A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando
XL
No final do dia no terraço...
O vento soprava forte e o frio começava a aparecer... Aos poucos... Aquela cidade transfigurava-se e transformava-se num local diferente... Em tons de cinzento escuro... Como uma fotografia antiga... Comida e desfeita pelo tempo... A braços com a mudança natural do ambiente... Próprio da estação... Ao longe o rio... Desembocando no mar...
Os seus dedos deslizavam na guitarra... Com naturalidade e subtileza...
Distante dali... Mas perto... O ar pesado de Carlos... Demasiado anafado e aprisionado no seu corpo... Rosto fustigado de alguém que quer um lugar numa família que não é a sua... Mas antes.. Um serpentear de emoções que se escondem para lá da sua própria identidade...
Acolhido por uma família pouco funcional... Aliás... Como a maioria... Que o usava em casa... A bem de um subsídio... Ou melhor... Da integração e inclusão... Cuidando dos sobrinhos... Que não eram verdadeiramente seus... Limpando e até reparando o que pudesse estar estragado... Até porque... Jeito ele tinha...
Num atraso que era só seu e para si... Pelo menos ali... Para isso ele servia... Para pensar e decidir é que não... Havia quem o fizesse por ele...
Os acordes saíam... Tal como o fumo do cigarro... Brando e monocórdico... Que se perdia no ar com facilidade... Misturando-se... Como os demais...
Como Cristina... Por entre os afastamentos naturais da sua síndrome... Cambaleava entre a escola e a sua casa... Parqueada e encorajada para viver um mundo infantil... Desalinhado e desvirtuado da sua real idade...
Roupa colorida... Mala cheia de bonecos... De brincadeiras muito escassas... Sonorizada por “Runs Runs”... Rodopiando estagnada os olhos pelo nariz...
Uma brincadeira intima e só sua... Com a sua melhor amiga... Imaginária e inexistente... Encorajando-se e censurando os seus próprios comportamentos e atitudes... Talvez a medo... Amedrontada pela sua condição e pela confusão do sitio... Imponente e impreciso... À sua dimensão... Quase insignificante para o mundo... Num espaço onde colegas corriam... Gritavam e choravam... Em saltos e movimentos bruscos...
Olhos amendoados... Prega palmar transversal... Ou simiesca... Dedos muito curtos e fissuras palpebrais oblíquas... Língua protrusa ou saliente demais... Cavidade oral pequena e ponte nasal achatada... Manchas de brushfield... Ou pontos esbranquiçados na íris...
Flexibilidade excessiva... Pescoço quase inexistente e problemas cardíacos... Era este o apanágio da trissomia vinte um...
Ainda assim e embora parecidos... Todos diferentes uns dos outros pela genética que carregam dos seus pais e que influencia o seu aspecto e aparência...
Carrapito zeloso... Sempre auxiliando Filipe... Num instinto protector e de amizade... Que abundava de ternura... Cuidado e dedicação em excesso... Que o seu amigo sabia aproveitar como ninguém...
Gostava de se colocar à parte... Distante e silencioso e evidenciava timidez...
Quando sozinho... O seu olhar magoado e ausente... Encontrava a imensidão do planeta... Contemplando-o conformado e resignado...
Costumava observar o professor... Como se o estivesse a examinar...
Pedro percebia-o pelo canto do olho... E quando o encarava... Carrapito desviava o olhar... Fugindo como sempre...
Face alongada e orelhas enormes... Fraco tónus muscular... Ou estado de tensão do músculo... Testículos grandes... Por vezes com estereotipias... Para além da timidez e contacto limitado frequentes...
Nos seus traços característicos do x frágil... Não passava de um filho de um pescador humilde... Preocupado com o seu descendente... Carente de informação e conhecimento... Afinal... Quem é que está devidamente elucidado e preparado para ter um filho assim?...
