A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando
XXVIII
Desde que o professor chegara ao colégio... Muita coisa havia mudado… Uma das quais prendia-se com a integração dos alunos na comunidade envolvente…
Periodicamente... Pedro levava-os à biblioteca municipal...
Em pequenos grupos... Passeavam-se pelas ruas e visitavam pequenas lojas e oficinas…
Um trabalho que Pedro começou a fazer desde que chegara àquela cidade... Protocolos orais com pessoas simples... Trabalhadores e habitantes da cidade... Que permitiam uma articulação sustentada... Entre a escola e sociedade...
Começaram a vencer-se pequenas barreiras... A maioria dos alunos aprenderam a ser mais seguros e comunicativos... Cumprimentando as pessoas na rua ou nos locais que visitavam... Coisa que Pedro fazia questão...
Por vezes... Incumbia-os de tarefas simples... Obrigando-os a fazer pequenos recados... Dizer frases rudimentares... Tornando-os mais sociáveis e simpáticos...
Um treino que rapidamente trouxe frutos... Aos poucos... Passaram a olhá-los com outros olhos... Aceitando e respeitando as suas diferenças...
Numa dessas saídas... Numa sexta-feira de manhã... Deslocaram-se a um parque municipal…
A muito custo... Pedro conseguiu que saíssem todos os alunos e quase todos os funcionários... Faltaram Júlia... O pessoal da cozinha e Luz... E é claro... Dona Filó...
Por entre muitos murmúrios e lamentos das suas colegas... Lá foram...
O professor estruturou uma grande fila... Onde... Os alunos mais velhos e afoitos... Auxiliavam no controlo da mesma…
Na frente… Com Carlos e Virgílio ao seu lado… Pedro comandava as operações...
Rosa... Patrícia e Cláudia... Ajudavam Telma e Saudade com os alunos da sala de estimulação global um... Revezando-se no deslocamento das cadeiras de rodas...
Leontina foi de carrinha com Mário... Não fosse ser necessário o transporte imediato de algum dos alunos... Ou de alguém... Como justificou Pedro... Ridicularizando o facto perante algumas colegas...
A comunidade humana parava... Contemplando aquela estranha paisagem... Humanizada e diferente... De caras pálidas e rostos amorfos... Corpos estranhos andando desajeitados... Repletos de expressões impávidas ou demasiado contentes... Numa brancura aparente que agravava a tristeza de quase nada... Ilusões... Sonhos... Que pelas ruas rompiam tabus... Há muito tempo encarcerados…
Sorridentes e bem dispostos… Pareciam funcionar finalmente como um grupo... Ainda que pouco homogéneo... Porém... Unido...
O professor fez um sinal a Carla... A terapeuta da fala... Para que o substituísse na liderança... E passou revista ao grupo... Parando e confraternizando com os alunos à medida que circulava…
Radiantes... Os alunos... Agrupados dois a dois e por vezes três a três... Clamavam pela sua atenção...
Lá estavam Bebé e Cristina... Ramos... Raquel e Fábio... Filipe e Carrapito... Todos quiseram um beijo... Pedro teve de os beijar a todos…
Seguidamente... Martinha... Com Roberto... Teófilo... Ana e Luís... E mais alguns... Como… Ilda de mão dada com Hélio... Ronaldo e Maura... Os dois clones... Que bastava que engrenassem para se deslocarem... Samuel... Angela de mão dada com Tatiana... Entremostrando ao professor que a estava a dar conta da tarefa... Sem qualquer dificuldade... Numa tentativa constante em ser como os adultos normais... Enfim... Todos o cumprimentaram...
- Vamos jogar à bola? – Gritou Roberto... Arregalando os olhos para o seu professor...
Pedro respondeu afirmativamente e seguiu... Efectuando um aceno de despedida com o braço...
Atrás... Estava Telma... Com Ruben... Rosa... Patrícia e Cláudia... Traziam os restantes... Bento... Salvador e Miguel...
O professor falou para estes quatro alunos e tocou-lhes... Todos reagiram positivamente... À excepção de Ruben que efectuou um ruído enorme...
- É sempre assim! - Exclamou Telma... – Não é por ser contigo! – Acrescentou gaguejando... E brincando... Desenhando com os lábios um sorriso docemente suave...
E quem sabe... Se não seria esta... A sua forma de responder com agrado a um cumprimento ou um afago...
