanto o professor falava e se deslocava de um lado para o outro...
Ilda sentou-se junto de Ana… A sorte grande e a terminação… Falando por vezes sozinha... Sem qualquer hipótese para além do monólogo…
Apesar do seu olhar disperso... Apresentava um elevado grau de motivação pela frequência escolar... Sobretudo pelas novas aprendizagens... Já a colega do lado... Nada dizia...
Noutra ponta... De braços cruzados... Angela observava o professor e os colegas ao longe... Colocada nitidamente à parte por estes... Resignava-se ao seu lugar... De distante e só...
Em frente... Estava o Carlos... Largo e sempre suado... Transpirando uma abundância de suor por toda a sua carne… Observando e ouvindo a conversa do professor…
Ao lado… Virgílio... Com o arranhar dos dentes... Num enrugar da face... Clara e ameninada... Piscando um dos olhos...
Mais atrás... Estavam o Luís e o Roberto... O primeiro a desenhar e o segundo com o dedo enfiado no nariz...
Pedro falou com os alunos como se fosse da idade deles... Os jovens escutaram-no com atenção... Sonhos... Profissões e futuro... Dificuldades e ambições... Para além disso... Deu-lhes espaço para que falassem de si... Sem excepção... Mas nem todos se manifestaram... Porém... E enquanto falou... Até os mais dispersos lhe pareceram atentos...
Convenceu-os a fazer um jornal de parede... Um espaço dedicado a todos os alunos que frequentassem as actividades daquela sala... Dividiram-se em pequenos grupos e colaboraram motivados...
No final Roberto perguntou... Em voz alta...
- Quando é que jogamos à bola?
A sala inteira riu... Até Ana... Que sem mostrar os dentes... Desenhou um sorriso leve na face...
Durante o almoço... Pedro sentou-se junto destes alunos... Uma mesa grande que comportava aquele grupo inteiro... Algumas colegas olharam-no com estranheza... Elisa... Martinha e até a psicóloga…
Ao longe... Luz ajudava Andreia e sorriu para o professor... Já Saudade não parecia estar muito satisfeita...
Enquanto comiam... Pedro observava os seus modos e escutava as conversas... Uma forma eficaz de os conhecer melhor... Pensamentos e sonhos verdes... Ou primaveris... Comportamentos estereotipados e alguns pouco usuais na sociedade... Usavam apenas um talher e o guardanapo era pouco utilizado... Muitos deles limpavam a boca ao braço...
Os alunos invadiam-no de perguntas... Como se o idolatrassem... Afinal... Um respeito que parecia ter conquistado…
Roberto falava de futilidades... Uma conversa completamente desorientada que apenas procurava atenção... Luís corrigia-o constantemente... Roberto parecia ouvi-lo…
Carlos contava coisas da sua família... Do pai e da mãe... Do irmão e dos sobrinhos... Que embora adoptiva... Era a que ele considerava... E a que tinha talvez alguma consideração por ele...
Patrícia conversava por todas as moças... Que envergonhadas sorriam... Atentas ao desenrolar…
Virgílio... Gaguejando disse:
- Professor... Sabia que nunca comem com a gente?
Pedro percebeu-o... Mas mesmo assim perguntou:
- Quem?...
O aluno preparou-se para articular... Expressando na face uma tentativa...
- Os professores! – Adiantou-se Patrícia...
- Você é o primeiro! – Completou Virgílio a custo...
- É verdade! – Exclamou Patrícia olhando-o... Os restantes concordaram... E gerou-se mais um motivo de conversa... Por entre cruzamentos de palavras trocadas... De um lado para o outro...
- Isso é bom?... – Questionou Pedro... Revelando algum interesse e atenção… – Acham melhor?...
Os alunos manifestaram-se em grupo... Aliás... Quase todos... Se bem que… Ana permaneceu muda e Teófilo parecia não estar ali... Demasiado concentrado na sua sopa...
- É melhor! – Afirmou Virgílio... Gesticulando com o braço...
- Os alunos gostam mais! – Disse Patrícia... Engolindo metade das palavras...
- Assim falamos todos! – Interrompeu Carlos… – Aprendemos e tal...
- Fazemos parvoíces! – Gritou Roberto... Olhando em redor abruptamente... Numa tentativa de dar nas vistas...
- Lá tá este!... – Exclamou Luís... Agitando a cabeça em sinal de desagrado...
Os restantes também demonstraram o seu descontentamento...
- E tu Teófilo... O que achas ?
- Diga professor?... – Questionou surpreso e atarantado... Interrompendo de imediato a sua acção...
- Estás sempre a dormir! – Exclamou Carlos...
- O que achas do professor... – Disse Virgílio...
- Comer aqui com os alunos? – Interrompeu Patrícia... Rapidamente...
Teófilo efectuou um compasso de espera... Buscando na sua cabeça algum raciocínio que lhe possibilitasse a sua resposta...
- Acho bem! Acho bem! – Bisou... Abanando a cabeça...
Entretanto... Filipe saiu da sua mesa e aproximou-se de Pedro... Colocando-lhe a mão nas costas... Luz chamou-o engrossando a voz... Mas o professor fez-lhe um sinal de concordância para com a situação…
O aluno com trissomia vinte e um... Usava uma linguagem quase totalmente imperceptível... Porém... Pedro entendeu que este o convidava para a sua mesa... Com um rosto de pedinte...
- Vai-te embora! – Ordenou Roberto... Falando alto...
Pedro repreendeu-o... Pedindo-lhe que não falasse assim... E explicou a Filipe que se sentaria na sua mesa noutro dia...