Por vezes... Nos intervalos... Pedro via-o sentado ao lado de Cristina... Olhavam-se e pareciam conversar... Aconteciam risos e pequenas palavras... A verdade é que comunicavam... Ainda que... À maneira deles... Muito própria e peculiar...
Era deslumbrante olhá-los...
Sarita... Com a sua problemática... Prader willi... Cujas características são atraso mental e hipotonia... Ou flacidez... Aspecto infantil... Obesidade e problemas ao nível do sistema reprodutor...
Curiosamente... Costumam apresentar uma dificuldade gravíssima em controlar a fome... Tecnicamente chamada polifagia... Comendo tudo e a toda hora... A verdade é que Sarita andava sempre carregada de gomas e rebuçados...
Protectora de Maura e Raquel... Amigas e companheiras que a seguiam e escutavam sempre...
A primeira demasiado ameninada para o seu corpo extremamente desenvolvido... Aparência de senhora de idade... Gorducha e amarrecada... Postura envelhecida e gasta... Semblante expressivo de um rosto imensamente delicado...
Raquel era magríssima e escanzelada... Falava depressa demais e comia a maioria das palavras... Atravancando-se de saliva que saia ao crescer da conversa... E do nervosismo... Numa transmutação digna de um exorcismo... Ou acto de fazer jurar...
Reza... Oração... Cantilena... Ritual para limpar os corpos de encostos e espíritos... Extravasando os seus medos e amiudando os seus receios e inseguranças... Recuos e frustrações... Por vezes... Chegava a revirar os olhos...
Quando se enervava e Pedro a acudia... Cravava-lhe as unhas na carne... Depois... Ficava num pranto agitado... Pois não queria magoar o professor... E ele sabia-o...
Sarita fazia de tudo para que estas se sentissem apoiadas... Acalmava-as... Mediando e intermediando conflitos... Ou até... Outro tipo de situações...
Era no fundo uma líder... Transmitia ordem... Calma e apoio...
O cigarro acabara... Afinal... O vento fumara-o todo... Enquanto isso... Pedro espreitava para dentro do colégio...
Mário era um aluno exemplar... Um bastião da responsabilidade e da ascendência... Pelo menos... Para os seus colegas... Como João ou Bruninho... E até Ronaldo...
Um laço de amizade que superava atrasos... Necessidades ou limitações... Síndromes e até problemáticas...
Como um todo... Único e global... Onde a ternura... Afecto e a proximidade se uniam e valiam... Sem pressões e de uma forma natural...
Conversavam acerca de coisas que não eram normais... Enfim... Mário falava razoavelmente bem... Os outros nem por isso... Por vezes eram cumprimentos... Sins e nãos... Assim como outras verbalizações... Misturadas com sorrisos e expressões...
Eram estas as suas conversas... Parcas... Repetitivas e enfadonhas... Porém imperiosas...
Os acordes saíam naturalmente... Preenchendo como banda sonora... A divagação do professor... Por entre a paisagem que parecia revoltar-se... Tal como os seus pensamentos... Vivos e remexidos...
Ana não falava... Carregava um mutismo selectivo... Que tem como características principais eleger e seleccionar...
Um transtorno psicológico em que há recusa total de falar... Seja com pessoas ou apenas em determinadas situações...
Uma das maiores causas desta alteração... Pode estar na família... Nos chamados factores ambientais... Isto é... Tudo o que rodeia a aluna... Sejam... Experiências negativas... Violência ou decepções...
Mário... O seu irmão... Assegurava que em casa ela falava correctamente...
O núcleo familiar era intragável... Segundo a má língua... A mãe... Andava na prostituição e o pai era um pobre coitado que não tinha onde cair morto...
Vezes sem conta... Pedro perguntou-se a si mesmo... O que será que foi que ela viu?... O que será que viveu?... Que sofrimento era aquele... Tão angustiante e profundo... Ao ponto de calar uma voz?...
