A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando
LVII
Haviam passado alguns meses... Desde que o professor chegara à nova escola...
A sensação do desconhecido... Habitual nos professores que circulam de escola em escola... Terra em terra... Em busca de apenas experiência e tempo de serviço... Por vezes... Tão mais insignificante que trabalho e rendimento...
Ainda assim... Mesmo com todas as contrariedades... O balanço era mais do que positivo... Desde o primeiro dia...
Pedro gostava do seu trabalho... Ao contrário da maioria das outras crianças... Que desejavam ser futebolistas ou estrelas da televisão... A verdade é que... Desde criança que queria ser professor...
Era a primeira vez que trabalhava com alunos destes... Deficientes ou diferentes... Com todos os nomes que habitualmente lhes dão... Estavam de facto a ensinar Pedro e a fazê-lo ver uma realidade que até ali desconhecia...
Quantas vezes os olhou e reflectiu... Que estranho mundo era aquele... Tão à parte dos demais... Vítimas uma exclusão plena... Porém... Dentro da sociedade... Que os expulsa e procura extinguir... Para lá das mentes amorfas e caducas... Que os ignoram e lamentam... Sempre com dó e clemência...
Tanto que perdiam por ser assim... Anos e anos a fio... A explorar conteúdos básicos... Deformados e completamente desajustados das exigências da vida e até das suas...
Regressões abruptas que se verificavam... A falta de estímulo e simplesmente... Um imenso e sempre presente desacreditar...
Sem direito ao convívio com os demais... Sem a possibilidade de ler e escrever... Contar e calcular... Escondidos e indesejados... Crianças eternas sem direito a um beijo... Ao namoro ou ao sexo...
Prisioneiros da estagnação... Vencidos pela resignação... Deixavam-se ficar... Repetitivos... Estereotipados... Gagos e com tiques... Paranóicos... Dementes e alucinados... Atrasados e pouco ou nada evoluídos... Abandonados e depositados... A braços com a loucura... Ao sabor de quem apareça e modifique um pouco a sua condição...
Já Pedro... Aparentemente normal... Era às vezes tratado como tal... Eternamente jovem e inexperiente... Numa corrida em busca de trabalho... Tendo sempre de provar e mostrar as suas capacidades... Sempre olhado como incapaz... Ou... Contestatário... Por lutar pelos seus direitos... Enfim... Era cansativo...
Todos os anos era uma batalha conseguir trabalho... Algumas horas ou experiência... Que agradavam ao estado e pouco serviam a quem executava o serviço...
É certo que se ganhavam correspondências e afectividades... Histórias de amor e laços de amizade... Porém... Faltava sempre a estabilidade... Um trabalho certo... No mesmo local... Uma casa sua... Vida familiar... Filhos e tudo isso...
Face a esta situação negra... O professor viu sempre esta realidade muito distante e longínqua... Nunca chegando a acreditar nela...
Quantos casos conhecia... De colegas solitários... Eternamente sós... Com o único desígnio da escola... Sem filhos ou respectivas caras metades...
Por vezes... Dava consigo a pensar na rapidez com que o tempo passava... Sem ganhos exacerbados... Ou qualquer espécie de estatuto ou consistência...
No fundo... Percebia que poderia ficar no colégio por muito mais tempo... Pois... Sentia que gostavam do seu trabalho... Todavia... Sabia que o seu objectivo era trabalhar no ensino público... Onde teria outras regalias e maior segurança profissional...
Prematuramente... Já sofria por antecipação... Sabia que lhe ia custar... Deixar aqueles novos alunos... Quase filhos protegidos... Os seus colegas... Alguns amigos... Ou com gestos semelhantes à amizade... Perder o encanto dos olhares de Luz... Ou o ânimo do corpo de Leontina... Para onde iria o seu trabalho?... Os seus projectos e a sua continuidade?... Como seria a entrega dos que se seguiriam a si?... Tudo questões e mágoas que pareciam invadir Pedro cada dia mais... Com maior intensidade...
Os progressos eram notórios... Contudo... Havia uma necessidade constante de estímulo e de continuidade...
Era demais agradável... Apreciar a desenvoltura com que os alunos envolvidos nas áreas vocacionais se entregavam às actividades... Mais adultos e responsáveis... Ou o constante pedir de trabalhos de casa de alguns... Que não passavam de pequenas tarefas ocupacionais... Enfim... A preocupação com a higiene... O crescimento... Desenvolvimento e a maturação... A comunicação e a interacção social... A beleza das acções... Menos ameninadas... Tal como... As parcas e pouco notórias evoluções dos alunos multideficientes da sala de estimulação global I...
No gosto que dava... Franquear as limitações de Sarita... Disfarçadas pela sua vontade... Sempre ajudando o professor nos exercícios de deslocamentos e equilíbrios... A liderança e segurança de Patrícia... A aproximação de Ilda e de Angela... Ainda que... Nem sempre boa e correcta... Mas tentada...
A participação de Zé nas aulas de psicomotricidade... Nem sempre efectiva... Mas mais frequente... A amizade e o carinho entre colegas... E sobretudo o aumento da tolerância e da solidariedade... Eram afinal... Todos diferentes e limitados... Crianças... Jovens e adultos... Todos eles com capacidades... Com vontade e necessidades... Alunos e funcionários...
António Pedro Santos
(Continua)...