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educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

XX

Na sexta-feira... Pedro iniciou o dia na sala de aula... Com o grupo mais limitado e virado para a escolaridade…

Ramos... Sempre bem disposto e animado... Afiava o lápis... De sorriso nos lábios... Curvado pela marreca... Num movimentar repetitivo das sobrancelhas... Com calma e sem pressas...

Depois de se sentarem... O professor explicou-lhes a finalidade do jornal de parede... Os alunos não pareceram muito entusiasmados e atentos... Contudo... Quando Pedro pediu um voluntário para completar o boletim meteorológico... Alguns manifestaram-se... Talvez sem saber ao que iam…

Pedro escolheu Samuel...

Ramos e Filipe ficaram amuados... O professor explicou que a partir dali seria à vez... Todos teriam o direito e o dever de o fazer...

No resto dessa manhã... Pedro distribuiu pelos alunos várias folhas cheias de letras... Dentro de pequenos quadrados... O objectivo seria cortá-las e guardá-las dentro de uma pequena caixa devidamente identificada... A actividade demorou imenso e não ficou concluída…

Os alunos apresentavam grandes dificuldades em utilizar a tesoura... Filipe... Ramos... Carrapito... Que deslocava a mão da folha para a boca... Da boca para a folha... Bebé... Com dificuldade em seguir o traço... Samuel... Que não gostava de falhar...

- Isto é pra quê?... Rum... Rum… - Contestou Cristina… - Pra que é isto professor? – Insistiu... Olhando-o por cima dos óculos... Num jeito de puro gozo... Cortando a folha... Com correcção... Isto é… Na medida do possível... Ou das suas capacidades... Fabricando com os lábios um desenho matreiro...

Nesse dia... Ao almoço Pedro sentou-se na mesa dos alunos da manhã de terça-feira... Bruno... Sentado junto à janela cumpria uma postura torcida e molengona... Olhando o professor e os colegas por cima dos óculos... Sem falar...

Ao lado Mário... Que por vezes metia conversa com este... Na verdade… Pareciam entender-se... Contudo… O tom de voz era muito baixo...

João... Mesmo ao lado de Pedro falava acerca de futebol... Do benfica e da selecção nacional... Todavia… O professor não entendia metade das suas palavras... Mas mesmo assim… Estimulava-o… Continuando…

De uma forma desorganizada... Maura e Raquel cruzavam diálogos com Pedro... Sem respeitar a harmonia de uma conversação normal... Mas… De facto… Nada tinha de normal...

Afinal… Uma súmula de perguntas diversas… Acerca de cores... Gelados e telenovelas...

Angela olhava-o de lado... Uma atenção estranha e perturbadora... Como se o contemplasse a sério... Vigilante e atenta... Aos movimentos e palavras do novo professor...

Ronaldo... De barrete enfiado na cabeça... Não por frio... Mas para o estilo... Falava do seu sporting... Grupos de rock e guitarras eléctricas...

- Sabes tocar professor? – Perguntava...

Pedro respondeu que sim... Aliás... Mais ou menos... E nesse momento pareceu abstrair-se do colóquio que decorria na mesa do refeitório... Saiu do colégio e daquela cidade... Pareceu entrar na sua velha cidade... Viu a sua casa e entrou no seu quarto... Lá estava a sua viola velha... Encostada à parede... Aguardando-o...

Subitamente... Sentiu um toque no ombro... Pedro regressou de novo à mesa do almoço... Era Filipe que uma vez mais o convidava para se sentar com ele e os colegas... Atordoado... O professor olhou a mesa... Ramos e Bebé acenaram... Efectuando um sorriso convidativo e irrecusável…

O professor levantou-se e levou Filipe com ele... Explicou-lhes com ternura que segunda iria almoçar com eles... Luz contemplou a sua atenção para com os miúdos... Parecia embevecida... Já Saudade... Era o costume... Trombuda e repressiva...