Patrícia... Rosa e Cláudia... Apoiavam-na... Permitindo que esta as acompanhasse... Aliás... De uma forma inata... Forçavam-na a agir e a andar junto delas...
As quatro alunas eram mulheres... Ou melhor dizendo... Já eram mulheres...
Atrasadas... Contudo fêmeas... E já olhavam os rapazes com mais atenção do que eles as olhavam... Assim como os adultos...
Provinham de ambientes muito pobres e desfavorecidos... Bairros da lata... Onde eram escravas das famílias... Empregadas domésticas que cuidavam de irmãos... Primos e velhos...
Pedro duvidava da virgindade de qualquer uma delas... Aliás... Estava certo que algum familiar... Vizinho ou suposto amigo... Já tinha feito o serviço... Afinal... Esta é uma situação agradável para muita boa gente... E para além disso... Faz parte de um universo de taras há muito globalizadas... Ou seja... Abusar de alguém que não domina as suas capacidades mentais...
Infelizmente... Os actos sexuais praticados contra crianças e jovens com deficiência são muito comuns...
Como tal... Era fundamental que se implementassem políticas que permitissem que estas crianças e jovens vivessem em segurança e com a dignidade merecida... Através de vigilância... Assistência e acompanhamento social... Ou até... Algumas mudanças ao nível da legislação... Para que não ficassem impunes este tipo de crimes...
Para além disto... A educação sexual deveria ser um desígnio das escolas e da sociedade em geral... Pois ainda existem muitos atrasos de informação e conceitos excessivamente retrógrados...
Um trabalho conjunto entre encarregados de educação... Professores e técnicos... Meios de comunicação e instituições do estado... No sentido de possibilitar um maior esclarecimento nesta área... Favorecendo assim um desenvolvimento mais harmonioso e saudável...
Uma discussão sempre difícil porque falamos do corpo e da nossa intimidade... De sentimentos e emoções de cada um...
Os deficientes intelectuais ou mentais... São na sua maioria sexuados e sexualmente activos... Quero dizer... Todos querem namorar e casar... Ter filhos e fazer todas as coisas supostamente comuns... Necessitando por isso... De expressar a sua sensibilidade de uma forma muito própria e livre...
Porém... É comum que pais e restante sociedade... Abafem desejos e determinados comportamentos... Abrindo lugar ao preconceito e à discriminação... Concepção em desuso e completamente ultrapassada... Isto porque... Uma sexualidade devidamente esclarecida poderá proporcionar um melhor e mais eficaz crescimento afectivo e social...
É de extrema importância o simples facto de os aconselhar... Ou ajudar a saber separar os comportamentos que não são convenientes... Por exemplo... Falar da masturbação como acto intimo que não deve ser realizado em público...
A educação sexual neste tipo de alunos melhora a sua auto estima de um modo quase milagreiro... Isto porque... Promove atitudes positivas face a sentimentos que possam eventualmente sentir... Eleva a responsabilidade e a compreensão acerca de uma temática ainda tabu para muita gente... Também melhora a comunicação e a autonomia...
É indispensável compreender o corpo e o seu crescimento inerente... Apreender um pouco acerca das relações entre as pessoas... Assim como... Perceber o que é a reprodução e o que representam os sinais da sexualidade de cada um...
A integração destas pessoas na sociedade... Também as expõe a situações que poderão ser de risco... Desta forma... É essencial um trabalho conjunto entre pais... Escola e comunidade... No sentido de esclarecer... Informar e auxiliar...
Virgílio... Luís e Roberto... Já possuíam vivências de vadiagem... Para além dos seus atrasos... Eram oriundos de ambientes marginais... Onde o homem mais forte batia e abusava dos mais fracos... Mulheres... Crianças e velhos... Os filhos cresciam ao abandono e não se estreitavam laços familiares normais...