Rafael vinha com Saudade... Próxima de Elisa... Ambas carrancudas e mal dispostas...
O professor cumprimentou-as com extrema educação... Num acto de pura encenação... Ao que estas tiveram de responder com agrado e civilidade...
- Vamos passear? – Questionou Pedro... Dirigindo-se a Rafael... Que com os olhos muito abertos e rosto muito pálido... Pareceu rodopiar a cabeça... Numa inconstância de actos e de acções... Perdidos e ao acaso...
- Isto é muito complicado! – Desabafou Elisa... De mão dada com Andreia...
- Nada se faz sem trabalho! – Exclamou Pedro... Dando um beijo a Andreia e falando-lhe... Como se Elisa não existisse...
Andreia era uma miúda complicada... Contudo... Elisa estava a ser ajudada de perto por Dora...
De repente... O professor foi abraçado violentamente por Sónia... Que sem medir a sua força... Reagiu ao intento de lhe dar um beijo…
As colegas de Pedro riram-se... Este beijou-a e falou-lhe um pouco... Levando-a com ele…
Por fim... Vinha Irene... De mão dada com Zé... Que até vinha calmo... Talvez... Surpreso pelo ambiente exterior... Completamente diferente do interior das paredes do colégio ou da sua casa... Coisa pouca e única que conhecia... Contemplando a cidade com toda a atenção do mundo…
Irene confidenciou ao professor... Que este tipo de saída estava a ser muito positivo... Sobretudo para Zé... O qual se aproximou de Pedro e lhe segurou delicadamente na cabeça... Abaixando-a para si e beijando-o na testa…
Sónia ficou com ciúmes e barafustou... Emitindo sons e gesticulando...
- Anda Sónia! – Ordenou João... Estendendo-lhe a mão...
Sónia foi contrariada... Contudo... Enviou imensos beijos para Pedro... Com o vento...
Sarita e Bruninho vinham mais devagar... O excesso de peso... Fazia-os suar...
- Como estão os meus amigos?
- Tudo bem! – Respondeu Sarita... Com voz ameninada… Empregando em cada passada... A lentidão do seu grande esforço... Penoso e doloroso...
Ao longe... Carlos acenava... Apontando Roberto... Que pisava a estrada... Imediatamente... Pedro gritou:
- Todos no passeio! Ninguém sai do passeio! Dois a dois!
O grito do professor... Fez-se ouvir na enorme rua... E captou a atenção dos transeuntes que por lá circulavam... Alguns pararam e olharam-no…
Pedro saudava-os e lembrava constantemente ao seu grupo:
- Não se esqueçam de cumprimentar as pessoas!
Por entre o grupo... Virgílio furou até chegar a Pedro... Que gaguejando... De olhar vesgo... Repetindo o movimento curto e repentino do sobrolho e da boca... Comunicou:
- A Carla disse para irmos por outro caminho! É mais perto!
O professor seguiu-o... Pedindo aos alunos que continuassem... Prometendo que voltaria de imediato... Sónia irritou-se e chorou em alto e bom som... Abraçando-se com tristeza a João... Gritando em completo desalento:
-Popêeeeeeeeeeeeeeeeee!...
Uma mágoa que deplorou nas suas lágrimas e ruídos...
Ao chegar à linha da frente... Carla sugeriu um percurso mais directo pela zona mais velha e menos movimentada da cidade... Pedro concordou e rapidamente encaminharam os alunos para um novo percurso...
Estes tiveram oportunidade de contactar com a parte mais envelhecida da cidade… Decorada de lojas e casas mais tradicionais... Que enchiam aquele cenário com muito mais cor...
As pessoas... Continuavam a olhá-los... Encantadas por verificar tanta juventude e boa disposição... Perante os rostos alegres que sonorizavam as ruas com música e canções da moda...
Antigas e sem passeio... As estradas... Forradas a paralelepípedo nem sempre tinham trânsito... Nem tão pouco estacionamento... Por vezes... Os viajantes e os distribuidores tinham de entrar com carrinhas e pequenos camiões... Para abastecer as lojas do comércio mais tradicional...
Foi isso que aconteceu... Um veículo atravessado no meio da estrada abastecia um pequeno comércio...
Alunos e adultos contornaram-no sem dificuldade... Passando junto à parede... Até as cadeiras de rodas conseguiram passar... Isto porque... Os alunos eram leves... O que permitiu que se efectuasse uma ou outra manobra de ajuste…
Ainda assim... Irene chamou pelo professor... Infelizmente Sarita não cabia na curta passagem...