Ainda assim… O aluno afastou-se desolado... Cabiz baixo... Olhando-o às prestações por cima dos óculos... O professor sorriu e Luz também…
Saudade ainda repreendeu Filipe por se ter levantado... O professor achou que não era necessário... Mas nada disse...
Combinou com os alunos mudar os hábitos à mesa... Utilizar os dois talheres... O guardanapo e colocá-los na ordem adequada... Beber água... Comer de tudo um pouco e terminar a sopa... Alertou-os ainda... Que por causa dos outros alunos... Teria de se dividir um pouco pelas outras mesas…
Os alunos nem regatearam e até pareceram demonstrar interesse no assunto... Talvez porque Pedro lhes transmitiu preocupação e consideração pelo desenvolvimento global... Falando-lhes de melhores homens e mulheres... Com poder para impressionar os outros e deixar a sua marca na sociedade... Os alunos ouviam-no enlevados...
Durante a tarde... Na aula de psicomotricidade... Os alunos do primeiro grupo fizeram um aquecimento geral... Comandado pelo professor... Correndo... Andando... Rastejando e rebolando... No parado... Com flexão... Extensão e rotação das articulações... Alongamentos... Entre outros…
Posteriormente atribuiu uma bola a cada um... Pedindo-lhes que a manipulassem... Atirando-a ao ar e agarrando... À parede... Chutando-a e conduzindo-a… Driblando-a...
Filipe foi o único que pareceu mais à vontade...
Ramos e Fábio apresentaram grandes dificuldades de coordenação óculo manual e pedal... Assim como no que diz respeito à motricidade global…
Bruno era esforçado... Contudo… Desistia facilmente…
João era um poço de força... Mas muito desajeitado... Adorava desporto... Ao contrário de Carrapito ou Samuel...
Ainda fizeram actividades de deslocamentos e equilíbrios num banco sueco e uns enrolamentos no colchão...
No final da aula... Entrou outro grupo… Alunos de educação física... Com eles... O professor organizou um pequeno jogo pré desportivo... Utilizando uma bola e dois arcos... Alguns alunos destacaram-se mais... Como o Luís e a Patrícia…
Os restantes estavam bem mais acanhados... Mas foram aparecendo... Como o Mário e o Carlos...
Virgílio e Roberto perseguiram-se a aula toda... Provocando-se mutuamente e baixando o rendimento da aula... Pedro interveio sempre e conseguia resolver a situação por momentos... Todavia… Roberto chamava ao colega “cara torta”… E começava tudo outra vez…
Rosa e Cláudia estavam mais tímidas e Teófilo parecia não saber o que fazer... Mas enfim... Lá correu... E os alunos acabaram por empenhar-se...
O aluno multideficiente da quinta-feira chamava-se Ruben... Tinha síndrome de lowe... Segundo os registos apresentava um grave défice das suas capacidades físicas e motoras... Sensoriais e intelectuais…
Com dez anos de idade... Vivia numa instituição de solidariedade social... A mãe... Muito nova... Visitava-o por vezes... Não tinha pai... Não que tivesse falecido... Mas porque fugiu a sete pés após o seu nascimento…
Ruben era totalmente cego... O seu aspecto de bebé grande... Perdia-se na observação dos seus movimentos bruscos e violentos... Auto agredindo-se com brutalidade... Feriando-se diariamente… Talvez por receio ou estranheza… Provavelmente por medo…
Para além disto... Não falava... Chorava bastante e nunca ria... Chupava os dedos das mãos e dos pés... Não andava e apenas gatinhava... Aliás... Arrastava-se pela sala... Com as pernas atrofiadas e pé boto…
O professor transportou-o até ao ginásio... No primeiro andar…
No caminho... O aluno esbracejou e gritou... Os colegas que por ali se encontravam olharam-no…
Ao entrar... Pedro deu-lhe bolas... Arcos... Cordas e outros objectos... O aluno agarrava-os e atirava-os para longe... Berrando em seguida... Só não atirou uma garrafa de água... Que era do professor... Mas gritou... Talvez porque não a conseguisse abrir... Sempre com um ar de mostrengo... De aberração…
Pedro falava com ele e suava...
- Eu vou abrir a garrafa! – Dizia o professor... Tirando-lha...
Roberto bebeu vários golos... Enfiando o gargalo totalmente na boca… Pedro emendou a sua atitude... Mas pouco adiantou... Nunca tinha visto nada assim... Ligou a música e este acalmou-se... Adormecendo... No final... O professor levou-o de regresso para a sua sala...
- Bem... Estás todo molhado! – Observou Elisa... Sorrindo... – Então... É ou não é difícil? – Disse... De mão nas ancas... Armando-se... Como se fizesse uma advertência a Pedro...
- Ninguém disse que era fácil!... – Exclamou o docente... Em jeito de resposta à observação descabida...
- Eu não disse! Eu não disse! – Repetia... Como se tivesse avisado Pedro ou alguém do colégio... – Ninguém me ouve! – Desculpava-se e sorrindo...
Pedro mirou-a de alto a baixo... Como que... Medindo o seu calibre... Apreciando-a no seu todo... Enfim... Não passava de uma gabarola armada em vítima... Dentro de um contexto pouco ético e humano... Completamente fora... Contudo integrada na sociedade actual... E consequentemente ajustada à realidade social…
O novo professor detestava gente assim…
Telma... A auxiliar da sala... Pareceu percebê-lo... Ainda assim... Pedro ignorou a conversa da educadora e relatou a sessão com o miúdo... Enfatizando as suas dificuldades... Mas valorizando a sua juventude... Afirmando que não iria baixar os braços... Face aos lentos progressos que pudesse vir a ter...
António Pedro Santos
(Continua)...