Martinha teve sempre uma grande influência nestes casos... Fazendo a ponte entre as atitudes a ter em grupo e na vida em sociedade... Ainda que não as vissem ou vivessem em casa...
Por outro lado.. Pedro transmitia-lhes afoiteza e vontade de intervir... Valores de mudança e de participação social... No fundo... A acreditarem em si próprios... Convidando-os a ser elementos interventivos na escola... Casa e sociedade... Responsáveis e mais tolerantes... Com o poder de transformar consciências e lugares...
Nunca esquecendo que... Existindo no mundo... Podemos sempre mudá-lo...
A participação social e a cidadania caminham lado a lado... Isto é... Os indivíduos só conseguem ser cidadãos se participarem... Com disponibilidade e empenho... Motivação... Competência e democracia...
O saber agir e aprender a ser... Com atitudes e valores... Conhecer direitos e deveres... Crescer e desenvolver-se integralmente... Interferir na comunidade... Com responsabilidade... Vontade e criatividade... E sobretudo... Sem resignação...
Teófilo perdia-se na sua insegurança... Incerteza e inquietação... No seu mundo completamente autista...
Imaginação... Comunicação e interacção social... Uma tríade que o perseguia diariamente e influenciava os seus comportamentos na vida... Ainda que... Fosse espicaçado...
Nos seus momentos mortos... Ocupava-se de si próprio... Sentando-se num canto... Olhando para o chão... Porque... Muito pouco parecia ser do seu interesse...
O autismo apresenta toda uma série de comportamentos que prejudicam o desenvolvimento e a integração... Como as dificuldades de relacionamento com semelhantes... O escasso ou nenhum contacto visual... Ou o facto de adorarem estar sós e procurarem o isolamento...
Por vezes riem em situações descabidas ou fixam-se estupidamente em objectos... Alguns são completamente inertes... Outros há que são activos demais...
As pessoas com esta problemática... De um modo geral... Reagem de forma estranha à dor... Repetem palavras... Frases e assuntos... Desvalorizam o perigo e detestam o contacto físico... Apresentam pouca comunicação ou nenhuma e quase nunca respondem pelo seu nome...
Bebé cantava e dançava encantada... Tomando conta do seu espaço como ninguém... Uma ternura com todos... Extrovertida... Mas limitada... Muito circunscrita às suas dificuldades...
Vivia num mundo só seu... Mas era o nosso mundo... Fantástico... Brilhante e surreal... Onde a magia dos filmes... Das canções e da televisão... A preenchiam provisoriamente de vida...
Sempre agarrada a Pedro... O boneco... Ou então... Sem o perder de vista... Tal como o lápis amarelo de Filipe... Só seu...
A família era das melhores... Muito unida e estimuladora... Contudo... Conservavam-na menina... Doce e colorida...
Pedro começou a desenhar uma sequência de acordes... Com alguma lógica e sentido... Um blues lento e pouco ornamentado...
Canção melancólica... Carregada de angústia e tristeza... Desenhada por notas simples de frequência baixa... Numa toada expressiva e repetitiva... Vigorosa... Simples... Mas... Sensual...
Nesse momento... Recordou-se de Angela e de Ilda... As duas irmãs... Que nem se podiam ver...
Era Ilda a mais velha... Desbocada... Estridente e ruidosa... Mas mais diminuída intelectualmente... Demasiado localizada nas suas acções infantis e inocentes...
Ao contrário de toda esta energia variada e louca... Estava Angela... Tranquila e sossegada...
Olhar vesgo... Braços cruzados quase constantemente... Quem sabe observando... Quem sabe se sofrendo com a sua submissão...
Procurava inutilmente juntar-se a todos os grupos existentes na escola... Nomeadamente ao de Patrícia... Mas também aos adultos e até à irmã... Que simplesmente a desprezava...
Pedro nunca entendeu esta negação e raiva... Ninguém a queria...Todos lhe recusavam espaço ou uma simples oportunidade...