Amargurada... Sentou-se num patamar...
Do outro lado... Bruno olhava-a entristecido... Assim como todo o grupo... Que parara por momentos...
No rosto de Sarita... Uma lágrima escorreu silenciosamente... Num concentrado líquido de desconsolo...
- Eu vou com ela dar a volta! – Exclamou Irene... Abraçando-a amorosamente...
Sarita olhava para o chão... Perdida como tantas outras vezes na indiferença dos outros... E ergueu-se para acompanhar Irene...
O professor contemplou a aluna e fez-lhe uma festa no seu rosto adiposo... A sua amargura magoou-o por dentro... E saiu dali...
Entrou num café e perguntou bem alto:
- Bom dia! De quem é aquele carro?
Toda a gente o olhou... Uma senhora idosa esticou o pescoço para o ver melhor...
- Incomoda? – Questionou um senhor de meia idade... Sem o olhar... Enquanto tomava o pequeno almoço tranquilamente...
- Venha ver você mesmo! – Pediu Pedro... Saindo para fora...
De pé... Sarita levantara um pouco a cabeça... Abraçada a Irene... Que com doçura a amparava...
O resto do grupo aguardava o desenlace da coisa... Sobretudo Bruno... Do outro lado... Bem junto à viatura estacionada...
- Mas afinal o que se passa? – Interrogou o homem... Puxando as calças para cima à saída do café... – Quem é que não consegue passar?
O professor olhou-o afincadamente... E com um gesto discreto indicou-lhe a sua aluna...
Subitamente... O tal homem de meia idade... Que ainda há pouco tomava o pequeno almoço com tranquilidade... E... De uma forma imediata… Mudou a sua feição... Interiorizando o que estava à vista com alguma vergonha e embaraço...
Imediatamente pediu desculpa e entrou na viatura... Desaparecendo dali...
Os alunos gritaram e aplaudiram este acto... Gritando vivas a Pedro e Sarita... Que agora tinha o caminho livre... Bruno confortou a colega... Assim como Maura... Raquel e Ilda…
Pedro foi abraçado violentamente por Sónia... Filipe e Bebé... E outros mais…
Muitas das pessoas vieram à janela... Assomar-se da situação... Talvez… Para ver o que seria aquela algazarra que por ali se vivia... Todos os alunos congratulando o docente... Como se este fosse uma figura pública... E na verdade... Era muito mais que isso para aquelas crianças e jovens... Muito pouco cativadas pelas celebridades...
As colegas de Pedro ajudavam-no a libertar-se dos alunos... Ordenando-os de novo na fila... Mas estava difícil...
O professor escapou-se e trepou a uma caixa de electricidade... Gritando:
- Todos em fila! Como estava! Vamos para o parque!... Hoje a cidade é nossa!
Os alunos explodiram numa ovação... Assim como algumas colegas e até as velhotas que assistiam nas janelas àquele estranho espectáculo...
- Bonitão! – Apregoou Maura... Esganiçando a voz... Ao mesmo tempo... Sónia clamava por Popê... Ao afastar-se em lágrimas... Como se fosse a última vez...
O grupo reorganizou-se e continuou a jornada até ao parque da cidade...
Para além do desporto... Que posteriormente fizeram… Tiveram oportunidade de passear e de contactar com parte da vida real... Uma experiência deveras enriquecedora...
Durante o lanche... Pedro pediu ao concessionário do café do parque... Se podiam usar a esplanada... Este acedeu…
Só que… Desta vez… Sarita também não cabia nas cadeiras de plástico... Ainda assim... O homem do café resolveu a situação com um barril de imperial e uma tábua...
- Não te preocupes minha querida! Não é a primeira vez que acontece! – Disse Pedro... Confortando a sua aluna e piscando o olho ao funcionário...
- É verdade! – Afirmou o senhor do café... – Já cá tive pessoas muito mais fortes que tu!...
Enfim... Deu para Sarita sorrir...
No regresso... Alguns dos alunos regressaram com Leontina... Os restantes... Mais descontraídos e cansados... Pareciam mais homogéneos e amigos... Uma parecença indiscutível que contagiava qualquer pessoa... Qualquer traço da arquitectura quadradona... Ou sentimento mais imprudente... À sua passagem...
António Pedro Santos
(Continua)...