Sem relação presencial entre alunos e professores, estimulando o sentido crítico, debatendo e combatendo com conhecimento opções de contraditório, argumentando e contra-argumentando, estabelecendo relações críticas tensionais, não existe verdadeira educação livre. Não que o processo de educação-ensino-aprendizagem não possa e não deva incluir meios digitais, presenciais ou à distância, tecnologias de informação e comunicação de natureza não analógica. Mas esses meios são sempre subsidiários e secundários – suporte didáctico, e não modalidade de ensino – relativamente àquilo que é o essencial da relação pedagógica.
Não é possível construir um espaço de aula exclusivamente através de meios digitais ou televisivos, embora estes possam e devam estar à disposição de professores e alunos. Não que esses espaços não possam ser utilizados, neste momento particular. Mas nunca, e esse é o perigo que hoje se vive em Portugal, através da veiculação da ideia anticientífica de que usar, em exclusivo e como forma substituta das aulas presenciais, uma plataforma digital ou um canal de televisão com conteúdos culturais é “dar” aulas ou um momento “mágico”. Não é. Bem pelo contrário. É um momento trágico.
Uma das principais, senão a principal, obrigação ética do professor (e, bem entendido, do sistema educativo no seu conjunto) para com os seus alunos, é a honestidade intelectual. Por isso é que é preciso deixar de insistir na ideia e semântica, e mais ainda na prática simulada, das “aulas à distância”, das “aulas digitais”, da “tele-escola”.
Do que se trata, neste momento, é da transformação da casa de muitos numa “unidade produtiva”, sem espaço para a vida privada, submetidos a uma lógica laboral permanente, totalitária, exceto quando não estão a dormir
Aliás, o que esta semântica, induzida sobretudo politicamente (mas não só) tem provocado (com inúmeros exemplos, de reportagens jornalísticas, testemunhos de professores, das suas organizações sindicais, dos diretores de agrupamentos, etc.) é uma relação altamente stressante e disfuncional entre muitas escolas, professores e alunos e suas famílias, por via de protocolos altamente perturbadores das dinâmicas familiares, da psicologia infantil e juvenil, bem assim como das relações sociais e das próprias condições de trabalho dos professores, subitamente esmagados por lógicas burocráticas e de controlo que impedem uma normal fruição e regulação da sua vida privada e familiar. Do que se trata, neste momento, é da transformação da casa de muitos numa “unidade produtiva”, sem espaço para a vida privada, submetidos a uma lógica laboral permanente, totalitária, exceto quando estão a dormir.
Muitas destas disfunções poder-se-iam justificar em nome do bem comum. Mas não é disso que se trata. Os alunos não estão a ser ensinados, as aulas não estão a ser “dadas” (mesmo aos que estão nas “aulas”, já que uma parte, em alguns casos 60%, nem lá vai, à “aula” virtual), as relações pedagógicas foram substituídas por protocolos digitais que simulam relações pedagógicas, usadas por muitos como mecanismo de legitimação de uma normalidade impossível, porque estes não são tempos normais.
Bem entendido, os professores e a Escola não podem abandonar os seus alunos e as suas famílias, como não o têm feito (com um ora heroico, ora voluntarista menosprezo pela sua própria vida pessoal e familiar). Pelo contrário. A sua presença, ainda que digital, é de fundamental importância para a sua conexão à cultura, ao conhecimento, à sociedade e a um tipo de aprendizagem informal, mas que não pode deixar de ser senão modulação cultural e cívica, ao invés de pseudoaulas, de novos conteúdos, de conferências televisionadas ou de monólogos digitais, que uns apresentam e os outros fazem de conta que ouvem e aprendem. Pelo contrário, a estratégia só pode ser a de uma relação cultural ampla, crítica e não instrumental, evitando a ideia e o objetivo curricularista estrito.
Para além disso, e muito em particular, é especialmente preocupante que o atual modelo de pseudoensino à distância esteja a normalizar uma relação acrítica, dos alunos, dos professores e da sociedade, com os meios de comunicação digitais e televisivos (e com a política), uma relação passiva, com os seus mecanismos conetivos, “saltitantes” e superficializadores, menosprezando a atenção, a concentração, a imaginação, o pensamento abstrato, fundamento da ciência fundamental, e a interioridade experiencial, típica da leitura em papel, própria dos livros analógicos, e que constituem a raiz da cultura de resistência e autoconstrução pessoais e coletivas, contra a alineação produtivista dos meios rápidos e de pura exterioridade existencial.
Os professores são essenciais ao atual estado de coisas, a escola é essencial à nossa vida democrática, mas não a podemos submergir em fetichismo e normativização digital e tecnológica que, mais que libertar, nos aprisiona a todos. A verdadeira educação democrática e republicana distancia-se dos privilégios da corte e do clero e aproxima-nos das ideias de liberdade humana, igualdade social e audácia no saber e na crítica.
Francisco Teixeira, Raquel Varela, Roberto della Santa
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