Sozinha... Solitária... Com uma angustiante sensação de vazio... desintegrada e à parte...
No fundo... Era carente... E para muitos... Uma atrasada com as hormonas aos saltos... Despindo qualquer homem com o seu olhar... Somente pelo sentido da coisa...
Já a irmã... Candidamente colegial... Estava noutra onda... Porém... Amotinava-se por tudo e por nada... Gritando e tornando-se agressiva sempre que as suas emoções mandavam...
Nessas ocasiões... Não havia muito a fazer... Era acalmar e deixar passar... Enquanto isso... Falava da sua vida e lamentava-se... Como se o mundo inteiro a perseguisse...
Uma vítima dos transtornos... Distúrbios e doenças que convivem na forma psíquica... Mental e até psiquiátrica...
Estas alterações... São demasiado amplas e abarcam campos de várias áreas disciplinares... Como a neurologia e a psicologia... A psiquiatria e até a filosofia...
Ramos vivia feliz... Contente... Sociável e bem disposto... Conversador com os mais velhos e até com estranhos...
Nasalado e fanhoso... Como se a voz lhe saísse pelo nariz...
Porque... Sempre que o palato não toca na parede da garganta... O ar acaba por passar para o nariz... Convertendo a sua sonoridade...
Sempre a afiar lápis... Que curiosamente... Desapareciam num ápice... De tanto afiar... Para nada fazer...
Constantemente carregado de totolotos... Simulando jogos e distribuindo-os por todos como se fosse um funcionário da santa casa da misericórdia... Garantindo ser portador da sorte grande...
- Olha a sorte grande! – Apregoava em alta voz...
Samuel apresentava espinha bífida... Uma malformação congénita que compromete o sistema nervoso e que se deve a um encerramento imperfeito do tubo neural...
Este aluno revelava imensas dificuldades intelectuais... Fraqueza muscular e dificuldade em controlar os esfíncteres...
Para além disto... Em alguns casos... Esta enfermidade pode causar paralisia... Perda de sensibilidade e acumulação de líquido cefalorraquidiano no cérebro... Originando lesões gravíssimas...
Existem alguns tipos de espinha bífida... Consoante a gravidade... Como a oculta... A meningocele e a mielomeningocele...
A etiologia desta patologia está directamente relacionada com factores ambientais e específicos... Como causas genéticas... Idade avançada dos progenitores... Insuficiência de ácido fólico e ingestão de álcool por parte da mãe...
Competitivo e muitas vezes alheado... Sempre procurando superar-se e ser o melhor... Por vezes... Perdia a paciência com as dificuldades dos outros... E com as suas...
Revelava ainda problemas em lidar com a critica e com o reparo... Mesmo que fosse para o seu bem... Enfim... Não fosse ele também... Um aluno especial...
O ritmo dado pela guitarra ganhava força e consistência... Pedro insistia e desaparecia do terraço...
Fábio... Da sala de estimulação global II... Tinha trissomia vinte e um ou síndrome de down...
Caminhava com dificuldade num mundo que aparentemente não era feito para si... Como a maioria dos seus colegas... Esquecidos e depositados num local afastado de todos...
Esta síndrome abarca diversas adulterações do foro genético... Como a trissomia simples... Com quarenta e sete cromossomas em todas as células... A translocação... Em que o cromossoma extra... Do par vinte e um... Fica preso a outro... Ou o mosaico... Isto é... Algumas células têm quarenta e sete cromossomas e outras quarenta e seis...
Este aluno já passava muito tempo com Pedro... Beneficiando das mesmas coisas que os da sala de escolaridade...
A verdade é que Elisa agradecia... Até porque... Por ela... Mandava-os todos para a sala de Pedro...
Na sua intimidade... Fábio só queria atenção e apoio...
Pouco falava... Mas apresentava sempre um sorriso... De aspecto demasiado frágil e simples... Andava sempre muito hirto e os seus movimentos eram arcaicos e duros...
