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educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando

LXI

Os alunos saíam para a rua contentes... Dobrando as paredes enfadonhas do velho colégio e enchendo a cidade acinzentada pelo tempo... Com um pouco mais de cor... Afinal era dia de passeio...

Uma vez mais... Seguiam rumo ao parque... Desta vez... Esperava-os um dia inteiro de desporto... Piquenique e muita brincadeira...

Organizados... Desciam a rua... Com estrutura e ânimo... Distribuindo-se na arquitectura fastidiosa da vida e contaminando-a com alento e energia...

- Bom dia! – Dizia repetidamente Ramos às pessoas que com ele se cruzavam... De forma insistente... Teimando em integrar-se... Impingindo-se aos demais transeuntes com educação e alegria...

Virgílio... Luís e Carlos... Seguiam o professor que liderava o grupo... Aliás... Como sempre... Cada vez mais adultos e responsáveis...

João acompanhava Sónia... Que fazia questão... De chamar a atenção de Pedro... Sempre absorvente e cativante...

Patrícia e Rosa auxiliavam os mais novos e limitados... Cada vez mais crescidas e profissionais... Desempenhando as suas funções com brio e com solidariedade... Camaradagem e cooperação...

Fábio e Raquel caminhavam agarrados... Eternamente apaixonados e unos... Filipe segurava o seu enorme lápis amarelo com uma mão e dava a outra a Cristina... Carrapito emparelhava com Bebé e com Pedro... O boneco... Cada vez mais velho e usado...

Martinha... Júlia e Carla... Dividiam-se pelo meio do grupo... Enquanto as restantes colegas... Marchavam mais atrás...

As regras instituídas com o tempo... Pareciam surtir efeito... Isto porque... Havia maior postura... Disciplina e até civilidade... Exemplo disso... Aconteceu quando o docente gritou:

- Atenção!...

- Todos para o passeio! – Apregoaram em coro... Alunos... Técnicos e auxiliares... Completando o aviso... Tantas vezes dito e redito...

Seguiu-se uma agigantada e colectiva gargalhada...

No grupo dos alunos multideficientes... As cadeiras seguiam e Rúben parecia mais tranquilo e em paz consigo... Desfrutando do ar daquela cidade... Com maior empatia e naturalidade...

Nesse momento... Pedro olhou a auxiliar da sala... Mais terna e atenta... Quem sabe... Se mais em paz consigo também...

Recordou-se de uma conversa que tivera com a educadora... Em que realçava as dificuldades e limitações do aluno... Ao contrário... O professor argumentou... Valorizando a juventude do miúdo e a sua persistência... Enfatizando... Que jamais baixaria os braços...

Ainda bem que não o fez... Ainda com os lentos e escassos progressos que conseguiu... Foram todos bons e importantes... Para ele e para os seus...

O docente considerava ser de extrema importância o esclarecimento... A partilha e a formação dos encarregados de educação... Professores... Técnicos e comunidade em geral...

Só assim... Haveria oportunidade de proporcionar às crianças e jovens com necessidades educativas especiais as condições e o estimulo adequado ao seu desenvolvimento global...

Já no parque... Os mais velhos jogavam futebol... Ou melhor... Uma espécie de...

O objectivo era semelhante... Enfim... Fazer com que a bola entrasse na baliza do adversário e ao mesmo tempo... Impedir que esta entrasse na sua... Contudo... E embora a bola fosse jogada com o pé... Por vezes permitia-se o uso da mão... Um empurrão ou até algo mais forte... Pedro chamou-lhe mistura total... Mais tarde... Totalmix...

Afinal... Nascera no ginásio... Devido às condições  físicas e sobretudo... Por causa dos conhecimentos dos alunos... Diminutos e demasiado elementares... Porém... Sempre que havia uma saída deste género... Tentava-se que o jogo se parecesse mais com o futebol... Respeitando-se... Ou procurando respeitar as regras... De um modo um pouco mais sério...

Curiosamente... E durante o jogo... Ramos corria aleatoriamente pelo campo... Apitando sempre que se apercebia de uma situação de maior gravidade... Ou... Quando simplesmente se lembrava...

Num outro lado... Alguns alunos dos mais novos... Brincavam ao jogo do lenço... Alguém empurrou Cristina que caiu...

Ao levantar-se... Trémula e com dificuldade... Olhou as suas calças brancas e ténis claros... Completamente imundos... Ficou sem voz... Coisa rara... Pois adorava repetir-se e até... Comunicar com a sua amiga imaginária...

Pedro aproximou-se e auxiliou-a... Perguntando-lhe... Se estava bem... Ou se lhe doía alguma coisa...

Cristina não disse uma palavra... Nem sequer se queixou... Todavia... A sua respiração alterou-se... Começou a tremer...

Um semblante triste invadiu-a... A si e ao momento... Consternada... A sua boca encerrou-se e a sua expressão mudou por completo... Desespero extremo... De amargura repleto...

Os seus olhos miúdos e amendoados... Transfiguraram-se... Numa angústia fora do comum... Particular e estranha... Especial e desconhecida...

De boca fechada... Encheu as bochechas de ar e chorou sem lágrimas... Numa agonia e pranto medonhos... Desfalecida e sem forças... Na mais pura aflição...

Pedro espantou-se e emocionou-se... Perante o seu ar frágil e desequilibrado... Na sua forma de ser para um mundo severo... Em que os seus próprios homólogos... A pareciam ignorar... Colocando-a à parte... Por... Já de si... Ser diferente... Afastada... Limitada e lenta...

O professor encostou-a a si e abraçou-a com força... Dizendo-lhe palavras com ternura...

Para que se acalmasse...

- Que foi Cristina? – Interrogou Carrapito... Apreensivo...

Nesse momento... O professor aliviou o abraço e convidou o aluno a aproximar-se... Dizendo:

- A Cristina magoou-se... Mas já está quase boa!

- Aleijaste? – Perguntou preocupado... Comendo as letras da palavra...

- Sim! – Respondeu com voz sofrida... Acentuando ainda mais o choro e abraçando Carrapito...

Os dois amigos... Ficaram encostados um ao outro... Num abraço imponderado... Em que a demência e as dificuldades se pautaram nos ruídos e nas posições dos corpos... Absortos e disformes... Sem postura ou posição... Desequilibrados e voláteis... Numa extravagância doente... Com pancadinhas doces e mutuas nas costas... Para lá da deficiência e limitação... Onde a amizade... O carinho e o afecto... A compaixão e a condolência... Cresciam e tapavam as mágoas... Dores e frustrações...

O professor olhou aquele quadro... Impotente e ao mesmo tempo fascinado... Com a magia do toque... Do abraço e da palavra... Humanidade plena... Amizade pura... Num rever de acções fartas de ânsia... Bem conhecido dos dois... Débeis... Frouxos... Inábeis e aselhas... Inaptos e incapazes... Fracos... Combalidos e decrépitos... Sentimento bafiento... Atrasado... Mofento e rançoso... Antiquado e obsoleto... Porém... Real e vigente nas suas vidas...

- Não faz mal Cristina! – Dizia Carrapito... Batendo-lhe nas costas... Atencioso e delicado... De voz hesitante... Comendo as letras de cada palavra... Sempre dorida... Pessoal e imensa de sofrimento... Como se fosse o seu... E era...

- Não faz mal Cristina! – Repetia esta... Para si própria – Rum... Rum... Não faz mal Cristina!...

António Pedro Santos

(Continua)...