Voltou para a sua mesa de origem... Esbarrou com Leontina... Que havia chegado... Pedro desculpou-se e sorriu... Agarrando-a... Ela também o agarrou…

A sua fragrância era demasiado tentadora e sensual... Um convite à volúpia e à loucura... Os seus olhos pintados inebriavam... Cheiro a delícia... Que confundia o desejo e a razão...

Com a sua voz doce... Pronunciando Algarve... Perguntou:

- Não me viste?...

Pedro sorriu e segredou-lhe ao ouvido:

- Achas mesmo que não te via?

Com um brilho nos olhos... Leontina separou-se de Pedro... Favorecida de encanto e de prazer... Provavelmente... Agraciada para o resto do dia...

Pedro sentou-se novamente...

Gaguejando... Cláudia... Perguntou-lhe se queria atropelar Leontina... Todos riram...

Sarita levantou-se para repetir... O professor convenceu-a a desistir e ela fê-lo... A aluna estava demasiado obesa... Mas... prader willi... Que era a sua problemática... Convidava mesmo a uma alimentação exacerbada... Um descontrole que não conseguia dominar…

A aluna sentiu a atenção do professor... Pareceu agradar-lhe e ficou...

- Quando é que trazes a guitarra? – Interrogou Ronaldo...

- Não comes professor? – Demandava João... Ao notar o atraso de Pedro...

O novo professor suava... De falta de tempo e de espaço… Para a refeição… Para si próprio e para as emoções...

Respondeu a Ronaldo dizendo-lhe que ia tratar do assunto...

Pedro sabia que não voltaria tão cedo à sua terra natal… Seria melhor desenrascar-se de outra forma... Depois se veria...

Ao longe... Luz olhava Pedro com um ar sério... Um pouco parecida com Saudade…

As colegas atravessaram o refeitório... Saindo da tal sala privada…

Elisa... Júlia e Martinha... Olharam-no com alguma repulsa pela sua atitude... O novo professor sentiu alguma antipatia no ar...

Porém… Carla... A terapeuta da fala e Telma cumprimentaram-no com simpatia...

Irene e Dora haviam ficado... Andavam sempre mais juntas... Afinal... Trabalhavam ambas nas oficinas... Isto é... No piso de baixo…

Do outro lado do balcão Preta e Bela conversavam com Leontina... Numa galhofa monumental... Cá fora... Saudade permanecia mal-encarada... E estranhamente... Luz também...

Nessa tarde... Pedro observou os alunos na totalidade... Nas actividades de expressão... Nas suas brincadeiras e conversas…

Na sua cabeça iam aparecendo ideias…

Aos poucos... Conseguiu delinear uma série de metas e de estratégias com vista à ocupação dos alunos... Actividades formativas e preparatórias para uma futura integração... Áreas vocacionais internas e externas... Actividades que possibilitassem uma transição para a vida activa consertada e eficaz...

Nesse dia... Ainda teve Rafael... O último dos alunos multideficientes... Rafa para os pais e para escola…

De olhar disperso e firme... O aluno de corpo grande para as capacidades... Atraso mental... Carência de comunicação... Membros flácidos e sem cor... Entorpecimento quase total... Dependia completamente para comer... Beber e defecar…

A fralda era demasiado grande... O choro era doente e atormentador... A música convidava-o ao riso e à alegria… Por meio de ruídos salteados e ao acaso... Aos olhos de quem não sabe… Ou desconhece… O que este tem na alma...

O novo professor falou com Dona Filó... Tomaram um café numa pastelaria local… Marcou uma reunião geral para segunda-feira da semana seguinte... Ela apenas lhe perguntou se haviam muitas mudanças…

Pedro engoliu em seco... Mas... Respondeu afirmativamente... A mulher sorriu amorosamente... Afirmando:

- Acho bem! Precisamos de mudar!

Nessa noite... O novo professor estava exausto com o final da semana... Adormeceu no enorme terraço... Sentado numa cadeira de esplanada... Enquanto olhava a lua e pensava na vida... Na família e no seu conforto... Na solidão que vivia... No amanhã...

António Pedro Santos

(Continua)...