A espasticidade ocorre quando existe um aumento do tónus muscular... Causado por uma circunstância neurológica deficiente... Neste caso... Os músculos apresentam uma desobediência à extensão e tendem a contrair... Podendo causar distrofia muscular e outros problemas mais graves...
Aos poucos... O professor trauteava uma melodia... Onde as palavras... Apareciam às vezes... Encaixando quase perfeitas... Ou por outra... Perdendo-se no ar... Como o fumo do tabaco... Sem encasamento perfeito... Pérfido e fugidio...
Sónia apresentava uma alteração gravíssima da personalidade... Para além do seu enorme atraso mental... Possuía um temperamento inconstante... Para muitos... Próximo da loucura...
Desesperava quando via o professor... Para o bem e para o mal... Chorava sempre que este se afastava... Ou quando sentia que alguém estava por perto... Conversando ou roubando a sua atenção...
Em determinadas situações... Abalroava-o sem que este desse conta... Ou simplesmente beijava-o na face... Com muita força e humidade... Afastando-se de seguida... Dizendo com dificuldade e de um modo pouco perceptível:
- Não fui eu!... – Ou... – Éh pá!..
Estranhamente... Quando se via parada... O que era mesmo muito raro... Anunciava uma tranquilidade fora do comum... Observando a conjuntura... Com postura e vigília... Contudo... Durava muito pouco... Segundos talvez... A sua capacidade de atenção e concentração eram quase inexistentes...
Às vezes berrava num pranto:
- Popê!... – Alteando o choro e o riso... Surpreendentemente... Como se fosse bipolar...
Não fosse esta condição... Uma espécie de transtorno... Com alterações de humor... Que podem ir dos sinais depressivos à euforia sem controle...
Ligava muito pouco aos conteúdos académicos e escolares... A sua atitude de mãos nos bolsos dizia tudo...
Os seus lábios batiam e a língua dava estalidos... Na constância do estado do momento... Ignorava a ordem e a responsabilidade... Mas parecia apresentar uma felicidade... E ao mesmo tempo... Uma calmaria fora do comum...
Andreia padecia de limitações muito acentuadas...
Um comprometimento geral de vários domínios essenciais... Como a cognição... A comunicação... O motor e o sensorial...
Completamente espástica... Tal como Fábio... Com hipertonia... Ou seja... Um incremento desigual do tónus muscular e consequente redução da sua capacidade de distensão... Onde o corpo se comporta de um modo bastante discrepante do que é habitual... Como se não fizesse parte do mesmo ser... Pois... Quanto mais Andreia tentava realizar determinados movimentos... Mais aumentava a espasticidade... Tornando-os desagradáveis... Compassados e completamente desgovernados...
Babava-se... Apertava as pessoas que pudesse e puxava os seus cabelos... Especialmente os compridos... Fosse de quem fosse...
Pedro achava que esta também era uma forma de comunicação... Ainda que... Pouco ortodoxa...
Na orelha tinha um sinal... Uma espécie de lóbulo na orelha... Algumas funcionárias falavam em dom... Divindade e espiritualidade...
Uma vez... Irene contou uma história acerca do budismo... Referindo que a maioria das estátuas do seu supremo... Apresentavam lóbulos nas orelhas... Muita gente acreditava que talvez estivessem associados à sabedoria ou a outras virtudes...
Arrastava-se pela escola... Quase sempre com um sorriso no rosto... Lerdo... Infantil... Desconsolado e relaxado... Eternamente ajudada por Tatiana... Uma das mais velhas do colégio... Apenas três anos mais nova do que Pedro...
Esta.. Emitia sons graves... Muito assinalados e hediondos... O seu timbre era baixo e demasiado assustador... Por vexes elevava-se... Oscilando fonemas quando menos se esperava...
