A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando
XXXII
O fim do dia no terraço…
Nas tais águas furtadas… Pedro aquecia o coração solitário com um pouco de cor… Arejado pelo ambiente… Siderava-se na paisagem… Provinciana… Ainda assim… Citadina… No ruído do final do dia… Cansativo e disperso… O término das gentes que agora se recolhiam… Face ao sentido de esgotamento dos corpos…
Na companhia de um cigarro… Desfrutava com todo o prazer… Olhando o rio ao longe… A entrar à força no mar… Numa mistura de fluídos… De requinte e de salvação…
A guitarra também lá estava…
Aos poucos… Pedro intermediava por ambos… O cigarro e o instrumento… Numa ode ao desassossego… De quem tempera a alma acinzentada… Com um pouco de brilho….
Os acordes fluíam sem pressa… O fumo do tabaco explodia… Num desabafo do corpo… Refeito da sua necessidade… De lá para cá e… De cá para lá…
No meio de toda a inspiração… A génese criadora surpreendia… Com virtuosismo e um pouco de loucura...
Aberto aos recados de Elisa… Aprendiz dos risos dos alunos… Com o charme natural de Luz... Ou... O cheiro provocante de Leontina… No encontro da realidade de dois mundos... Completamente distintos... Onde um grupo de jovens parecia completamente desalinhado e à margem da sociedade...
Na ignorância das pessoas que na rua os olhavam… No diz que disse dos que... Eventualmente... Pensam ser diferentes... Ou abençoados por uma inteligência sobrenatural...
No alheamento de Miguel... No mundo limitadíssimo de Rafael... A luta diária de Salvador... Que teimava sempre em andar... Ou tentar... Ainda que não conseguisse... Ou o grito de revolta de Ruben... Demasiado marcado pelo destrato social... O medo... A ira e o abandono...
O zelo de Carrapito... Para com Filipe... A organização de Bebé… A mão amiga de Sarita... Ou o jeito de ser de Carlos... João e Mário... Na perda de contacto com a realidade exterior de Teófilo ou Zé... Quase... Ou simplesmente à parte...
O desleixe... A negligência... Familiar e escolar... Para com Patrícia... Rosa... Cláudia... Luís e Roberto... E mais... Muito mais...
Nas vocalizações de Cristina... Completamente fechada em si... Não por ela própria... Mas por todos... Ainda que... Se tentasse libertar... Criando alguém imaginário... Companhia... Amiga e doce... Sempre presente para si...
Pedro desenhava notas no braço da guitarra... Sentidas... Porém... Ao acaso...
Viu a cumplicidade de Dora e de Irene… Amigas… Colegas… Limitadas… Contudo… Aplicadas… Esforçadas em melhorar… Em aprender…. Para lá da cagança de Elisa… Só comparável aos palavrões de Bela… Face ao rosto envergonhado de Preta… Que condenava tais actos…
Da gaguez de Telma… Ou a maldade de Saudade… Enfim… Na esperança de dona Filó… De Carla e de Martinha…
Na chegada atribulada… Na aceitação… Atenção e vigilância… De Luz… De curvas magas… Sempre bela… Ainda que prisioneira… Tal como os alunos… De uma sociedade… Que no fundo… A obrigava a ser assim… Casada e infeliz… Dançando sobre si mesma… Ao sabor da vida… Abrilhantada… Por vestidos coloridos… Cheiros provocantes de desejo… A braços com Leontina… Também soberba ao seu jeito… Doce… Mélico e sensual… Capaz de tomar um qualquer homem de assalto… Se fosse essa a sua vontade…
Pedro pára de tocar e atira com o cigarro… Do terraço para o mundo…
Em silêncio… Recorda-se do mutismo selectivo de Ana… Tudo o que vira… Passara e guardara para si própria… Numa prisão de um ser que consigo mesmo se revolta… Recusando-se a pronunciar… Um som que seja…
O professor procura uma folha solta e regista um tributo a todos eles… Vítimas de uma sociedade que os esqueceu… Depositando-os… Crianças… Jovens e adultos… Num hospício que cultiva a diferença… A segregação e a loucura…
Escreve a letra… Dedilha e canta…
A minha vida é um traço de calor... Que começa e termina onde acaba a dor...
À procura do sol... Uma vida por um dia...
À procura do sol... Era tudo o que eu pedia...
Que eu não levo a mal... Não ser igual...
Uma vida incompleta e distante... Um sorriso amargo e sujo como dantes...
À procura do sol... Uma vida por um dia...
À procura do sol... Era tudo o que eu pedia...
Que eu não levo a mal... Não ser igual...
Esta vida desgostosa e banal... Faz sentir-me um tanto ou quanto antisocial...
À procura do sol... Uma vida por um dia...
À procura do sol... Era tudo o que eu pedia...
Que eu não levo a mal... Não ser igual...
Acende outro cigarro... Relê a canção e interioriza-a...
Chama-lhe: “Uma vida por um dia”...
Siderado com o que escrevera... Pensa no que pode fazer com a canção... Na sua utilidade e aplicação... E divaga um pouco...
Imagina-se a cantá-la aos seus alunos... Ensiná-los... Ensaiá-los e pô-los a cantar para alguém... Numa festa... Num espectáculo... Quem sabe até numa cassete... Tanta coisa... Enfim...
O cigarro queima-lhe os dedos... Na verdade... Mal o fumara...
Crava-lhe os dedos para que desapareça... Esticando o braço... Mas hesita... E já não o atira do terraço para o mundo...
Em vez disso sorri... Apaga-o no chão e coloca-o no lixo… Afinal… Há que começar uma limpeza social… E esta… Deve começar com pequenos gestos…
António Pedro Santos
(Continua)...