A braços com a Loucura. Ou melhor... Ensaiando
LXIII
No terraço da sua casa... O pôr do sol... Imenso e nostálgico...
Bem na sua frente... A fleuma de um país... Indiferente... Imoderado e passivo... De contornos sem respeito... Responsabilidade e seriedade... Sem esperança ou crença... Um resquício de pouca sorte...
Os vultos do passado... Circulam e rodopiam na sua mente... No ambiente de um contexto defeituoso e estrangulado... Nos braços da experimentação e da existência...
Onde miraculosamente... Regressam as imagens da sua infância... Família e percurso... A saudade e a paixão... Revoltam-lhe o corpo... Que atentado... Se castiga sempre que pode... A bem de si mesmo...
Pedro encerra os olhos e deixa-se ir... Destino e fado... Apanhando imagens e momentos... Onde observa e ao mesmo tempo... Se tenta encontrar...
Percorre todas elas como um peregrino... Aprendendo a sua vida... A braços com a loucura...
De comunicação anacrónica... Sónia articulava silabas disformes e exalava ruídos de alegria ou de amargura... Acolitados pelo tal estalar da língua no céu-da-boca... Esmurrando as mãos no peito... Para mostrar posse... Domínio e poder... Em relação ao professor... Intimando-o para si... Com exclusividade...
Olhar vago e distante... Clamando por benignidade e condescendência... Os clones permaneciam quase imóveis no mesmo sítio... Oscilando-se quando estimulados... Provocados ou abordados...
Vitimas de atrofia e espasticidade... Corpos quase mudos e estacionados... Enunciavam ecos anormais… Para... Quem sabe tentar... Infrutiferamente... Falar...
Na brancura de Tatiana... Descolorada pelo escuro da sua vida... Apagada... Nublada... Opaca... Destinada a ficar... Permanecer e depender... Medicada quase sempre... Alcoólatra... Embriagada e estonteada pela sua condição... Arrastada... Penosa e desequilibrada... Perdendo-se no ser e no andar... Tremelicando e tropeçando... Sussurrava a sua existência...
Andreia gritava ao mundo a sua loucura... Bramindo a dois tempos... A profundidade da sua limitação... Rondando os outros... Sempre mais lenta e atrás... De olhar disperso e sem direcção... Cumpria o desígnio de um ser... Que apenas nasce e sofre...
Dureza do corpo e do coração... Falta de sorte e de energia... Coxeando... Desacreditada de um mundo que muito pouco lhe diz... Hirta e áspera... Sem tempo... Espaço ou direcção... Apenas vivendo e dependendo...
Hélio... Cor castanha clara... Herdeira do colonialismo... Epiléptico... Expressão firme e carregada... Franzino... Débil e delicado... No seu constante bater das palmas... Ou de pulsos... Alheamento do exterior... Medo... Pavor e horror... Sem palavras... Apenas gemidos demolidos... Numa inactividade dilatada e em um desterro incessante...
Corpulento e maior do que os outros... Zé ficava sempre à parte... Todavia... Já fazia muito mais... Participando... Ainda que... À defesa... Resguardado e protegido... Dos outros... Do mundo e de si próprio...
Quase nunca olhava as pessoas de frente e continuava beijá-las docemente na testa... Divertia-se a trautear canções imperceptíveis aos ouvidos dos outros... Ditos e chamados de normais... Como se a normalidade fosse coisa que se visse...
Carregando a vida às costas... Mesmo que não o fizesse... Num pranto degolado e tartamudeado... Pedro respira e acorda de novo... Mirando o sol que se esconde... Para lá de todos... Sejam.. Bebé e Cristina... Amigas e cúmplices... Vítimas de um embargo social... Causado pela sua própria conjuntura... Embaraço motivado por tudo o que têm...
Já Sarita... Obesa mórbida... Aspecto ameninado de atitude imaculada... Andamento corpulento e dificultoso... Escabrosidade... Lição de vida... Líder nata... Amiga do seu amigo...
Como Maura... Ou Raquel... Uma tímida... Outra desbocada... Ambas de aspecto envelhecido... Dolorido e magoado... Decadência esbranquiçada de dois seres ainda meninos... Contudo carrancudos e adultos de apresentação...
No mutismo selectivo de Ana... Que escondia recalques e tormentas de casa... Sociais e virtuais... Situações diárias bem à vista de todos... Escondidas e abafadas por uma sociedade aglutinadora e vil...