A sua vocalização era muito rudimentar e tinha um olhar fixo... Todavia.. O seu semblante era disperso e vago...
Assustava muita gente... Ainda que apenas se quisesse aproximar... Dizendo simplesmente um “olá” prolongado e profundo... Com variações e oscilações...
Afagando capacidades à distância de um toque demasiado superficial... Ou demais intenso... Desequilíbrios e movimentos demasiado incipientes... Às vezes... Reacções a uma canção... A um estado de espírito... Uma emoção ou dor... Era triste e doloroso vê-la sofrer...
Tatiana passava muito mal com as dores menstruais...
Este tipo de dores... Parecem estar associadas aos espasmos uterinos causados pela libertação de determinadas substâncias... Podendo ser acompanhadas de dores de cabeça... Dificuldades de atenção e de concentração... Irritabilidade...
Nessas alturas... Tornava-se violenta e insuportável...
Por outro lado... Gostava imenso de apoiar Hélio e Andreia... Sobretudo o primeiro... Autista puro...
Uma total... Ou quase total falta de contacto com o mundo exterior... Um grau de severidade que o impedia de realizar a maioria das tarefas e actividades diárias... Como comer ou vestir-se...
Falta de interesse pelo que o rodeia... Alheamento imenso e maior... Impossibilidade de comunicação... Seja verbal ou outra... Ainda que nos entenda ou compreenda... Não consegue porém... Exprimir-se como nós...
Com ele... Eram trabalhadas algumas formas de comunicação diferentes... Os chamados sistemas alternativos e aumentativos de comunicação... Todavia... O aluno era demasiado novo e para a maioria dos técnicos e professor... Muito difícil de chegar...
Perdia-se nos estereótipos... No isolamento... Sempre demasiado assustado... Sem os olhar... Repetindo movimentos... Como o bater das palmas com os pulsos... Ou encenando expressões duras... Anacrónicas e rígidas...
Os irmãos clones... Eram quase iguais...
Tal como na clonagem... Que não é mais do que a produção de indivíduos geneticamente iguais... Ou... Várias cópias de um mesmo produto...
Estacionavam onde quer que os deixassem... Vocalizavam e até cantavam... Enfim... Estranhamente... Sons arcaicos e muito básicos... Ecos de adulto perdidos em corpos escanzelados e inocentes... Parcos em juízo...
Enxergavam os outros com posturas e movimentos primários... Como e fossem macaquinhos...
O seu andar era anormal... Locomoção obsoleta e enfezada... Mãos e braços encolhidos... Virados para a frente... Estagnados e mecanizados...
Com atrofia dos músculos... Ou distrofia muscular... Enfermidade que envolve a degeneração da membrana que envolve a célula muscular... Afectando músculos e originando fraqueza...
Definhamentos... Debilidades e distrofias... Que variam consoante os sinais e sintomas... A intensidade e o grupo muscular comprometido...
Toda uma série de diferenças que se excluem e complementam... Variando as denominações com a etiologia... A zona afectada e o nome de quem a estudou...
Numa das suas investigações... Pedro aprendeu uma das características mais interessantes apresentada por este tipo de alunos... Que sofrem de distrofia... O sinal de gowers... Ou melhor... O conjunto de movimentos e apoios particulares... Apresentados por estes quando se levantam do chão...
Zé corria pela escola de um lado para o outro... Sem se importar com quem ou o que quer que fosse...
Subia e descia obstáculos... Ficava no ponto mais alto do colégio... Como se fosse um presidiário no seu claustro... Cadeia ou clausura... Olhando o infinito... A liberdade... O além...
Como um marginal da sociedade... Encarcerado... Castigado e exilado... Tal como o cárcere normal... Para orientar... Reencaminhar e reeducar...
Depois arrancava para mais uma corrida... Sem parar... Ou melhor... Quando se quedava... Simulava um palco... Com o microfone... Objecto inseparável...
