A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando
XLIII
Zé era um aluno difícil... Autista e completamente isolado dos restantes... Alheava-se e colocava-se sempre à parte... Aparentemente por opção...
Revelava problemas graves de comportamento e limitações acentuadas ao nível da comunicação... Que o impossibilitavam de ser... Pelo menos como os colegas... Que facilmente... Interagiam entre si de um modo natural...
Nas sessões de psicomotricidade o aluno ficava distante... Estacionado nos colchões... A maioria das vezes deitado... Interagindo somente consigo próprio... Divagando no seu mundo privado e peculiar... Só seu e provavelmente fantástico...
Com o tempo... Foi erguendo a cabeça e levantando o queixo... Centrado no grupo que estava em actividade... Observando os colegas em acção...
Pedro convidava-o sempre a participar e chegou a ir buscá-lo... E este... Acompanhava-o... Contudo... Rapidamente largava a mão do professor e regressava ao seu lugar... Sem qualquer razão aparente... Afagando com carinho o docente... Sempre na testa...
Também experimentou mandar alguns dos seus colegas... Como Filipe ou Carrapito... No sentido de o desafiar para a aula... Mas nada resultou...
Com o passar do tempo... E sem pressões... Foi aparecendo junto do grupo... Gradualmente e aos poucos... Aproximando-se cada vez mais... Pesquisando e examinando os exercícios...
Talvez sentisse mais vontade... Ou segurança...
Pedro percebeu... Mas não lhe ligou... Continuando a dirigir-se ao grupo... Ignorando inteiramente a sua presença...
Começou por analisar o momento... Posteriormente... Começou a realizar alguns exercícios... Duas vezes mais tarde que os outros... Isto é... Se os seus colegas estavam a rastejar... Ele ainda saltava a pés juntos... Actividade que já tinha sido realizada mais atrás... Se os colegas pontapeavam bolas... O Zé ainda trepava o espaldar... E que bem trepava... Seguro... Parecendo contudo... Descuidado...
Fisicamente... Era um aluno bem desenvolvido para a sua idade... Um pouco anafado... Todavia arrojado nos exercícios de carácter motor...
Possuía uma expressividade facial e gestual... Impares e fora do comum... Sobretudo quando se concentrava no seu pequeno mundo... Anónimo e extraordinário...
Em muitas ocasiões... O professor olhava-o e pensava... Que talvez o seu mundo não fosse tão limitado assim... Nem tão pequeno... Era provavelmente muito rico e tentador... Até porque... O aluno adorava música e vivia-a com particularidade e com alma... Ainda que... À sua maneira...
Ficava siderado sempre que o professor tocava guitarra... Ou quando ligava o rádio...
A verdade... É que... Nem sempre dançava ou cantava... Porém... Quando o fazia era como se sentisse uma verdadeira liberdade... Um desprender de correntes... Pesadas e fortes... Num arrombar de grades... Que de grossas e ferrugentas... Possibilitavam um ganho imenso de contacto... Com a realidade exterior...
Era soberbo apreciar e desfrutar do seu olhar... Tranquilo... Diferente e satisfeito...
Mais tarde... O professor aprendeu que o seu entendimento do mundo... Não era tão desigual dos restantes humanos... Ainda assim... A sua expressividade e comunicação... Comprometiam a relação com os outros... Impedindo também a sua progressão cognitiva... Motora e sócio afectiva...
Nas sessões de música... Ou musicoterapia... Começou a misturar-se... Levantando-se do chão e gesticulando na confusão dos colegas... Só para si... Com prazer... Encadeado no ritmo com alegria... Realizando vocalizações quase todas imperceptíveis...
Aos poucos a sua relação com o professor melhorou... Zé aproximava-se... Procurando simplesmente estar perto do que estava a acontecer...
Quando fugia da sua sala de referência... Iam chamar o professor para o ir buscar... Inicialmente não queria e ignorava-o por completo... Com o tempo... O docente começou a cantar... Em outras vezes... Simulava um saxofone... Um trompete... Ou uma guitarra...
Nessas ocasiões... O aluno transfigurava o seu rosto e seguia-o com prazer...
Zé desfrutava da música quando subia ao ponto mais alto da escola... Uma base elevada com uma vedação alta... Lá em cima... Dava o seu espectáculo... Encenando movimentos... Tons e canções... Coreografias... Com uma banda sonora que ele conhecia e sabia de cor... Sempre com o microfone na mão...