Na imaginação fértil das irmãs... Angela e Ilda... Uma infantil... Outra demasiado sexuada... Separadas de feitio e pela família... Juntas pelo docente... Por insistência e querer... Enfim... Agora melhores... Pelo menos mais próximas... Presentes e tolerantes...
Quem sabe... Se um dia não serão amigas... Ou... Verdadeiras irmãs... Unidas e cúmplices...
Pedro inspira o ar da brisa e parece sossegar... Ainda assim... Continua e avança...
Por seu lado... Miguel... Diferente e muito pouco auto suficiente... Caminhando amparado nas paredes... Desbravando caminhos... Nua sala que o aprisiona... Ou... Resguarda de um mundo estranho.. Perigoso e vil... Contemplando a mão... Com uma fidelidade única... Com desejo... Objectivo e determinação... Declinando... Afrouxando e caindo... Completamente inebriado com a sua mão... Siderado... Concentrando o olhar na mesma... Como que magnetizado... Rindo perdido... Ou melhor... Sorrindo... Quase sem som...
João parecia um senhor... Curiosamente... Os alunos mais velhos... Apresentavam esta característica... Todavia... Permaneciam infantis... Ingénuos e primaveris... Ainda que... Nos corpos demasiado desenvoltos e seniores...
- Professorinho... – Dizia constantemente... Clamando pela atenção de Pedro... Falando palavras tremidas e balbuciantes... Sobre futebol essencialmente... Através de frases incompletas... Expunha para quem quisesse beneficiar da sua companhia... As suas dificuldades de linguagem e de comunicação... Falhada e interrupta... De entendimento... Juízo e de crédito... Sempre em busca do seu lugar no mundo difícil... Arredio e voraz...
A sua protecção a Bruninho... Era amizade pura... Zelo e estima... Sempre de fato de treino... Feito por encomenda... Pois... Pesava cento e tal quilos... Pior que ele só Sarita...
Quase mudo de palavras... Tímido e com pouca iniciativa... Contava com o apoio dos amigos para se chegar à frente nas actividades... Incentivando-o e motivando-o... Constantemente...
Nessas alturas... Em que os amigos o estimulavam... Ele sorria e fazia-se escutar... Dizendo:
- Sou o maior!
Houve um dia... Em que realizaram uma espécie de corta mato... Bruno chegou em último... Pois era demasiado obeso e cansava-se facilmente...
Ao verificar o seu desalento... O professor e Irene... Esticaram de novo a fita que servia de meta... Para que este a cortasse... Ao transpô-la... Ergueu os braços ao ar e deu o máximo... Perante uma ovação de todos os seus colegas... O seu sorriso e a sua alegria não tiveram tamanho ou explicação...
Mário... Era outro dos seus amigos.. A par de Luís... Um dos mais respeitados por todos... Alunos e adultos... Ainda assim... De aspecto atrasado aos olhos daqueles que habitualmente se intitulam de normais...
Ronaldo também o acompanhava muito... Adorava música da pesada... Nunca se chateava e jamais ficava triste... Tinha uma forma moderna de falar... Talvez devido à jovialidade dos pais e ao contacto com o seu irmão mais velho... Repetindo constantemente:
- Ya professor... Tás a ver... É assim meu!...
Por vezes... Agarrava um palito ou uma palhinha dos pacotes de leite... Encerrava os olhos e fumava... Travando o fumo do cigarro para dentro de si... Com estilo e muita classe... Conseguindo desenvolver jeitos e tiques de quem o fazia na realidade...
Cláudia... Patrícia e Rosa... Olhavam os rapazes de uma forma mais madura... Vítimas da miséria moral das gentes... Que envenenadas pelo estado de ser de todos... As fazia sobreviver... Deteriorando-as e acondicionando-as a um destino sem fuga possível... Envelhecendo e esmagando a sua juventude... Pelo seu ambiente e condição... A braços com o ódio... Ignorância e loucura... Onde... A humanidade se esquecia e perdia...
Tímidas... Deficientes... Complicadas e sem qualquer estima que fosse... De si próprias...
Com um fraco e quase inexistente auto conceito... Deixavam-se ficar e estar... Ao sabor e à vontade dos outros... Escondendo na sombra... Os seu segredos mais sórdidos e proibidos...
O casal de pombinhos... Fábio e Raquel... Imensos... Unos... Puros e naturais... Dando uma lição constante a todos os que desprezam ou não acreditam no amor... Vivendo ao máximo a sua paixão... Como se fosse a última... Na eminência de um fim... Que parecia avizinhar-se e que... Acabou por chegar...
