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educação diferente

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

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EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA

Covid-19. Escola em casa: "O sistema de ensino à distância não pode servir para aumentar conflitualidade e produzir desigualdades sociais"

Teresa Sarmento, do Centro de Investigação em Estudos da Criança, da Universidade do Minho, diz que é muito importante que os pais em casa ajudem a encontrar o tempo certo para os filhos estarem à frente das novas tecnologias e defende que o ensino não pode ser unidirecional: "Temos de saber ouvir as crianças"

3.º período começou na terça-feira com os alunos em casa, ensino à distância e provas adiadas. As aulas virtuais já são uma realidade, mas as emissões diárias da telescola só serão transmitidas a partir do dia 20, no canal RTP Memória, que é acessível não só por cabo ou satélite, mas também, através da TDT.

Nunca como agora o recurso aos meios eletrónicos e digitais foi tão necessário para garantir alguma “normalidade” ao quotidiano de todos. Se até aqui andamos a lutar para que os mais novos se mantivessem afastados do uso intensivo destes dispositivos, agora é a própria escola a exigir que olhem para eles, mais tempo do que era habitual, para poderem continuar a aprender.

Uma aparente contradição que pode e deve ser explicada às crianças independentemente da sua idade porque “têm capacidade de compreender que há situações que são anómalas, estranhas e excepcionais e que a defesa do uso das tecnologias se justifica neste caráter de exceção”. A afirmação é da professora auxiliar e investigadora na área dos estudos da criança, Teresa Sarmento, que faz parte do Centro de Investigação em Estudos da Criança, da Universidade do Minho.

Toda esta situação de confinamento a que estamos sujeitos é uma oportunidade para produzir outras aprendizagens nas crianças como as que “mesmo numa situação de grande alteração e de certa forma dramática há alternativas possíveis” e que “temos de ter esta capacidade de resiliência”. Como diz Edgar Morin é o "saber viver com a incerteza", embora percebendo que temos capacidades para encontrar alternativas e que “não podemos ficar bloqueados e incapacitados de prosseguir seja de que forma for”.

Na verdade, ao mesmo tempo este uso excessivo das tecnologias “pode mostrar às crianças que quando é excessivo também os limita na interação com os outros”, pois a maioria sente saudades das brincadeiras com os amigos. Se por um lado estas ferramentas são uma forma de continuarmos a ter uma rotina necessária, de continuar a aceder ao conhecimento, e também ao contacto com os outros, por outro, não nos satisfaz plenamente e compreendemos que precisamos de outras formas de estar com o outro amigo.

É muito importante que os pais em casa ajudem a encontrar o tempo certo para estar à frente das novas tecnologias. Que haja um horário de uso. E nunca como agora os pais foram chamados a intervir de forma tão direta na educação dos filhos, mas com a agravante de que muitos deles tiveram de trazer o trabalho para dentro de casa.

E é também por essa razão que Teresa Sarmento defende que a escola através das novas tecnologias não pode ser um factor que contribua para um aumento de conflitualidade. “Nós sabemos que quando os pais querem ajudar, pode haver uma prática de excesso de norma dos pais para a criança. É preciso ter cuidado. A ajuda dos pais nas tarefas dos filhos não pode ser uma substituição da ação dos filhos”.

Alerta ainda para que os pais como os próprios professores tenham consciência de que este não pode ser um ensino unidirecional, do adulto para a criança, ignorando que a criança tem de ter voz ativa no processo. "Temos de saber ouvir as crianças, não podemos pensar que elas precisam disto, daquilo e daquele outro, sem as ouvir." Foi a pensar nisso que a Universidade do Minho criou a "trancadasemcasa.pt", um suporte online em que “as crianças podem manifestar a sua voz, a sua vontade, aquilo que querem dizer neste período de confinamento”. Foi pensado e projetado por uma equipa de docentes e investigadores do Instituto de Educação daquela universidade e tem um conjunto de recursos, que passa por por exemplo, por sessões de histórias interativas, sessões musicais; mas também podem enviar ideias sobre atividades a fazer, enviar desenhos que são publicados ou fotografias (autorizadas pelos pais para publicação) ou pequenos textos. Além do mais ali encontram uma série de informações de apoio aos pais e às crianças.