Quase não se escutava... Falava e refraseava muito baixo... Timbre grosso... Uma voz agradavelmente grave e máscula... Gemia num sussurro... Variando os tons e a intensidade... Porém imperceptível...
Aproximava-se pouco das pessoas... Fossem adultos ou colegas... Por vezes era só uma festa... Um toque ou uma caricia...
Gostava de beijar Pedro na testa... Sem oscular... Apenas encostando os lábios...
O professor apanha um papel... Começa a registar a canção... A letra fluía naturalmente... Na inspiração dos sons... Vivências e imagens...
Na alegria de Salvador... Que se deslocava por onde pudesse... Rindo... Sempre rindo... Aparência feliz ainda com todas as suas limitações...
Miguel... Atónito viajante... Talvez atento... Ou quem sabe não... Disperso e concentrado nas suas coisas... Sorrindo sempre que perdia o equilíbrio e caía desamparado e só...
Bento e Rafael... Impávidos e serenos... Chorando... Rindo... Defecando e comendo... Sem mais nada que isto... Nem uma palavra... Um beijo ou um abraço...
Era esta a comunicação de que dispunham... Olhares que não pareciam... Mas que... Eram de facto alguém... Que esperava e estava...
Não fosse a multideficiência um conceito que compreende várias limitações... Em vários âmbitos e domínios... Físico... Psíquico ou sensorial... Duas ou mais... Sendo que a cognição está sempre presente e naturalmente comprometida...
Para além disto... Associa deficiências e cada caso apresenta características muito próprias e particulares... Influenciando o crescimento global comum...
Desta forma... Necessitam de uma atenção e cuidados muito particulares... Para melhorar a sua qualidade de vida... Funcionalidade e desenvolvimento das suas capacidades...
Ruben... Que se soltava rumo à sua liberdade... Com grunhidos fortes... Para lá do imaginário humano...
Corpos de criança... Carcaças... Velhas e decompostas... Sofridas e castigadas... Causadas por alguém... Fosse terreno... Negligente ou ignorante... Nos abusos dos pais... No descuido da gravidez e do parto... Nos acidentes...
Fosse na vontade de um ser maior... Atento e amigo... Que olha por todos nós de um modo diferente... Enfim... Crença... Ou... Depravação de consciências depravadas...
A deficiência intelectual pode surgir de diversas causas... Sejam genéticas... Durante a gravidez ou parto... Ou depois do parto...
Cromossomas e genes... Factores hereditários... Drogas e medicamentos... Tabaco... Álcool e doenças... Bactérias e vírus... Malformações e traumatismos... Desnutrição e maus tratos... Meningites... Causas externas e internas...
Uma panóplia de acontecimentos banais ou de especificidade conhecida... Que castigam e entregam à imperfeição e à moléstia... Seres vivos que deixam de gozar de direitos... Vontades... Desejos e alegrais... Por razões que lhes são ou foram completamente alheias...
Pedro lê a canção... Canta-a de novo e chama-lhe... “Ar do mar”...
Pergunto... Se a minha vida vai mudar... Estou certo... Só podem estar a brincar...
Não tenho tempo pra escola... Quero sentir o cheiro do mar...
Escuto... Toda a gente a falar... Não sou surdo... Não precisas de gritar...
Só tempo pra bola e nadar nas ondas do mar...
Encontro... Gente na rua a chorar... Insegurança... Onde é que isto vai parar...
Não vou dar tempo à má sorte... Vou pra praia ver o mar...
No final daquele dia no terraço... O dia já era noite... O vento soprava forte e frio...
O tal local diferente... Em tons de cinzento escuro... Como uma fotografia antiga... Comida e desfeita pelo tempo... Tornava-se agora costumeiro... Na rotina dos corpos que habitavam a velha cidade... Desprezando o próximo... Na ignorância de quem são...
Ao longe o rio... Desembocando no mar...
António Pedro Santos
(Continua)...