Fugia constantemente da educadora Elisa... Afinal... Ela nunca teve mão nele... Nem jeito... Nem tão pouco vontade de o agarrar... Ou melhor... De lhe chegar... Aliás... Até fugia... Quando ela o convidava docemente... Tipo:
- Anda Zé! Vamos pintar! – Chamava... Sempre com um jeito demasiado ameninado... Contemplando sempre quem a rodeava... Enfim... Talvez para mostrar a sua preocupação e empenho... No fundo... Ninguém lhe passava cartão...
Acabavam por chamar sempre pelo professor... Ou então.. Era este que se aproximava... Simulando tocar uma corneta... Cantar ou bater palmas... Ou simplesmente... Fazer de conta que tinha uma guitarra...
Do outro lado... Zé cantava... Quase sem som... Com uma expressividade única e simplesmente assombrosa... Pedro aplaudia o seu desempenho... Como se este fosse um animal de palco.. E era...
Zé agradecia... Como era costume dos artistas...
Em conversa com a mãe do aluno... Pedro descobriu que esta motivação pela música já vinha de casa... E foi uma das coisas que os pais descobriram desde cedo... O poder da música em grande quantidade... De forma a amenizar os seus medos... Crises e mal estar... Concertos de vídeo... Dos mais variados e distintos artistas... Que serviam para o acalmar e educar...
Espontaneamente ou não... Este aluno foi adquirindo... Uma enorme cultura musical... Trabalhando a representação... A dramatização e a capacidade de se explicar...
Zé desenvolveu uma certa empatia pelo professor... Ou seja... Uma resposta afectiva adequada à condição de outra pessoa... Em detrimento da própria situação... Acompanhando-o e desfrutando da sua presença...
Passava mais tempo na sala de escolaridade do que na sala de estimulação global II... Afinal... Lá escutava conversas... Ouvia sons... Beneficiava da comunicação dos outros... Ainda que fosse... Essencialmente receptiva...
Fazia exercícios individuais e de grupo.. De leitura funcional... Escrita... Brincava e aprendia... Simulando e fazendo de conta...
Rapidamente... O docente constatou que o aluno em questão possuía uma aptidão natural para a memorização... Isto é... Na realização e estabelecimento de relações... Identificação... Ligação e associação de números... Letras e palavras...
Sempre que realizava uma tarefa era compensado... Pedro contava o tempo... Dava indicações e tirava anotações... Posteriormente... Deixava que este pegasse na guitarra... Coisa que nunca tocou... Apenas simulava... Não gostava dos sons produzidos por ele...
Outras vezes dava-a ao professor... Para que este a tocasse... Ora brincava com o velho microfone... O tal que o professor arranjara...
Curiosamente... Este objecto... Andava com ele a maior parte do tempo... Por vezes Samuel advertia-o:
- O microfone é da sala! – Exclamava... Em tom de aviso... Mas... Zé nem ligava... Era completamente em vão...
Com ele... Deu imensos concertos...
Não fosse ele um cantor... Personagem de um encadeamento de sons... Produzidos por instrumentos... Agitando assistências e plateias... Com o seu temperamento... Personalidade e motivação... Emocionando e divinamente encantando...
No final das sessões de música... Na rua e recreio... Psicomotricidade e até quando ia à escolaridade... Gostava de beijar o professor na testa... Ou seja... Encostar somente os lábios...
Por vezes olhava o professor nos olhos... Mas quando Pedro o encarava de mais profundamente... Olhos nos olhos... No seu interior... Desolhava e afastava-se... Como se não fosse com ele...
De olhar subjectivo e amplo... Com uma comunicação parca... Dimensão do imprevisível... Sentido da comunicação pouco evidente... Onde o falar não consiste apenas em passar informações e apresenta um carácter muito mais complexo e ilusório...
Com a angustia e necessidade de afastamento... Por não compreender o constrangimento de invadir alguém de palavras...
Em vez disso... Não fala e fecha-se em si... Num mutismo doloroso... Que ecoa e repete... Restos de palavras e frases...
Obstinação de bisar palavras... Na ligeireza de quem as diz e pronuncia... A vontade ou não de falar... Consigo e com os outros... De si ou do mundo... Mundo esse de palavras vastas e várias... Que se dizem... Repetem e multiplicam... Em vários timbres e tons... Que ainda assim... Não servem para que o autista comunique... Encarnando confusão e atrapalhação... Enfatizando o ridículo e o estigma...
Um escape sem saída... De quem adoraria sair deste mundo ou de partilhar e ensinar o seu aos outros... Para que o compreendessem...
António Pedro Santos
(Continua)...