Há uma semana o primeiro-ministro fazia questão de recordar que “o ano letivo não acabou”, e que esta última fase vai decorrer na íntegra e terminar “com avaliação”.

Mas será que se pode transportar a sala de aula para o espaço casa? “Obviamente que não”, responde de pronto Teresa Sarmento. “A educação é importante mas não se pode cumprir o programa tal como ele estava previsto”. E avisa que “não podemos correr o risco de retroceder muito no processo educativo e continuarmos a fazer o que se fazia há décadas e que o professor João Formosinho descrevia como ‘o currículo pronto a vestir de tamanho único’”. Afinal a uniformidade contraria aquilo que se defende atualmente: a diversidade, a diferenciação, a flexibilidade curricular.

Como é que isso se conjuga nesta altura é que é a grande questão. “Na minha perspetiva é importante que a criança continue a ter aulas, que tenha um processo educativo, que perceba que pertence na mesma a um grupo, a uma turma, que pode interagir com essas pessoas, que há um sentido de identidade porque estão todos a passar pela mesma situação e que podem ser recurso uns para os outros, que se podem ajudar, partilhando as experiências que estão a viver, dando ideias sobre atividades a fazerem em casa”.

Para esta docente, este é o momento de se trabalhar muito as questões da cidadania, de estar atento ao que se está a passar no mundo, como é que cada um está organizado e está a mudar outros. “Há muitos aspetos, como a educação alimentar, a educação ambiental, ou seja, que se poderiam trabalhar neste processo escolar televisivo e digital. O conhecimento do mundo, a questão da cidadania, e que passa naturalmente por aprendizagens também disciplinares. Por exemplo, a partir das situações atuais, fazer a análise dos dados que vão saindo quotidianamente em termos de números, para no fundo aproveitar esta realidade social que se vive, a que as crianças não são indiferentes. Partir daí para novos conhecimentos.”

O que já sabemos é que este é um processo muito desigual. Muitas crianças têm em casa pais professores, pais que não são professores mas que estão preparados para as ajudar nos seus programas, mas muitas outras não têm pais com esta formação nem condições tecnológicas. “Não podemos pensar que com este sistema quando chegar a setembro (e esperemos que as coisas estejam minimamente normalizadas nessa altura) não vamos encontrar crianças com preparações muito diferentes. Isso não pode ser ignorado”, até porque este “não pode ser um sistema para aumentar conflitualidade em casa e para reproduzir desigualdades sociais. Até para os próprios professores.”

Teresa Sarmento defende que o Ministério de Educação não poderia ausentar-se do seu papel e por isso esteve bem em pensar em alternativas, mas defende também que o conteúdo funcional tem de ser diferente. “Tem de ser muito mais virado para como é que nós podemos colaborar com as famílias no sentido de dar alguma estabilidade no contexto desta situação anormal.” É fundamental para as crianças terem um horário de funcionamento, porque a rotina dá segurança, contudo, “como tudo o que está a acontecer é tão incerto, se nós não atendermos a essa questão da rotina pedagógica, mais instabilidade estamos a dar-lhes. Não vamos querer que as crianças cheguem ao fim deste trimestre com os programas concluídos. Isso é um absurdo porque estamos a reproduzir desigualdades, estamos a criar maior conflitualidade nas famílias e não estamos a ajudar ninguém”.

Como os alunos do ensino básico e secundário foram avaliados até ao 2.º período e os professores já perceberam que essa será se calhar a última avaliação do ano, “eu não me preocupava nada nesta altura com notas e pautas”, assume Teresa Sarmento. E por isso diz ser importante que os professores se manifestem e digam como é que podem realizar as tarefas com os seus alunos porque eles melhor do que ninguém conhecem as turmas que têm.

Indo ao encontro do depoimento da professora do 1.º ciclo, que defende que a escola não pode ser mais uma fonte de stresse para os pais, Teresa Sarmento, alerta também para a necessidade de “ajudar as famílias porque isto é cansativo, desgastante e assustador. Os pais não estão habituados a estar com as crianças dois meses seguidos confinados no mesmo espaço. E há muitas situações de desemprego, teletrabalho, de familiares doentes, etc., que não podemos ignorar”, conclui.

in https://expresso.pt/