Algumas gaivotas circundaram o terraço... Talvez viesse por aí tempestade... O professor absorvia toda a maresia... Ou lá o que fosse... A verdade é que cheirava bem... Isto é... Uma naturalidade magnânima e ao mesmo tempo maternal...
Pedro sorriu de prazer e aproximou-se... Do mundo novo e distante de Teófilo... Fechado e privado... Seguro e constante... Prisioneiro de rotas e rotinas... Bem estruturadas e definidas... A bem do humanidade e de si mesmo...
Discurso robótico... Articulado... Enfático e solene... Confundindo e emaranhando-se...
Problemático e repleto de enigmas... Exclamando de uma forma repetida:
- É a minha cabeça! Não tenho a culpa!...
Curioso... Estudava palavras com prazer... Desbravando dicionários e enciclopédias...
Com a ânsia de saber e de aprender... Formulava questões quase diariamente ao professor... Acerca de dúvidas e sobretudo... Significado de palavras...
Às vezes... Era tão cedo... Que Pedro ainda nem estava bem acordado e tinha dificuldade em responder... Houve um dia em que surpreendeu o docente com mais uma:
- Professor... O que é apetite sexual?
Enfim... Nem vale a pena falar... Da artimanha e das voltas que este teve de dar... Para lhe conseguir dar uma resposta aceitável... Compreensível e perceptível... Creio que não conseguiu...
Fechado em si próprio... Apesar da sua idade... Nem sempre correspondendo aos factores convencionais... Afastado... Ostentava abnegação para com os outros...
Problemas de comportamento... Atitude e conduta... Eram disso exemplo... Virgílio e Roberto... O primeiro muito melhor que no início... O segundo... Assim assim...
A mistura dos tiques e das expressões faciais... Como palavrões e as palavras desbocadas... Arranhar de dentes... Enrugar da face... Esclerótica e menineira... Piscando sempre um dos olhos...
Em contraste com... Obscenidades... Voz alta... Amargura de uma criação motivada pelo álcool dos outros…
Salvador... Bento... Ruben e Rafael... Variadas coisas... Desavindas... Diversas e inconstantes limitações... Incompreensíveis e pouco presentes... No mundo dos outros... Que dispersos e ocupados... Desconheciam estas problemáticas... Pouco visáveis e escondidas... Da sociedade e dos seus integrantes...
Num mundo em que tudo segue... Cresce... Desenvolve-se e reproduz-se... Bem distante do que é normal e que não é abrupto...
Vida disforme e absorta... Prisioneira cativa... Reclusa vencida... À margem do planeta... Numa sala colorida... Estimulada... Mas... Vedada... Limitada e segregada... Vivendo para resistir... Subsistir e perdurar... Sem ideias... Capacidade de intervenção... Ou... Sequer vontade... Âmbito ou finalidade...
Carlos... Imensamente gordo... Transpirava uma batelada de sacrifício por toda a sua carne… Pesquisando e auscultando a conversa do professor... Com consideração e cuidado...
Pedro recordava-se agora dos almoços... Enquanto se alimentavam... Examinava os seus modos e espiava as conversas... Para os conhecer melhor... Sempre para se conhecer a si...
Considerações e aspirações fortes... Ou vernais... Conduta estereotipada e severa... Evolução significativa e positiva... Após tanto tempo e trabalho... Empenho e dedicação... Do professor e deles... Sobretudo deles... Enfim... Era um gosto vê-los comer... A postura do seu ser... Elevado e composto... Diferente e melhorado... Usando os talheres e o guardanapo... Com carácter e elegância...
O professor abre os olhos e verifica... A controvérsia social moderna... Que exclui e afasta os seus próprios filhos... Escondendo-os dos outros por serem diferentes... Em abrigos... Hospícios e manicómios... Como se não existissem... Alegando a falta de preparo e de condições... Numa história ainda pior... E que pouco evoluiu…
Instituições de acolhimento de outro enredo... Teia indivisível do aforismo social... Da capacidade... Das doenças e dos doentes mentais... De ontem e de agora... Camisas-de-força... Prisões e cárcere... Acolchoadas e independentes... Na solidão incompreensível... Onde se limpa o descontrole e a alienação…
Feridas vertiginosas... Torturas ao raciocínio e no físico... De um ser afável com direitos à luz da constituição... De ontem e de hoje... No século dezanove... Na república... No estado novo ou mesmo depois do vinte e cinco de Abril... Tudo evoluiu... Mas pouco mudou para esta gente...
Pedro observa a vista e divaga... O cigarro consome-se pelo vento e pelo esquecimento...
António Pedro Santos
(Continua)...